O que está por vir

Abenon Menegassi

Não consigo respirar...

Os municípios de São Paulo, com seus mortos, doentes e vulneráveis estão abandonados e deixados à própria sorte. Isso, numa pandemia que acontece no meio de um fogo cruzado político entre o Governo de São Paulo e o desajustado da milícia da República Miliciana Federal. Do slogan, Pátria Mata Brasil. E seus seguidores.

A decisão de retomada da economia, logo, de rompimento do isolamento social, essencial para salvar vidas, entre outras medidas que sequer foram tomadas (lockdown e teste em massa periódico), visa servir apenas aos interesses da classe econômica que detém o monopólio financeiro do país. Seguindo a cartilha do lixo ideológico do capitalismo selvagem a decisão de retomada consciente paulista reflete aqui o descaso do messias do caos de Brasília. SÃO IGUAIS.

O governo de São Paulo regula de forma mais discreta a torneira da economia, já Bozo vai a público defender a barbárie. Se olharmos de mais perto veremos que cada um à sua maneira está atuando sem pensar no povo. O governo paulista lança a retomada consciente. Vale lembrar que uma das funções da consciência é recalcar tudo aquilo que é indesejado e, no caso, o indesejado é ter que gastar com o povo porque para eles o dinheiro está acima da vida. Vide desmonte do SUS. Diante da pergunta que o ladrão faz à vítima "A bolsa ou a vida", o que ele está dizendo no fundo é “você quer a vida, porém, eu quero a tua bolsa, tua vida não me importa. Matando-te eu vivo e enriqueço mais ainda”. Essa é a lógica da ideologia da necropolítica eugenísta e genocida. Eles descobriram, ou melhor, inventaram que matar dá lucro, então, inventaram, também, o assassinato em massa legalizado. É fundamental que as pessoas entendam que o que está acontecendo é o laboratório e prenúncio do que está por vir. E que entendam que as medidas populistas como kit merenda, auxílio emergencial etc são máscaras da morte, disfarces da manipulação. Eles sabem o que fazem. E o fazem cirurgicamente com requintes de protocolos explícitos e metodologia técnico-científico exemplar.

Não estamos acostumados a acreditar que o estado possa matar, mas, quando em mãos erradas, nas mãos de governos neoliberais, ...mata. Já matou no século passado, e em massa. Por qual motivo nossas consciências recalcam essa verdade e se recusam a enxergá-la? Será porque queremos acreditar que o estado nos protegerá sempre e incondicionalmente, como se fossem nossos pais? Às vezes não, e não está sendo agora. Isso porque há uma enorme diferença na função estatal quando está ocupado pelo pragmatismo liberal e o neoliberal. O primeiro ainda defende e garante alguns direitos sociais e alguma proteção à vida das pessoas, já o neoliberalismo inova ao abandonar o modelo liberal e passa a produzir crises ou se aproveitar das existentes, como a pandemia, e se aproveitar das mortes das pessoas para evoluir. Eles perceberam que matar ou dá lucro ou diminui gastos. Por isso foram e são capazes de fazer os ajustes necessários para acontecer. Seria justo que doravante nosso ordenamento jurídico eleitoral passasse a exigir de políticos e candidatos a cargos públicos testes psicológicos de prevenção aos transtornos do espectro de narcisismo patológico e psicopatia. O risco, infelizmente, seria não ter candidatos aptos ao final do certame. A saída, talvez, fosse relaxar os critérios dos testes psicológicos. No desvão entre o legalmente instituído e o decidido pelo bando em estado de exceção, vê-se que é possível fazer.

Portanto, para que essa nova ordem econômica e modo de vida referente ao paradigma neoliberal se estabeleça é necessário que seus colaboradores emitam mensagens como “Saiam às ruas”, ou “armem-se até os dentes”, o que significa subliminar ou explicitamente: "Matai-vos uns aos outros assim como eu (nós) vos estou matando todos os dias e ainda matarei”. Não importa se para cada centavo que entrar na máquina registradora dez seres humanos ou mais tenham que tombar na outra ponta da ecaosnomia. Não é por acaso que Doria divulga que vai relaxar o isolamento social em São Paulo justamente no momento em os contágios diminuem no centros mais ricos e se espalham pelas periferias. É assim que qualquer vírus se apropria de seu hospedeiro e o utiliza como vetor para se alastrar. Com a mercadoria não é diferente; somos, ao mesmo tempo, condutores e conduites. Como na guerra, corpos devem sucumbir para que os interesses de quem controla a bolsa de valores sejam defendidos. Só que essa guerra viral caminha a passos largos para se tornar endêmica. Então, como vai ser? Vai ser o prato cheio. O que os políticos neoliberais, como Doria e Bolsonaro (e inclua-se seus respectivos governadores, deputados, vereadores e prefeitos aliados), querem é, seguindo o paradigma neoliberal, naturalizar a morte como efeito colateral da economia operante. O cálculo começa com a pergunta sobre quanto de capacidade de atendimento os hospitais públicos aguentam para poderem abrir a torneira na mesma proporção. Por “torneira” entenda-se a regulação do isolamento social. Mas, essa lógica do extermínio vai se perpetuar mesmo em tempos sem pandemia. O critério será sempre o dinheiro. O que veremos então, numa primeira fase, será o índice de exposição e morte dos trabalhadores ser regulada pelo índice de capacidade hospitalar. Só que eles não melhorarão os hospitais públicos, antes, os desmontarão, logo, como segunda fase da necropolítica, imporão a sentença condenatória "vá para casa...". Essa frase, já repetida atualmente, é emblemática. Ela sintetiza o novo papel que o estado em sua face disciplinar irá assumir diante da população. Como se tratará de pessoas pauperizadas, seria ironia orientar no sentido de buscar uma saúde de qualidade paga. Então, a sentença do descaso, do abandono, da omissão será “Vá para casa”. Portanto, a casa, o lar, será o último e único refúgio que o cidadão terá para recorrer em seu momento de agonia, pois, o poder público, infestado, se retirou de suas incumbências iniciais. A casa será o espaço último para onde o doente será devolvido para ter seu tratamento, senão pelo retorno, pois essa nunca deixou de existir, através da medicina caseira, alquímica e artesanal. Só que agora sem opção. A casa será o ponto que o estado através da saúde fixará como recurso de regulação. Se antes, o CROSS aparecia como sistema de mediação entre o hospital de chegada e o hospital de referência para o tratamento da doença do paciente, agora, não haverá mais essa intermediação. Doravante, a regulação se dará na porta do hospital inicial. Não haverá mais porta de entrada e nem acolhimento, muito menos atenção. A regulação, então, será “Vá para casa”. Indiferentemente. Ademais, que frase poderia servir melhor como imperativo para esvaziar o espaço público da ação política? Manter o sujeito em casa, longe da ágora, é o paradigma da biolítica que tem como projeto o esvaziamento do debate acerca dos problemas da cidade e dos cidadaos. Assim, retomando, medicina legal só para quem puder pagar e caro, pois, a saúde será vendida como uma mercadoria no mercado de objetos de luxo. A lógica que vai se estabelecer é simples: seremos cada vez mais descartados como pilhas usadas, não há dúvida. E, como pilhas usadas, não recarregáveis, vivos ou mortos, seremos empilhados. Será a naturalização da morte generalizada e as pessoas serão computadas como excedentes de mão de obra descartáveis no mercado de trabalho só que agora, não mais e somente pela via da demissão e do desemprego, mas, inclusive, pela via do deixar morrer desempregado, doente e sem assistência. Isso já acontece, só vão intensificar a medida.

. Não é por acaso que se usa o termo "exército de contingentes" para se referir, como na guerra, às pessoas trabalhadoras desempregadas. São peças de reposição. Para passar do grupo de excesso de contingentes ao grupo dos indigentes será apenas um pequeno passo. Por isso estão enterrando seres humanos em regime de anonimato, em valas comuns, sem velório, sem ritual de passagem e despedida. Muitas vezes sem que os famliares possam reconhecer o corpo. Há casos em que corpos sao trocados e as pessoas enterram um desconhecido acreditando que é o seu ente querido. O recado é claro. Não somos mais humanos. Somos folhas secas mataveis e descartáveis sem sacralização, sem qualquer cerimônia que nos humaniza depois da morte. Porque já estamos sendo desumanizados antes dela.

Vivemos numa época anti-Antigona.

Na peça de Sófocles (442 a.c.), Antigona posiciona-se diante da tirania do rei Creonte de Tebas quando este decreta que o corpo de Polinices, irmão de Antigona, seja abandonado às portas da cidade para que as aves de rapina o dilacere. A jovem não aceita o decreto e dá sepultura ao irmão.

O que Antigona nos ensina que frente às biopoliticas é preciso instituir o ato ético, aquele que devolve ao homem a sua humanidade no interior do horror de um tempo dessacralizado.

A situação é catastrófica. Não tem nada de humano nas atitudes sanitaristas que ignoram a necessidade de se investir em políticas públicas preventivas. Aqueles que assim se colocam são paladinos da morte e do caos, marionetes da casta predadora brasileira que parasita o Brasil há 500 anos.

Nessa pandemia, enquanto uns se protegem em condomínios fechados a maioria é obrigada a se expor sem proteção.

E essa afirmação acima não se confunde com o negacionismo científico, ao contrário, é exigir que a ciência não se deixe cooptar pelo discurso político ideológico neoliberal para que ela possa sair do circuito da religião e cumprir sua missão no mundo. É difícil até de acreditar, mas está acontecendo aqui e agora; há um colaboracionismo em curso e estamos concentrados. Por isso, nunca foi tão visceral nos fazermos a seguinte pergunta: até quando continuaremos com essa dor no peito enquanto enxugamos as lágrimas por nossos entes caídos?

28mai20

Última modificação: 22:59