segunda-feira, 8 de agosto de 2022
Um caso espantoso de memorização.
“A maior parte de nossa memória está fora de nós...”
(Marcel Proust)
CESAR VANUCCI *
Tempos outros. A televisão não passava de experiência incipiente, de lá do estrangeiro. O rádio era o veículo de comunicação com grande poder de penetração, mas limitado na capacidade de cobertura dos acontecimentos em regiões distantes. O Brasil ainda não havia despertado para as conquistas do desenvolvimento, incrementadas sobretudo na “era JK”. Incontáveis registros de fatos relevantes passavam desapercebidos, diferentemente do que hoje ocorre, do grande público em escala nacional. Ficavam circunscritos a ambientes mais fechados. Mesmo quando divulgados com intensidade, naturalmente relativa, alcançavam ressonância reduzida, se consideradas as dimensões continentais do país.
Nessa época, em ambiente interiorano, fase da adolescência, tomei conhecimento do maior fenômeno de memorização de textos de que já ouvi falar. O assim chamado “Salão Grená” da PRE-5, Rádio Sociedade do Triângulo Mineiro, Uberaba, funcionava como um centro cultural. Provido de 500 poltronas, localizado em ponto estratégico do centro urbano, abrigava eventos artísticos, culturais, mesas-redondas, por aí. Para boa parte das promoções realizadas havia cobertura radiofônica, o que ampliava, consideravelmente, a divulgação. A emissora, pioneira na região, pertencia ao grupo “Lavoura e Comércio”, criado pelo saudoso jornalista Quintiliano Jardim. O jornal diário circulou por mais de cem anos, até o comecinho deste século.
Colegial fissurado em manifestações culturais, vi atuar, no local, numa série de aplaudidas audições, um cidadão dotado de capacidade inigualável para memorizar textos. Jamais tive notícia, nem antes nem depois de conhecê-lo, de ninguém com predicado – ou que outro termo possa existir para classificar seu desempenho – em condições ligeiras de igualá-lo naquilo que fazia.
Ele reproduzia, com absoluta exatidão, palavra por palavra, detendo-se nas pausas recomendadas pela pontuação, textos inteiros, de qualquer natureza, verso ou prosa, com ou sem menção de números, lidos cuidadosamente por outrem. Discursos, poemas, trechos de romance, trabalhos técnicos, tudo era absorvido com precisão. E, ao depois, repetido. A reação da plateia oscilava entre a perplexidade e o deslumbramento. Lembro-me bem de que, ao anunciá-lo, o mestre de cerimônia narrava saborosas historietas, alusivas a demonstrações dadas pelo nosso personagem, em respeitáveis ambientes frequentados por líderes políticos e intelectuais de renome. Nem bem o expositor, debaixo de aplausos, dava por finda a fala nesses encontros e já o cidadão dono de memória prodigiosa surgia em cena, solicitando permissão para usar da palavra. Em tom sério, pondo todo mundo confuso e nervoso, “garantia” que o texto apresentado não passava de “descarado plágio”. Tanto isso “era verdade”, acrescentava ele, confessando-se o “verdadeiro autor” do texto, que iria repeti-lo, ali, naquele mesmo momento, parcial ou integralmente, sílaba por sílaba. A atmosfera pesada reinante só se desfazia quando, entre risos e pedidos de desculpas, surgia a explicação acerca dos inacreditáveis dons de memorização do “inoportuno” aparteante.
Nunca me esqueci do nome desse cidadão, tão vigorosa a impressão que deixou registrada, de suas habilidades incomuns, no espírito dos que testemunharam essas proezas nas diversas vezes em que se apresentou no “Salão Grená”: Eurícledes Formiga. Os anos se amontoaram, nada mais ouvi contar, adiante, a seu respeito. Até que, outro dia, um conhecido falou-me da existência em Belo Horizonte de um centro espírita que traz esse nome como patrono. Imaginei naturalmente tratar-se da mesma pessoa. Mas, tanto quanto me recorde, naqueles tempos, a fantástica condição de produzir “reprografia cerebral” de Euricledes, reconhecida como inexplicável e extraordinário fenômeno, não se achava vinculada a nenhuma atividade de cunho religioso.
*Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br).