Coisa dos Homens
Questões de ordem religiosa e social foram sempre o “pano de fundo da instabilidade política e governativa da República do Afeganistão”, proclamada em julho de 1973. Opositores do governo, em especial “os muçulmanos mais devotos entre as tribos das montanhas”, os chamados “mujaheddins”, dão início a um movimento de resistência armada. Os governantes pedem então ajuda à URSS e a partir de 1979 o Afeganistão é ocupado pelo Exército Vermelho.
Não conseguindo sufocar a revolta e neutralizar a resistência, até porque os guerrilheiros começaram a ser ajudados pelos Estados Unidos e por outras nações muçulmanas, “entre maio de 1988 e fevereiro de 1989, Moscou retirou as suas desgastadas tropas do Afeganistão, mas a guerra civil continuou tão ou mais violenta do que antes”.
Após mais dois anos de conflitos, “um grupo de sunitas ultrafundamentalistas começa a ganhar terreno – os Talibãs. Que em 1996 invadem Cabul (capital do Afeganistão) e tomam o poder, “instaurando uma política fundamentalista islâmica extremamente rigorosa”. Ocasião em que podiam ser achados nos quintais das casas panfletos contendo o seguinte, a julgar pelo belo livro “A Cidade do Sol”, de Khaled Hosseini:
"Somos agora o Estado Islâmico do Afeganistão. Eis as leis que começam a vigorar e às quais todos devem obedecer:
Todos os cidadãos devem rezar cinco vezes ao dia. Quem for apanhado fazendo outra coisa nas horas de oração, será espancado.
Todos os homens deverão deixar crescer a barba. O comprimento correto é pelo menos um punho fechado abaixo do queixo. Quem não cumprir essa determinação, será espancado.
Todos os meninos devem usar turbante. Da primeira à sexta série, turbante negro. Séries superiores, turbante branco. O colarinho das camisas deve ser abotoado.
É proibido cantar.
É proibido dançar.
É proibido jogar cartas, xadrez, fazer apostas e soltar pipas.
É proibido escrever livros, ver filmes e pintar quadros.
Quem possuir periquitos será espancado, e os pássaros, mortos.
Quem roubar terá a mão direita cortada na altura do pulso. Quem voltar a roubar terá um pé decepado.
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Quem for apanhado tentando converter um muçulmano à sua fé será executado.
Atenção mulheres:
Vocês deverão permanecer em casa. Não é adequado uma mulher circular pela rua sem estar indo a um local determinado. (...) A mulher que for apanhada sozinha na rua será espancada e mandada de volta para casa.
(...) Sempre que saírem à rua, deverão usar a 'burqa'. A mulher que não fizer isso será severamente espancada.
Estão proibidos os cosméticos, joias, roupas atraentes.
Não deverão olhar um homem nos olhos.
Não deverão rir em público. A mulher que fizer isso será espancada.
Não deverão pintar as unhas. A mulher que fizer isso perderá um dedo.
As meninas estão proibidas de frequentar a escola. Todas as escolas femininas serão imediatamente fechadas.
(...) A mulher que for culpada de adultério será apedrejada até a morte.
Obedeçam.
Tratam-se de leis que talvez nos assustem no Ocidente por nos parecerem estranhas. Sobretudo em relação às mulheres que, apesar de toda a tolerância e da sua ascensão social, ainda não se acham totalmente emancipadas no Ocidente. No entanto, jamais concordaríamos com o apedrejamento de uma mulher por ter cometido adultério ou com o fechamento de escolas para meninas.
Acreditamos que sejam leis fundamentadas no Alcorão, o livro sagrado do Islã. Será que nele se incluem essa série de medidas punitivas aos cidadãos?
O que não seria, em certo contexto, muito diferente da Bíblia, onde o aspecto punitivo não é menosprezado – temos o pecado venial, o pecado mortal. Poderemos ter agora o pecado virtual – que é o cometido pela internet. Com o mortal não se entra no céu. Com os outros, talvez se dê um jeitinho. Sexo só após o casamento. Padres não podem casar. E existiriam ainda inúmeras outras razões, sociais ou políticas, e até naturais, para que um religioso ou cidadão comum seja excomungado pela Igreja. Todos sabemos dessas punições.
De qualquer forma, se Deus é um só, em todas as religiões, a julgar pelas punições que em seu nome são impostas às pessoas, trata-se de uma figura implacável e que não tolera o menor desvio ou deslize comportamental das criaturas que concebeu. Quem for procurar remanso, conforto, tolerância, compreensão, ajuda, convívio mesmo com qualquer dos líderes espirituais maiores dos diversos tipos de religião do planeta, terá que ser tão puro como a água mais cristalina encontrada nos montes mais elevados. Ou cumprir rigorosamente todas as normas estabelecidas por esses diversos líderes ou pais espirituais maiores. É como aquela prova em que não se pode tirar menos que dez, isto é, tem-se que acertar tudo.
Concluímos, portanto, que Deus não pode ter imaginado níveis tão diferenciados de intolerância, brutais ou mais amenos, a serem impostos àqueles com quem decidiu povoar o planeta. Sobretudo em relação às mulheres, que duvidamos que tenha sido divina a pretensão de que elas fossem inferiorizadas. O que parece ter tido início, no caso do cristianismo, com a história da maçã.
A conclusão a que se pode chegar, embora possam achá-la precipitada, é que tudo não passa de história dos homens. E aí não se trata de latu sensu. Mas sim do que diria João Bosco, no belo samba “O Ronco da Cuíca”:
“alguém mandou parar a cuíca
é coisa dos home...”
O leitor tem o direito de suspeitar que o texto tenha o ateísmo como pano de fundo. Apressamo-nos em dizer que não é nada disso. O que não se concebe é um Deus cruel, déspota, não protetor, machista e apenas punitivo. Porque estamos cansados de saber que isso é coisa dos homens. Não divina.
Rio, 19/09/2014