Santa Democracia
Ele reside em Santa Catarina. Ouvimos o seu nome no noticiário, mas não lembramos. Estudou 135 ou 138 línguas. Fala algumas delas, dentre as quais o russo e o chinês. Na época da ditadura, uma tragédia brasileira, ele perdeu seu emprego na Petrobrás por ter falado em público o russo e o chinês. Enquanto isso, o governo dos EUA concedia bolsas de estudo aos cidadãos americanos que quisessem aprender aqueles dois idiomas. Sem ter deixado de promover o anticomunismo pelo mundo e conceber algumas ditaduras para os países do chamado Cone Sul, dentre eles o Brasil.
Essas são notícias transmitidas pela TV, revistas, matérias nos jornais, etc. Do mesmo modo que em documentários, como “Jango” ou "Dossiê Jango”, que nos mostram a participação direta do governo americano no golpe de 64 em nosso país.
A tragédia da ditadura prejudicou drasticamente o ensino e a educação no Brasil, estabelecendo o fim do regime seriado, com a provável preocupação de acabar com o surgimento de lideranças. Regime, não obstante, mantido nas escolas militares.
A ditadura foi também a responsável pelo desaparecimento de centenas de brasileiros, alguns cujos corpos jamais foram encontrados. No que se configurou talvez no pior de seus crimes.
Nessa época, um cidadão, regressando ao país, precisou entrar aqui meio metamorfoseado. Ou, se identificado, seria preso, certamente torturado e hoje poderia não estar entre nós.
Tratava-se de José Dirceu. Uma liderança nos idos de 64. Pudemos ler fatos de sua vida num dos livros por ele escrito, juntamente com Wladimir Palmeira. E os considerávamos heróis.
Depois, com a redemocratização do país, Dirceu teve a confiança do povo, junto com o seu partido, como muitos dos que lutaram contra o bárbaro regime ditatorial, para ocupar um posto de relevância no governo federal.
Para nossa surpresa, hoje seu nome, como os de alguns companheiros seus, pelos quais já tivemos a chance de torcer, acha-se incluído no rol de pessoas submetidas à maior corte jurídica do país por procedimentos julgados indecorosos ou criminosos. O que culminou com a sua condenação, sendo respeitado o amplo direito de defesa. Pelo menos é o que se noticia pela imprensa. Ou o que decorre das informações a que nós, brasileiros comuns, temos acesso.
Condenação, por sinal, sui generis. Porque combatida por ministros do STF mais próximos do governo, a quem poderia interessar a preservação de alguns réus, Dirceu entre eles. E defendida pelo ministro chefe da Suprema Corte, nomeado para o cargo pelo governo federal. Num demonstração de presumível isenção, o que sempre esperamos que aconteça no meio democrático.
E agora, mais uma vez através do noticiário, ficamos sabendo de possíveis pressões do governo brasileiro para que se amplie o direito de defesa concedido aos réus da Ação Penal 470. Através de procedimentos jurídicos destinados à promoção de um novo julgamento, que pode ter a extensão de meia ou uma década. Ou seja, com a possível intenção de que ninguém seja punido. Trazendo-nos, portanto, o que se torna comum em nosso país, o que conhecemos por impunidade. Geradora de tantas condutas irregulares, ilícitas ou criminosas que se repetem pela possibilidade cada vez mais concreta de não serem punidas. Como a que ocorre agora, com o desvio de perto de R$ 400 milhões que se verifica no Ministério do Trabalho.
Ora, se um médico cometeu comprovadamente um erro ou crime doloso, ele não deve merecer a proteção do seu conselho; se um policial foi comprovadamente arbitrário ou criminoso em sua vida funcional, ele não devia ser protegido por seus pares; se um juiz é alvo de acusações por crimes comprovadamente por ele cometidos, não deveria caber o foro privilegiado para o seu julgamento. Aliás, o mais democrático é que não existisse foro privilegiado em circunstância alguma.
Ou então, de que adianta nos vangloriarmos de que vivemos no seio de uma democracia? Só se definitivamente não aprendemos, com nossos pais e avós, que não se pode servir a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.
Rio, 12/09/2013