O ESQUELETO DOS SONS

Ainda que de natureza antiga e por vezes repetitiva, a palavra reinaugura o mundo a cada instante que exsurge com sua mágica de encantamento e mistério. Tenhamos em conta os felinos de casa: cada som de suas entranhas tem plausível tradução. E eles esperam, pacientemente, com seus olhinhos enigmáticos, que possam ser entendidos por nós. Vivo rodeado de gatos e suas traquinagens. Sinto que me dou relativamente bem nesse universo incomum: traduzo-me neles e me atrevo em tentativas de um idioma de troca. Os de hábitos diurnos caçam lagartixas, insetos e borboletas tontas pela ação do sol de verão. Felinamente, nós, os predominantemente soturnos e notívagos, brincamos nos acesos neurônios da fome de criação. Nos gatos, até a voz inominada é enigmática. A poética – difusa – trai-se em cada miado amoroso. O analfabeto de sensações táteis processa e perpassa a impotência. Ainda assim, mudos neurônios dialogam com alguns olhos silentes de estrelas nuas. Desde milênios, a ideia, nos bichanos, começou sua gestação. E nós seguimos o rastro da longa cauda de aprendizagens.

– Do livro inédito A VERTENTE INSENSATA, 2017/20.

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