Você quer entender o Apocalipse?

Carta 014

Assunto: Você quer entender o Apocalipse?

“Que o sedento venha, e que o que deseja receba

gratuitamente a água da vida” (Ap 22, 17).

Leitor de Salvador, Bahia pede dicas de como estudar o

Apocalipse.

Caro amigo,

Sempre que se fala no Apocalipse, as pessoas argumentam dificuldades no seu estudo, e um certo receio em penetrar nos mistérios do último livro do Novo Testamento. Esse desconhecimento, e o temor que o acompanha, tem sido a causa pela qual os cristãos conhecem tão pouco o citado livro. Se indagarmos a um sertanejo nordestino, ou a um tropeiro do sul do país, a respeito do trânsito na cidade de São Paulo, escutaremos deles expressões de susto e de desconhecimento, tendentes ao caos ou à impossibilidade de sobrevivência. Entretanto, quando alguém se ambienta com o movimento da grande cidade, e passa a dominar o uso das perimetrais, marginais, viadutos, cruzamentos e túneis, a coisa fica bem mais fácil. Esses elementos urbanísticos tornam-se chave para a compreensão e domínio do trânsito.

Isto igualmente sucede no Apocalipse. As figuras, os números, os símbolos e as características daquela época, tornam-se chaves-de-leitura. Dominá-las é como conhecer o trânsito de uma cidade: a partir desse conhecimento a coisa flui com naturalidade. O Apocalipse não é um livro de segredos, mas uma revelação que nos apresenta Cristo como chave para compreensão e julgamento da história. Deus foi se revelando aos poucos, com o objetivo de nos conservar firmes em nossa fé. Trata-se de uma linguagem simbólica, empregada por causa das condições de perseguição que afligiam a Igreja, no tempo em que foi escrito.

Assim como é verdade que Deus foi se revelando aos poucos, através da história, também é verdade que no Apocalipse ele completa essa revelação. No Apoca-lipse, Deus revela, por uma linguagem cifrada, é verdade, o quanto nos ama, e co-mo, através do Cristo vitorioso, prepara a nossa salvação. Apocalipse não quer dizer destruição, mas a revelação do poder salvador de Deus e da libertação que o seu Cristo obteve para nós. Apokálipsis em grego quer dizer revelação. O verbo apo-kalyptôo significa revelar algo obscuro.

O Apocalipse é um livro que retrata uma relação entre o passado, o presente e o futuro. Ele se abre com a revelação de Jesus, como Messias, A Testemunha fiel e verdadeira, o Primogênito dos mortos, o Rei dos reis e Senhor dos Senhores, o Libertador e Aquele que criou, para o Pai, um povo santo. Embora o autor chame o livro de profecia, alguns exegetas vêem nele também um estilo semelhante às epístolas do Novo Testamento. Alguns estudiosos vêem no Apocalipse uma releitura interpretativa que os cristãos do primeiro século teriam feito do AT. Na verdade, essa visão tem, de certa forma, algum fundamento, pois o livro usa o evento do êxodo como protótipo das grandes libertações que vem de Deus.

A escatologia do Apocalipse realiza-se privilegiadamente no tempo presente. O incidente central do livro, transformador da história, é a morte e a ressurreição de Jesus. A revelação centra sua pregação na presença do Ressuscitado, que ocorre no mundo e na história. O Apocalipse une escatologia e política, práxis e mito, consci-ência e transformação histórica. A mensagem dos mártires vencendo a Besta, por exemplo, é uma lição de fé e libertação. O livro foi escrito no tempo que a Igreja se instaurava. O cristianismo foi, desde o início, um movimento profético-apocalíptico.

Na Costa Rica, os biblistas dizem que, “...assim como o acesso a San Ignácio se dá por Cartago e Paraíso”, no Apocalipse o acesso ocorre por Daniel e Ezequiel”. Embora pareça coisa nova, do Novo Testamento, o gênero apocalíptico é encontrado desde o AT. Além de Daniel (7-12) e Ezequiel (40-48) há textos com esse gênero em Is 24-27 e Zc 9-14, entre outros. Pela dificuldade de sua compreensão, o Apocalipse não foi, no início da Igreja, pelo menos em alguns setores, considerado como litera-tura inspirada. Inexplorado, praticamente até o século XIX, pois era tido como um “livro selado”, o Apocalipse só a partir desse período foi convenientemente estuda-do. A exegese moderna muito deve a J. Danielou, H. de Lubac e outros biblistas franceses, pela luz que trouxeram, no início do século XX, ao estudo desse fasci-nante livro.

O livro foi escrito em um período de turbulência, perseguições, dúvidas, ido-latria e contestações. Ao contrário do que muitos imaginam, o Apocalipse não é um livro fechado, hermético, esotérico. Ele é justamente fascinante por seu material ser muito lógico, a despeito de números misteriosos, imagens bizarras, visões fantásticas. Mesmo sob esse contexto que parece, à primeira vista, irreal, ressalta-se a es-perança da vitória de Deus contra as forças do mal. É como que uma continuação dos apocalipses judaicos.

A tradição do fim do século II d.C., onde encontramos S. Ireneu, S.Clemente de Alexandria, Tertuliano e o cânon de Muratori, aponta o apóstolo João, autor do IV Evangelho, como o vidente de Patmos, a quem foi revelado o Apocalipse. S. Dionísio de Alexandria e outros cristãos do século III afirmam ser outro João. A tradição joanina do Apocalipse não foi uniformemente aceita até o século V. Muitas Igrejas do Oriente não aceitavam o Apocalipse como obra de João, filho de Zebedeu. Talvez por isso o livro tenha demorado a adquirir canonicidade. Além disso há que se considerar que João (Yo-hanan = Deus é propício) era um nome muito comum entre os judeus. Em Ap 1,1 o vidente se apresenta como servo (doúlo) e não apóstolo.

Há coincidências e divergências. Nas primeiras, observamos que a dialética joanina, vida/morte, luz/sombras, pecado/graça, está presente em alguns trechos do Apocalipse. Encontramos divergências nos pontos teológicos referentes à “segunda vinda”, um pouco divergente do quarto evangelho. Enquanto o Apocalipse é mais fiel à Bíblia hebraica, o quarto evangelho é o menos judaico dos escritos neo-testamentários. De qualquer modo, o Apocalipse pertence ao ambiente religioso e à época que deu origem a Jo e 1-3Jo.

Imagina-se que tenha partido do evangelista a intuição profética que serviu de base a Ap, e que o livro tenha recebido uma redação definitiva de algum copista, possivelmente discípulo de João. De qualquer mo-do, considerando-se a canonicidade e a aplicabilidade do texto à edificação espiri-tual das comunidades, torna-se irrelevante a determinação exata do autor.

Quando foi escrito o Apocalipse? Quanto à data e o local em que foi escrito o Apocalipse, também há algumas controvérsias. Tradições antigas supõe sua escrita durante o governo de Domiciano, que reinou entre 81 e 96 d.C. Deste modo, supõe-se a criação do livro entre 93 e 95, antes, portanto, do quarto evangelho, provavelmente escrito entre 94 e 98 d.C. O fato do vidente ter tido suas visões na Ilha de Patmos (1, 9), ilha grega próxima à costa turca, onde esteve exilado, não implica, necessariamente, que o Apocalipse tenha sido escrito lá. O livro foi dirigido aos cris-tãos de língua grega da Ásia Menor.

As cartas às Sete Igrejas significam, conside-rando-se o simbolismo universal do número sete, cartas a toda Igreja. Na irradiação da revelação a partir das Sete Igrejas, acontece o que foi predito por Jesus, ao credenciar seus seguidores como suas testemunhas “... até os confins da terra” (cf. At 1, 8). O destinatário do Livro da Revelação é todo o ser humano, convertido ou ca-paz de se converter. Para estudá-lo é preciso paciência, bom senso e fé, conside-rando o ensinamento dos Pais da Igreja (a chamada teologia patrística), a analogia da fé (inerrância: na Bíblia não há erros de fé) e o contexto bíblico mais amplo.

Como estudar o Apocalipse? Com oração, com olhos de busca, em grupo. Uma leitura isolada do livro pode encher a pessoa de muitas dúvidas e levá-la, como em geral acontece, a muitas conclusões apressadas, superficiais ou fundamen-talistas. É prudente também evitar os achismos : “eu acho assim... eu acho assado...” Na verdade, o Livro do Apocalipse se presta para uma análise histórica social, mística e política da época em que foi escrito, assim como pode ser usado na pregação hodierna. Por sua riqueza, pode ser usado, também de forma errônea ou distorcida.

O Apocalipse é a revelação feita por Deus aos homens, a respeito de coisas ocultas e só por ele conhecidas. Uma revelação é recebida através de visões, geral-mente consignadas em um livro. Nesse tipo de literatura, tudo, ou quase tudo, tem valor simbólico. Ao contrário dos Evangelhos e das epístolas do NT, o Apocalipse não tem uma exegese padrão, uniforme e consolidada. Existem teorias de interpretação bem diversas, algumas até opostas às outras. É preciso ir com cuidado e observar as diversas fontes.

A quem deseja conhecer um pouco mais do Livro do Apocalipse recomendo a leitura do meu livro “O Apocalipse ao alcance de todos” (96 páginas) o remake de um antigo trabalho de 2002, agora convertido em livro, que estuda o último livro da Bíblia, versículo por versículo.

Pedidos a O Recado Editora Ltda. E-mail: orecado@orecado.com.br. Fone (11) 5181-4242.

Ao ler “O Apocalipse ao alcance de todos”, recomendo fazê-lo com um dese-jo de busca, como que uma sede espiritual, em estado de oração, em uma total abertura ao dom de Deus e uma entrega às luzes do Espírito Santo. É preciso ler sem medo e sem preconceitos. Vamos seguindo a leitura passo-a-passo, e aos poucos as coisas ocultas irão se abrindo para nós, levando-nos, até onde é possível, a penetrar nos mistérios de Deus.

“Que o sedento venha, e que o que deseja receba

gratuitamente a água da vida” (22, 17).

Um abraço e volte sempre!