Fragmentos dum inventário
Colheres - no caso das de mesa, como são coletivas, em geral, fica difícil lembrar de uma ou outra especificamente. Mas me vem à lembrança um par delas:a colher de pau, provavelmente pau de gameleira, que chegou em casa pelas mãos de mamãe. Ou ombro, pois se tratava de um utensílio enorme, mas de boa serventia, até para desencorajar criança de fazer lambança ou estripulia. Não chegava a ser um primor escultural, mas mexia bem um doce, ou um mingau.
Havia sempre a colherona de ferro, que muitos diziam, era feita em
forjas primitivas, usando-se restos de enxadas, que muito usadas vão ficando pequeninhinhas, arredondadas. A colherona era sempre preta, um tanto tosca e que de tanta mexeção no feijão acabava, tal como as enxadas, sumindo na concha, de tão frequente a fricção no fundo
das panelas de ferro. Testemunhamos pelo menos um caso em fase (quase) final de consumição: a colher de Tibebé, a Tia Isabel, que praticamente tinha se resumido ao cabinho e um coto, bem cotozinho, após décades de uso, antes de sua abolição.
A máquina de cortar cabelo - foi por ela que aprendi meu primeiro rudimento de alemão, bem como o peso da mão. Papai a comprara em BH, e ela veio acondicionada numa caixinha de papelão bem duro e com aquele rótulo azulado, inesquecível: Haarschneidemaschine. Literalmente, para os não iniciados e os avançados no idioma de Wagner, isso quer dizer: instrumento de tortura. Ah, como era penoso um corte de cabelos sob a regência paterna. E tudo em nome da boa economia - e do aprendizado de um ofício de utilidade. Não creio que a culpa fosse só da máquina que, manual, tudo fazia para acompanhar o
ritmo de papai, por vezes prendendo e arrancando, ao invés de cortar, uns fios renitentes entre seus dentes.
Pode ser também que maiores culpados sejam esses meus pelos, em criança tão espetados, feito arame sem se dar conta da iminente tsunami. Daí, os 'caminhos de rato' proliferavam e as tentativas de emendas nada emendavam, deixando o soneto acabar em falsetto.
A leiteira - me lembro da nova, de metalumínio, feito uma leiteira de verdade, com tampinha bem ajustada, alcinha metálica e tudo. Tinindo de novinha, começamos brincando com ela, na casa de vovó, até a inevitável queda, sem consequência, pois o chão era de tijolajotinhas e nem arranhão houve, a não ser alguma repreensão que sempre se ouve nesses casos e cacos. E o leite ainda não se lhe derramaria por estar então, a leiteirinha, da silva vazia.