Nossa incapacidade de ouvir, a política e a barbárie
Política é um assunto tão complexo que a própria palavra tem uma gama de diferentes significados, de acordo com o contexto em que é utilizada. Este texto vai tratar da política como a arena onde as diversas ideias e interesses de diferentes atores - população, movimentos sociais, empresários, organizações privadas, sindicatos, etc. - são avaliados, discutidos, julgados e legitimados (ou não) e, cuja apreciação o Estado (entendido aqui como os representantes políticos do país) deverá usar para nortear suas ações. Nessa disputa de interesses, que muitas vezes são antagônicos, a política em ambientes democráticos se destaca como instrumento para fazer valer a vontade da maioria da população, respeitando alguns limites mínimos de respeito aos direitos das minorias.
Me parece claro que a política será de melhor qualidade quanto maior forem os esforços de avaliação, discussão e julgamento das ideias e interesses apresentados. Quanto mais os agentes políticos - e isso nos inclui a todos - estiverem dispostos a debater de maneira racional os assuntos de interesse geral, mais qualidade teremos na construção de ações que nos levarão a um lugar melhor do que aquele onde nos encontramos. Muito mais que votar a cada dois anos, ou criticar um ou outro personagem, grupo ou posicionamento, nossa participação política pressupõe ouvir, interpretar, avaliar, discutir e, somente então, depois de tudo isso, se posicionar; e é aí que complica.
Complica porque vivemos um tempo onde todos querem se posicionar, mas ninguém quer ouvir. Só o que ouvimos são os ecos de nossas próprias ideias, através das nossas próprias manifestações ou através de outros autores, que acreditamos expressar nossas ideias de maneira mais clara (e por vezes glamourosa) que nós mesmos.
Temos uma enorme dificuldade em ouvir opiniões opostas às nossas e de antemão julgamos, tanto a opinião quanto aquele que opina, como inferiores, idiotas, manipulados ou vendidos. E a tecnologia só tem potencializado este comportamento; isto porque enquanto há alguns anos todos se informavam das mesmas fontes (telejornais, jornais e revistas), hoje cada um escolhe qual o tipo de opinião que deseja escutar sobre o mundo. Afinal, da mesma maneira que os sites de venda online descobrem nossas preferências de consumo através de nosso histórico de consultas e de compras e nos oferecem produtos específicos para nosso perfil, as redes sociais e os sites de notícias também direcionam para nossas telas as matérias, comentários e “posts” que tem maior chance de receber curtidas.
Assim, ao mesmo tempo que hoje temos ao nosso alcance uma enorme variedade de pontos de vista, acabamos nos cercando, mesmo que inconscientemente, pela repetição infinita e amplificada da nossa maneira de pensar. E isso nos isola das opiniões diferentes, num perigoso processo de negação da pluralidade de pensamentos e ideias. Como só recebemos informações que fazem coro com aquilo que pensamos, somos induzidos a pensar que todos no planeta pensam como nós e, por consequência, aquele que tem uma opinião contrária a nossa, tem uma opinião diferente de “todo mundo” – no caso, o nosso “todo mundo” particular – e, portanto, só pode estar errado. E se ele continua com essas opiniões erradas, mesmo com “todo mundo” dizendo que ele está errado, só pode ser porque ele é um completo idiota ou está ganhando alguma coisa com isso, seja um pão com mortadela, uma verba do governo, o patrocínio da FIESP, dos irmãos Koch ou da CIA, ou a promessa de algum cargo num governo (atual ou futuro).
Tudo bem, eu concordo que existem uma boa quantidade de pessoas idiotas e de outros que estão vendendo o seu posicionamento político por algo, mas acreditar que qualquer uma das multidões que tem participado das manifestações recentes seja comprada ou idiota, é acreditar na existência de uma quantidade infinita de mortadela ou ter uma ideia muito – mas muito mesmo – superestimada da própria inteligência em relação à do resto do mundo.
Mais do que deslegitimar o pensamento alheio, esta recusa em ouvir desumaniza também aquele que fala, fechando assim a porta para o debate e abrindo uma verdadeira caixa de Pandora cheia de estupidez e a intolerância, demonstradas diariamente de maneira assustadora através de ofensas na Internet, hostilidades a artistas e pessoas públicas, discursos de ódio em manifestações, ameaças de todos os tipos, espancamentos e, recentemente, até negação de atendimento médico àqueles que enxergam o mundo de forma diferente.
Esse comportamento tipicamente autoritário é o oposto do que prega o conceito de política e nos remete a um tempo, não muito distante, em que era crime pensar diferente. E, por mais que essa criminalização do pensamento alheio possa favorecer as minhas opiniões hoje, eu não apostaria nesta atitude, afinal amanhã o pensamento criminalizado pode ser o meu.
Não é coincidência que este “não-debate” se acirra ao mesmo tempo em que fica cada vez mais difícil enxergar uma saída para a situação do país. Não há como resolver uma crise política como a que vivemos – e esse é o primeiro passo para sairmos da crise econômica – sem que se tenha algum tipo de consenso sobre os caminhos a serem tomados. E consenso não nasce sozinho; exige discussão, troca de ideias, debate, pensamento crítico e até uma certa disposição para abrir mão de algumas certezas em favor da solução do problema; precisamente aquilo que nos falta.
Ouvir o outro não é tarefa impossível, mas exige que nos livremos de nossos preconceitos contra quem pensa diferente e nos esforcemos para julgar as ideias somente com a razão, e não com a bile que tomou conta do nosso fígado e já ameaça uma pane geral no cérebro. Não é preciso nem concordar com o outro, só é preciso ouvir, respeitar, e admitir que alguns dos pensamentos com os quais você discorda podem ser legítimos e merecem ser levados em consideração de maneira civilizada. Não custa ter em mente que problemas complexos dificilmente se resolvem com soluções simples, e que soluções complexas exigem que olhemos para o problema de vários ângulos diferentes.
É isso, ou a barbárie. E não se engane, a barbárie já está batendo em nossas portas.