O que são ideologias por encomenda? – Parte 1: nazifascismo.

Durante uma entrevista na televisão, na época das eleições de 1989, o líder comunista Luís Carlos Prestes, ex senador e secretário geral do PCB, que nessa época fazia campanha para o candidato pedetista Leonel Brizola, ao falar do PT e de seu nome máximo, Lula, mencionou o termo ideologia burguesa, que, segundo ele, é algo que nós, na sociedade capitalista, somos filiados desde o berço, mas quando estudamos a ciência do proletariado, o marxismo, gradualmente, vamos abandonando essa cultura que nos é imposta pela burguesia através de instituições de poder, como o Estado, a igreja e os meios de comunicação, que compõem a superestrutura. No contexto, Prestes critica o fato do PT e do lulismo não quebrarem em sua totalidade, a mentalidade da sociedade que é moldada pela burguesia. Nessa entrevista, Prestes simplifica o conceito de ideologia, trabalhado por Karl Marx em sua extensa obra.

Logo, é a partir desse conceito que pretendo trabalhar nesse texto a respeito das ideologias por encomenda.

Voltemos para os anos 1920. Nesse período, a Europa acabara de sair devastada da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, por consequência, os países da periferia do capitalismo, outrora subordinados a centralidade do sistema. Nisso, os Estados Unidos, que fora pouco afetado pela guerra (pois só entrou no final), assumiu a responsabilidade de reconstruir a Europa, instaurando suas empresas no continente, fornecendo empréstimos bancários aos governos e vendendo mercadorias, o que lhe permitiu desenvolver sua indústria e aquecer seu mercado. Mas como o capitalismo é um sistema que opera a partir da busca de lucro, não tendo um planejamento econômico capaz de sustentar seu “funcionamento” (afinal, só funciona para quem se beneficia do mesmo, ou seja, os grandes capitalistas), acabou gerando uma superprodução que ia além da demanda, resultando então na quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929 – e para explicar com mais detalhes, deixarei um link explicando como se deu esse fato – o que levou a um agravamento da crise na Europa, levando a perder todo o desenvolvimento econômico conquistado no pós-guerra. Assim, temos a primeira grande crise do sistema capitalista.

As consequências foram à falência de fábricas e indústrias, redes de comércio, crescimento exagerado da inflação, desemprego, desvalorização de matéria prima que servia de base da economia de muitos países (o café no Brasil) etc. Todavia, os governos dos países, tanto da centralidade, quanto da periferia do sistema, optaram por dar continuidade políticas de precarização do trabalho e serviços (para reduzir o custo de mercadoria) e redução no investimento nos serviços públicos, com o intuito de salvar os grandes capitais e oligarquias – algo que já vinha sendo feito desde o fim da primeira guerra. Nisso, a maior parte dos trabalhadores se viu caindo num estado de profunda miséria e fome, acumulando pesadas dívidas com os bancos, que se beneficiaram nesse período com empréstimos. Entretanto, nessa época, algo no oriente assombrava os grandes capitalistas.
Em 1917, os trabalhadores do campo, da cidade, junto às mulheres, o exército e os diversos povos que viviam na Rússia, promoveram duas revoluções. A primeira, de caráter social-democrata, liderada pela frente menchevique, que destituíra o czarismo como poder vigente, mas que não quebrava a ordem burguesa e, logo em seguida, uma outra revolução, liderada pela frente bolchevique, de caráter comunista.
Lenin e os bolcheviques promoveram uma reforma agrária, a saída da Rússia da primeira guerra, a coletivização da produção no campesinato, das poucas fábricas e a entrada dos trabalhadores no processo político do país.
Mesmo com a Guerra Civil, como resposta da burguesia russa e dos países imperialistas favoráveis ao antigo regime, a Rússia formou a URSS, junto a outras nações que aderiram à insurreição popular, levando a um período de concessão conhecido como NEP – que também será explicada com mais detalhes em um link que deixarei aqui – cuja finalidade era desenvolver as forças produtivas, para que se iniciasse a industrialização da União Soviética. Tal processo foi responsável por mostrar ao resto do mundo um crescimento alternativo ao sistema capitalista, que apesar de não ser isento de problemas, se mostrava positivo. Por consequência, os partidos comunistas, oriundos da Terceira Internacional, passaram a surgir em diversos países e adentrar as fábricas, indústrias, bairros populares e outros espaços da classe trabalhadora, defendendo a revolução socialista como alternativa para a população descontente e prejudicada devido as políticas adotadas pelos governos burgueses. Com isso, foram surgindo e se fortalecendo os sindicatos e as greves de trabalhadores, como motor para uma insurreição popular que poderia fazer crescer o bloco soviético recém-formado no Leste Europeu.
Logo, a burguesia percebeu o crescimento do movimento comunista no seio da classe operária e se viu na necessidade de barra-lo, e impedir uma possível revolução de caráter socialista. Mas também compreendia que uma alternativa política não poderia ser construída a partir do discurso do liberalismo, pois este era defendido pelos governos burgueses, que sofriam oposição da classe trabalhadora. Era necessário um discurso antissistemico em sua forma, porém, pró-sistema em seu conteúdo. Nesse cenário que entram grupos políticos orientados por valores militaristas, anticomunistas, ultraconservadores, e de caráter nacionalista-imperialista (futuramente explicaremos a diferença entre os vários tipos de nacionalismo) cujos líderes tinham capacidade oral de convencer os trabalhadores de suas propostas, pois sabiam “falar a língua do povo”. Propostas essas baseadas em demonizar, por meio de um discurso mentiroso, grupos da sociedade que seriam os causadores dos problemas sociais enfrentados pelos trabalhadores (negros, judeus, LGBT’s, imigrantes, etc), como também os governos liberais que permitiam a convivência desses grupos sociais e a existência de partidos e movimentos políticos que representavam uma ameaça ao funcionamento da sociedade, baseando-se em mentiras a respeito da realidade do socialismo soviético e no medo do desconhecido, que sempre foi algo que assustou o povo ao longo dos processos históricos. Com isso, uma parte da classe trabalhadora aderiu o discurso desses grupos políticos, os ajudando a ascenderem ao poder e reprimirem as esquerdas tanto revolucionárias, quanto reformistas. Na Itália, antes mesmo da tomada de poder, os Camisas Pretas, liderados por Benito Mussolini, invadiam e destruíam sindicatos, torturavam e assassinavam militantes e personalidades do movimento operário, atacavam moralmente, em seus veículos de comunicação, os jornais de esquerda e, ao chegarem ao poder (por vias eleitorais manipuladas), promoveram perseguições, prisões e execuções de seus opositores. Na Alemanha Nazista, Hitler inaugurava campos de concentração com comunistas, anarquistas e social democratas, fazendo o mesmo em países que assumiu o controle durante a expansão do império nazi-fascista. O mesmo processo também se deu em outros países que aderiram ao fascismo, como Portugal, Espanha, Japão e o Brasil, durante o varguismo. Junto a isso, os governos instaurados nesses países promoveram políticas de protecionismo aos capitais burgueses, assim como investimento público nos mesmos e colocando grandes indústrias a frente de uma produção que tinha como finalidade a guerra. As poucas políticas como legislação trabalhista, manutenção dos sindicatos, aumentos de salário, regularização das condições de trabalho, etc, foram mais uma forma de acalmar os ânimos dos trabalhadores, para que tivessem a ilusão de conquista. Em outras palavras: política de conciliação de classes.
Historicamente, se sabe que os Estados Unidos, a França e a Inglaterra ignoraram o crescimento do fascismo, pois tinham a equivocada idéia de que a guerra do futuro eixo seria contra a União Soviética, o front oriental, e que após a derrota do inimigo vermelho, eles poderiam se aliar para destruírem o nazismo, que seria um mal necessário. O que, de fato, não aconteceu.
Mas de que forma o nazi-fascismo conquistou corações e mentes?
A ideologia fascista (não usaremos o termo nazi-fascismo porque o nazismo é, basicamente, um fascismo que leva em consideração as teses racistas e eugenistas que também serão comentadas aqui), apesar de não totalmente coerente, visto que foi pró-liberalismo econômico, apesar de utilizar políticas estatizantes servindo a propósitos burgueses, tem como sustentação uma ordem social positivista, autoritária e nacionalista-imperialista por essência. Reconhece a necessidade de uma sociedade dividida em classes sociais, em que a desigualdade social é algo natural do ser humano, e a propriedade é inalienável. Cada camada, os burgueses, os proletários, o Estado e a igreja, cumprem uma função na sociedade e que qualquer quebra desse status quo pode levar a desordem a anarquia (no sentido grosseiro da palavra). No fascismo, o Estado tem o papel essencial de manter essa ordem vigente. Tal lógica que sempre fora sustentada pela ideologia burguesa ao longo de séculos, tornando-se algo consensual para a classe trabalhadora, que sempre fora bombardeada por tais valores, seja na educação, através dos meios de comunicação e, claro, pela igreja católica. Afinal, a sociedade sempre fora comandada por estruturas de poder político e coercitivo em toda a sua história. Seja durante o Império Romano, a era medieval, que mesmo sem a existência de um Estado como instituição, tinha os senhores feudais, o exército e o clero como representações desse poder, e também durante todo o período absolutista. E mesmo com a destruição deste último pela via revolucionária, o Estado liberal-burguês nunca deixou de usar todo o seu poder coercitivo contra os trabalhadores e oposicionistas. Mas não esqueçamos da questão nacionalista-imperialista nesse processo de poder.
Após a primeira guerra, como dito anteriormente, os países da Europa foram duramente afetados pelas consequências desse conflito, mas em especial, os que compunham o eixo sofreram pesadas sanções dos países vitoriosos, tendo limitações na sua produção de armamento e nos seus exércitos, passando então ao povo, um sentimento de ausência de proteção, perante outras nações, além das dívidas que prejudicaram imensamente a qualidade de vida da classe trabalhadora, que associava outras nações a suas mazelas e não a ganância imperialista de seus próprios patrões e governantes. Somando isso a ideia mentirosa de que o socialismo soviético, por ser internacionalista, tiraria a identidade cultural dos países, assim como os processos migratórios (que causavam choque cultural), os fascistas trabalhavam resgatavam o saudosismo por períodos do passado considerados prósperos. Na Itália, Mussolini exaltava o poder do império romano, na Alemanha, Hitler dizia que reconstruiria o império alemão com o seu Terceiro Reich, enquanto Franco e Salazar relembravam quando Portugal e Espanha eram nações desbravadoras, que descobriram o novo mundo e o dividiram ao meio. Todos esses períodos foram marcados pelo domínio sobre outros povos e expansão territorial. O nacionalismo imperialista defendido pelo fascismo buscava colocar suas nações como superiores e subordinadoras.
No Brasil, o fascismo se manifestou a partir das teses patrióticas e pseudonacionalistas do intelectual Plínio Salgado, fundador e comandante do grupo Ação Integralista Brasileira, que viria a ser esmagado pelo governo Vargas, após o golpe do Estado Novo, que resultou na instauração de uma ditadura igualmente fascista. Os Integralistas partiam de valorização de símbolos pátrios, a língua portuguesa, mas também elementos da linguagem indígena, por eles apropriados, principalmente na hora de criar seu lema “Anauê”. Assim como Vargas, Perón, na Argentina, também flertou com o nazi-fascismo, chegando a firmar aliança com o Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas em especial, o nazismo se utilizou de algo a mais: a questão da racial.
Nos primórdios do desenvolvimento do capitalismo, quando a ciência também se desenvolvia, devido a Renascença, tanto muitos cientistas, quanto a igreja católica, passaram a desenvolver teses raciais que defendiam uma suposta inferioridade cultural de outros povos, como os indígenas, os asiáticos, do oriente médio, mas principalmente, os africanos, com a finalidade de justificar o tráfico negreiro e a escravidão dos povos oriundos daquele continente. Assim nasce o que podemos entender como um proto-racismo, que teve seu papel burguês até o final da Era Moderna, apesar de ainda ser fomentado nas Américas, onde a escravidão durou até o século XIX. Entretanto, ainda havia o interesse por parte dos países do centro do capitalismo em explorar recursos naturais e mão de obra escrava ou análoga à escravidão do continente africano, e as teses racistas foram atualizadas, principalmente com o desenvolvimento da teoria da Eugenia, uma espécie de deturpação das ideias de Darwin, por seu primo médico e antropólogo Francis Galton. Tal teoria, junto a outras, que foram tendência entre pensadores burgueses da época, assim como pensadores liberais, serviram de base para o imperialismo no continente africano, com a desculpa de um suposto processo civilizatório, que gerou reorganização da África, juntando tribos inimigas em uma mesma região, desvalorização da cultura local (que só passou a ser reconquistada durante a independência do continente na metade do século XX), pauperização quase total da população africana, etc.
Tal teoria viria a ser aproveitada e piorada por Adolf Hitler, que em sua obra Minha Luta, viria a afirmar que os povos eslavos, oriundos do Oriente Médio, por suas raízes asiáticas e pela presença de muçulmanos, seriam inferiores e seu destino deveria ser a servidão aos moldes escravocratas ao povo alemão, ou povo ariano, como ele mesmo dizia. Teses semelhantes foram aplicadas aos africanos e asiáticos, como exceção do Japão, já que Hirohito era aliado do Eixo (o que já deixa evidente, mais uma vez, as inconsistências teóricas e científicas de uma ideologia burguesa). Já no que se referia ao povo judeu, a ideologia nazista se utilizou de seu malabarismo pseudo-científico para justificar seu extermínio, somando ao ódio motivado pela condição econômica da Alemanha, onde muitos judeus eram banqueiros e, nessa época, lucraram com os empréstimos.
A mesma teoria da Eugenia, também viria a servir de base, junto a revolta de parte da burguesia estadunidense, que vivia no Sul do país, para a criação da organização racista e ultrarreacionária Ku Klux Klan, fundada pela burguesia e parte da classe média norte-americana, com a intenção de caçar, torturar e matar negros, como uma forma de revanche pelo fim da escravidão legal.
No próximo texto, falaremos sobre a propaganda anticomunista disseminada durante a guerra fria, a tese do totalitarismo e o revisionismo histórico promovido por organizações e figuras públicas do próprio movimento comunista.

Sobre a crise de 1929:
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/07/crise-1929.htm
Sobre a NEP:
https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/n/nova_politica_econo.htm
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 19/08/2019
Reeditado em 08/09/2019
Código do texto: T6723646
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