Flamengo, time do povo?

Flamengo, time do povo?

O esporte em si, traz noções de coletividade, respeito ao próximo, jogo limpo, enfim, esportividade. Podemos tornar essa expressão um adjetivo. “Você foi esportivo” deveria ser um adjetivo bom, indicaria que você foi ético, mesmo podendo ter em face um antigo dilema: ser esportivo, ético, cidadão, ou deixar tudo de lado e obter vantagem nisso? Como é bonito ver gestos de esportividades no mais alto escalão do esporte: os jogos olímpicos.

Muito foi noticiado sobre o australiano Peter Norman, que sentiu a necessidade, no pódio emblemático de 1968, de mostrar ao mundo que estava, também, insatisfeito com os ataques racistas que acometiam, não só à terra democratizante (contém ironia) dos EUA, mas também no seu país, onde aborígenes estavam sendo massacrados, e usou o distintivo da OPHR, em apoio aos pretos que protestavam no pódio, com os pulsos cerrados, e a mão ao alto, com a cabeça baixa, em sinal de protesto.

Durante minha pequena vida atlética de dez anos, digo pequena em intensidade e em qualidade, não em significados, aprendi, que mesmo em um esporte individual, individualismo não nos leva a nada. Individualismo nos faz egoístas e frios, portanto desumanos, pois não somos capazes de sentir a dor do outro; sentir é realmente complicado, mas ao menos entender e se compadecer da dor. O esporte, por sua vez, encarado como coletivismo, nos dá essa capacidade.

Com ele, conseguimos entender e admirar a superação do adversário ou a nossa, que é a capacidade de sair de situações adversas, e enfim, vencer, não necessariamente a partida, mas na vida. Quantas superações não vi na minha singela passagem pelo esporte amador? Quantas superações não alcancei? O quanto o esporte nos faz entender sobre o outro, ou sobre nós mesmos, na nossa incapacidade de vivermos sozinhos, e de que dependemos do outro para exercer o que chamamos de humanidade? Longe de ser um texto sobre superação, coletividade e esportividade, tal temática melhor explicada pelos profissionais de Educação Física, escrevo da relevância social das representatividades que o esporte pode nos proporcionar.

Teria sido a diretoria do Flamengo esportiva ao, mesmo com o número de 60 mil pessoas (fora a subnotificação) mortas pelo COVID-19, financiar, provocar, pressionar, para a volta do futebol? Não vejo esportividade em, num movimento frio e calculista (no sentido mais duro das palavras) voltar a se jogar futebol, dado as proporções a que estamos. Num aceno único e exclusivamente ao lucro, vidas são deixadas de lado em detrimento à ganância pelo dinheiro, e pelo querer mais. Os clubes menores, coitados, ficam refém aos grandes cartolas que comandam a parte suja do futebol brasileiro.

Os jogadores de clubes menores ficam entre a cruz (pandemia) e a espada (manter sua família). O que garante, se na primeira rodada de volta aos jogos já foi burlado, que o protocolo de segurança irá ser respeitado com os times menores? Os jogadores e comissão técnica desses times estão fazendo o que os brasileiros trabalhadores fazem quase como rotina: trocar sua saúde, muitas vezes física e psicológica, por uma sobrevivência. Trocar a ética pela sobrevivência, como muitos fazem, ao aceitar acordos bem (mal) intencionados do patronato brasileiro. O grande número de desempregados faz tudo (o sistema) funcionar, pois é notório que, se o trabalhador não aceitar tais propostas, há alguns milhões lá fora esperando a sua vez de tentar a sobrevivência.

Pergunto-me: onde estão os/as atletas engajados/as politicamente, não partidariamente, repito: politicamente, com o meio social? Onde foram parar os/as Sócrates, Ronaldo Giovanelli, Wladimir, Juninho Pernambucano, Fofão, Fabi, Sheilla? Que, os primeiros lutando pela luta rumo à democratização na década de 1980, e as últimas por melhorias de condições de trabalho feminino no esporte profissional, no século vigente, entenderam a relevância social dos atletas na melhoria de condições de trabalho, no caso das meninas, e de sociedade na democracia corintiana. Entendo um silenciamento dos jogadores dos clubes menores, afinal estão refém à lógica capitalista de vida, mas os jogadores que são estáveis economicamente?

O silêncio é um lado perverso de se escolher. É um lado cruel e desumano de dizer: eu não me importo com o que está acontecendo. Se eu soubesse do futuro, nunca que teria comemorado ferrenhamente, mesmo corintiano, o título contra o River Plate, ou muito menos ter torcido, como brasileiro e amante do esporte brasileiro, na final do mundial contra o Liverpool. A atitude da direção é desumana, e dos jogadores, ao se calarem, é de igual modo fria e cruel. Flamengo, que do apelido de time do povo, não tem nada de povo. Deveria se chamar time dos ricos, do patronato, da elite, afinal eles só pensam neles mesmos.

PS: Levo no coração todos os ensinamentos que tive na IBRA Tênis de Mesa, no Colégio Espaço Verde, Adventista e Criativo, na pessoa dos professores e amigos/atletas que consegui com o esporte, e que me ensinaram o real sentido do esporte: ser um cidadão melhor.