Golpes poéticos, do grande William Lagos

William Lagos

qua., 26 de out. 19:19 (há 15 horas)

para Mauren

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O GOLPE DO SERRALHO 1 – 22 OUT 22

Ter um harém não me faria mal,

mas não composto por mulheres indolentes,

cujos mútuos carinhos mais frequentes

seriam que o meu beijo triunfal;

que preferissem o prazer mais natural

e para filhos tivessem ventres quentes,

que amamentassem, sem serem indiferentes

os seus corpos de mim, meu Santo Graal...

Porém que todas elas trabalhassem,

que tivessem profissões, se realizassem,

sem depender de mim para o sustento

e que, no entanto, mesmo assim me amassem

e em meu labor também colaborassem,

sem perturbar-me com qualquer lamento!

O GOLPE DO SERRALHO 2

Ter um serralho assim, bem que me dera!

Eu trataria a todas por igual,

juntaria os filhos em abraço paternal

e protegê-los do mundo bem quisera!

Mas este sonho patriarcal de fera

só viveria em um mundo original,

em cujo onírico me tornasse divinal

e que todo o desejado me provera!...

Um universo apenas meu, solipsista,

em que nunca padecesse de moléstia,

nem viesse a sofrer necessidade

e que apenas para mim assim consista,

numa arca multicor durante a séstia,

sem que jamais perdesse a mocidade!

O GOLPE DO SERRALHO 3

Se Afrodite me aparecesse em sonho,

a oferecer-me o amor de uma mulher,

de cinco ou dez, de quantas eu quiser,

mediante culto em que meu peito exponho,

em sacerdote para ela me componho,

sem encontrar competidor sequer,

para o amor esfolhando bem-me-quer

e a sorteada sobre o colo então reponho.

Mas Afrodite foi por demais gentil

e para a Vênus romana se rendeu,

na releitura da Grande-Mãe aprisionada

e desse modo, em meu delírio varonil

jamais teria esse harém que fosse meu,

franzido o cenho, a minha prece recusada!

O GOLPE DA EXTENSÃO 1 – 23 OUT 2022

Um beijo é tudo e um beijo não é nada:

tanto se pode amar candentemente,

quanto se pode odiar ardentemente,

a bruxa beija como beija a fada!...

Um beijo pode ser vara encantada,

que transforma em milagre reluzente

o tédio desta vida; ou complacente

concessão mercenária contratada!

Mas nesse beijo teu, dado de leve,

cujo sabor em minha boca ainda se alonga,

quais cristalinas bênçãos naturais,

minha mente confiar nele mal se atreve,

já que ódio é uma palavra muito longa,

enquanto amor é em geral curta demais!...

O GOLPE DA EXTENSÃO 2

Em geral, não se permite à paixonite

que cresça em demasia e nos domine!

Mas não é sempre que controlar se atine,

se o par ao lado para ela nos incite...

Desejo real é que só o amor habite,

já que em nosso coração puro retine,

que um pacto de sangue então se assine,

e não um abraço breve que se quite...

mas sendo a vida peripécia inesperda,

chega a paixão que não conduz a nada,

chega o desejo que só quer ser consumado

e esse palavra amor é então truncada,

fica somente um “mór” ressentimento,

longo rancor a retalhar o julgamento...

O GOLPE DA EXTENSÃO 3

Infelizmente, por longo seja o beijo,

não poderá preencher todo o futuro,

nem nos garantirá destino puro,

nenhum beijo a ser mais que puro ensejo;

infelizmente, o beijo do desejo

poderá nos conferir destino duro,

se for cortado por ódio como um muro,

ou quando parte como um leve adejo.

E é bem mais fácil que o ódio permaneça,

mesmo que seja abrandado por rancor,

quando a paixão extinguiu-se de vazia;

mas que esse beijo de amor entre nós cresça,

sem ser truncado em momento de temor,

quando o sabor de sua saliva se extinguía!

O GOLPE DA TOCAIA 1 – 24 OUT 2022

Um dia contemplei esses lambrís da sala,

recobertos por máscaras brilhantes,

ocos profundos em sonidos inquietantes,

nas mudas bocas dessa oculta gala...

Então pensei em tanta boca que se cala,

por detrás desses lambrís obsedantes,

fantasmas de argamassa redemoinhantes,

mostrando lábios retorcidos e sem fala.

Fiquei então a imaginar antigas mortes,

a me espreitar das cascas das cabeças,

que sem abrir seus lábios me sorriem,

decapitadas por certeiros cortes,

tal como o amor no dia em que me esqueças,

sem zombaria sequer que os olhos criem...

O GOLPE DA TOCAIA 2

Nas frestas de madeira dos degraus

que revestem a escada de cimento,

pressinto dedos gélidos de alento,

lenta tocaia para meus dias maus,

dentre essas pobres lâminas de caos

que cumprimentam o passo desatento,

mas desatentas de todo o comprimento,

que se contraem no sabor dos graus...

Ficam apenas nessa espera de armadilha,

para puxar qualquer incauto visitante

para esse limbo soturno de suas traças,

guardiãs famélicas da ascendente trilha,

a devorar quem se perde nesse instante

em que emergem triunfantes suas desgraças!

O GOLPE DA TOCAIA 3

Tal sorte rubra oculta o meu destino,

nem me mostra o azul da boa sorte,

nem me apresenta o negro da má morte,

é uma roleta num badalar de sino;

não nos garante qualquer favor supino,

nem ameaça com mais profundo corte,

tal sorte rubra talvez que nos aborte,

tal sorte gris de algum sucesso pequenino.

Deste modo, se confiar em profecia,

seja em manual quiromancia de cigana

ou nessa tão propalada astrologia

ou em juízo final que nos irmana

é como crer nessa canção profana

de uma fresta ou lambril que nos espia...

William Lagos
Enviado por Paulo Miranda em 27/10/2022
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