Falemos de armas

Sua culpabilidade tornava-me eloquente, porque eu não era a vítima. Quando me sentia ameaçado, não me tornava apenas um juiz, porém mais ainda: um senhor irascível que queria, fora de qualquer lei, atacar o delinquente até fazê-lo ficar de joelhos. A Queda, Albert Camus

Imagine um teórico de direita, à direita de uma mesa, e um teórico de esquerda, à esquerda da mesma mesa. Um debate entre os dois. Ardoroso debate. Fervoroso debate. Monstruoso debate. O da direita, comecemos por ele - por razões de ordem alfabética, sem ideologia - o da direita toma para si, de lugar algum no espaço, um borrifador cheio d'água e, no auge da discussão, borrifa o seu adversário no rosto e finaliza o golpe mortal com um tímido: - ''Bobo.'' O da esquerda toma o borrifador das mãos do adversário e faz o mesmo; borrifa-o, de leve, pela saúde do debate e para o deleite do público, e termina o contra- ataque da mesma forma, com um tímido: - ''Bobo.''

Os Freudianos podem guardar seus sorrisinhos, não há qualquer simbologia libidinosa nestas linhas.

Assim são a maioria dos seus debates, onde cada qual acusa o outro de emitir opiniões calcadas na ideologia da sua 'asa' e defende que suas próprias opiniões não são ideológicas. Toda opinião não-matemática carrega uma ideologia, embora essa ideologia possa extrapolar os limites circunspectos de determinado grupo, como o grupo da direita e o grupo da esquerda brasileiros, provavelmente muito diferentes dos grupos direitistas e esquerdistas dos países: p1,p2,p3...pn, etc. Eu, por exemplo, não li um cara mais esquerdista que George Orwell, que dava a cara a tapa, que participou da Guerra Civil na Espanha contra Franco, que conviveu ao lado de pessoas comuns do povo como poucos e que, no entanto, era um crítico ferrenho da esquerda britânica que abria as pernas para a Rússia Stalinista; para o ''fascismo vermelho'', como bem colocou Reich. Falta senso crítico, tanto de um lado quanto do outro.

Hoje em dia se me posiciono como ''de esquerda'', sou automaticamente entendido pelos falcões da direita como socialista, comunista, anarquista, marxista, leninista, trotyskista, stalinista, maoista, pacifista, castrista, eco-terrorista, petista, trapezista, onanista, lobista, e por aí vai... tudo a uma só vez, em aquarela e com selo ISO 9000. Vejamos, se eu quiser me considerar de esquerda basta que eu olhe pelas minorias, lute pelo trabalhador e pelos direitos trabalhistas, seja a favor da aborto, da eutanásia, seja pró-feminista, a favor do desarmamento, da liberdade de expressão e por aí vai e, bem, se ao contrário, eu quiser me considerar de direita, nem preciso de curso, é só fazer o contrário. Veja bem, os termos direita e esquerda realmente são substitutos para setas, se ele vai para lá, eu vou para cá, e vice-versa, é assim: não tem segredo, o que resta é presença de palco, uma boa lábia e uma cara de pau.

Falemos de armas. A arma carrega um sentido negativo. Por isso um carro, quando descontrolado, dizemos que torna-se uma 'arma'; pois quando controlado ele é um transporte, confortável e agradável aos olhos, e todos gostariam de ter um ou dois; são adoráveis, quando controlados. Mas descontrolados... São armas. O argumento dos esquerdistas contra a liberação das armas é sempre o mesmo: dar armas a quem não sabe usar. Como se se fosse distribuir armas, aos montes, pelas ruas, como camisinhas e ao lhas distribuir dizer, com um sorriso malicioso: - ''use-a com consciência''. Sempre se pula, de propósito ou não, eu não sei dizer realmente, essa parte: a parte negligenciada onde se discutiria o treinamento de quem não as sabe usar. Não se distribui carros por aí, não é verdade? Exige-se eficiência no trato para com o veículo, pois em mãos despreparadas sabemos o que pode se dar: uma terrível 'arma'.

A questão do país estar preparado para essa política é outra história, uma questão complexa que deve ser debatida, e não me proponho a isso aqui, mas a questão é essa, a questão é debater com o povo, como adultos, e não tratá-lo como criança imperativa, isso é o mais importante.

Outro argumento é o de que cabe ao Estado defender o seu povo. No Brasil, isso é piada. Isso, para o Brasil, é o ideal. Está no campo do virtual, do ainda não realizado, está anos-luz de tudo o que se conhece aqui. Ideal para 'eles', é claro. Porque o povo necessitar do Estado para se defender é, a meu ver, um estágio intermediário; não é o fim. Penso como Tolstoi, um homem verdadeiramente livre não precisaria de coerção e leis para viver, porque um homem verdadeiramente livre só o é, e só se tornou livre, por tornar-se ele próprio um ser moral e espiritual. Melhor: concordo em parte com o russo. De qualquer forma isso também é um ideal, uma utopia. Sim, estou ciente. Mas esse não é o ponto. Não há nada de errado com a utopia, a utopia é um modelo a ser seguido; como o sábio o é para o filósofo. Tudo é uma questão de tempo e lugar: eu não vejo a sociedade ideal de Tolstoi aqui e agora.

A questão é que o tempo e o lugar são sempre ignorados. Cada assertiva é impregnada de atemporalidade e universalidade. Em resumo, faz-se um acordo de responsabilidade apenas com o distante porvir, que não existe ou, ao menos, não nos é subserviente.

Eu estou com Kropotkin, Malatesta, Bakunin, e até mesmo com Franz Gall: prisões são ferramentas medievais que deveriam ser abolidas. O que isso quer dizer? Que se eu obtivesse uma chave-mestra anarquista sairia por aí libertando prisioneiros? É claro que não. É o ideal, mas a sociedade deve trabalhar para isso. A nossa não trabalha. Não me entendam mal, somos mujiques de iphone na mão, tentando meter uma TV Led em isbás modestas para assistir aos czares modernos de capa preta decidir os nossos destinos. Franz Gall, que eu mencionei, o pai da frenologia, que sacana, antes de qualquer socialista cool, já via que os homens não se dividem entre 'culpados' e 'inocentes', mas entre 'doentes' e 'sãos', e os últimos deveriam olhar para os primeiros; porque no fim das contas, porque não há uma divisão clara entre sanidade e insanidade, um grau, seja ele positivo ou negativo, dentro dessa escala, produz o outro. Se os 'doentes' são tratados como dejetos e ignorados, estamos condenados a produzi-los em nós mesmos, mais tarde, no corpo social. Gangrena social, como hoje. Se as fezes boiam, nós é que viremos a afundar. Mas o país está longe de sequer sonhar em conceber uma política assim; ela não é aplicável hoje, mas seria, deveria ser no futuro. O mesmo se dá em relação à liberação de armas. É uma questão temporal, não definitiva. Nada é definitivo, nem aquilo que se proclama como tal. É dessa maneira que todas as questões devem ser abordadas, em relação ao hoje. O Estado deve zelar pelo povo, o aforismo. Ele zela, a pergunta.

Guardem as bandeirolas, os bottoms, e os borrifadores.

Um paradoxo: o autor do texto é a favor da liberação de armas, a favor da pena de morte, e também a favor do aborto e da eutanásia. Despreza o exército e a honra marcial. É ávido leitor dos escritores anarquistas. Gosta de filmes em que policial mata bandido, e de filmes em que bandido mata policial. É também ateu, mas admira Borges quando relaciona a perfeição do universo a Deus. Pessimista quanto ao presente, otimista quanto ao futuro. Não acredita que o homem seja inerentemente 'mal', e acredita que essa palavra, assim como 'bem', são quimeras moralistas, não-científicas e deveriam restringir-se à literatura. Hoje pensa assim, e sabe que amanhã poderá pensar diferente, e sabe que é bom que assim seja. E o que ele quer dizer é que, quando se é verdadeiramente honesto, termos mecanicistas, abstrações coloridas de afeto, como 'esquerda' e 'direita' perdem o seu sentido.

Isto é, perdem o seu sentido fora do palco.