Reflexões Sobre a Literatura, Liberdade, Preconceitos e a Esquerda
Ter sido um escritor foi uma das melhores coisas a ter acontecido . Colecionei momentos, e os guardei em textos, que em minha maior memória, a consciência, permanecem comigo.
Revivo o texto que escrevi sobre Guevara, pelo qual tenho sido muito criticado, mas explica o lance do escritor e da literatura.
Guevara não é meu herói; mas já foi, há mais de 50 anos, quando eu sonhava com um mundo melhor, mas não entendia que eu deveria construí-lo, primeiro em mim mesmo, para que se projetasse, depois, para os outros seres humanos. Aquele deslumbramento pelo herói argentino em minha juventude foi passageiro, até que eu conhecesse o verdadeiro herói, argentino também, que me orientou, quando eu tinha uns 20 anos, e me disse ; faça você um mundo melhor.
Carlos Bernardo González Pecotche, filósofo e pensador, instrutor de instrutores, haverá de ser reconhecido pela humanidade do futuro como o precursor de uma nova cultura.
Falo em seguida de Guevara com certa tristeza, pelo sonho perdido e inútil, que ele teve, como eu.
Mas, como faz parte da História, não posso apagá-lo.
Que os jovens de hoje se cuidem, para não serem enganados por ideologias exóticas, sedutoras, mas que a nada levam.
Peço desculpas, aos meus amigos, se em algum momento possa transparecer uma intenção de elevar a figura do guerrilheiro implacável e cruel; o lance do texto, o contexto, é a literatura, que me sustentou ao longo da vida, e que poderá ser útil a quantos me lerem.
O Leitor Guevara
Guevara é capa do livro O Último Leitor do escritor argentino Ricardo Piglia; é uma foto do leitor isolado em cima de uma árvore na Bolívia, em plena luta armada.
O guerrilheiro da década de sessenta surge como o leitor incansável, que sonhara ser escritor. ”Naquele tempo eu achava que ser um escritor era o título máximo a que se podia aspirar”, escrevera certa vez a um amigo. O jovem viajante de uma América esquecida imaginou escrever sobre as aventuras de um turista ímpar a procura de um enredo. Antítese do Quixote, que pretendera viver as aventuras lidas, o argentino escolheu viver, experimentar, para depois escrever. E sempre acompanhado dos livros, amigos inseparáveis, desde a infância até o triste desenlace de sua execução na selva boliviana.
Ernesto Guevara de la Serna nasceu em Rosário. Prematuro e asmático foi viver numa região serrana para se curar. Por causa dessas limitações, inclinou-se à literatura, tomando contato com Cervantes, Julio Verne, Garcia Lorca. A mãe mantinha ligações com a esquerda e o pai fundou a Ação Argentina. Em 46 mudou-se para Buenos Aires indo estudar medicina. Interrompe os estudos em 52 para viajar pela América Latina, retomando-os em 53 para concluí-los, caindo novamente na estrada para nunca mais voltar à Argentina. Casa-se no Peru, e depois no México, onde ganha o apelido de Che, por usar sempre esta expressão quando falava com as outras pessoas. Em 61 esteve no Brasil e foi condecorado com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, pelo então presidente Jânio Quadros, e foi executado na selva boliviana em oito de Outubro de 67 em La Huigera, aos 39 anos.
Guevara amava os livros. O último leitor não escrevia para viver, mas vivia para escrever. A literatura era sua redoma. Preocupava-se com as pessoas simples, o trabalhador, o iletrado, o crente, o enganado. O médico e intelectual abandonou sua poltrona de couro e a comodidade das bibliotecas para lutar pelos deserdados. A inteligência deste despojamento é duvidosa, mas o seu sentimento de solidariedade é inquestionável.
Guevara o médico, o repórter, o leitor, o escritor, o líder, o guerrilheiro. Herói mítico moderno, carrasco do paredão, ministro da economia, andarilho despojado, anarquista, culto, malvestido, anti-religioso, combatente na América e na África, o que não conseguiu cumprir com o sonhado destino redentor em sua amada Pátria.
Ernesto Guevara criou sua própria ficção. Para Piglia, um homem puro, o último leitor, o que num momento de desolação na selva foi capaz de subir numa árvore e alhear-se de tudo com um livro às mãos. O que sempre carregava à cintura o peso - para muitos inútil - da literatura. E um caderno de anotações para consignar o drama que criara para si e os seus leitores.
Literariamente, lembra-nos Hemingway, que também construía vivências para depois escrevê-las. Espiritualmente, todos aqueles - e foram tão poucos - que se comoveram com as injustiças impostas a tantos homens e sentiram em si suas dores, experimentando os sofrimentos dos irmãos e agindo, da forma como puderam ou souberam, para confirmar sua solidariedade. Espíritos que, nos acertos ou equívocos, tiveram seus nomes inscritos no grande livro que conta a trajetória sofrida do homem na Terra.
A revolução cubana destronou um ditador para erigir outro. Os idealistas daquela época não chegaram a compreender que mudanças de regime e governo não chegarão jamais a resolver os grandes problemas humanos, pois suas soluções dependerão do enfrentamento que o ser humano deverá travar consigo para modificar-se e construir um mundo melhor.
Qualquer melhoramento social dependerá da educação, que liberte o indivíduo das amarras dos preconceitos, que anulam a inteligência transformando-o num homem-massa, facilmente manipulado por qualquer ideologia exótica. Todo assistencialismo é inócuo por ser uma ajuda indiscriminada, muitas vezes por meio da violência, desestimulando os mais capazes, com os quais se poderia contar para empreender um grande projeto educacional.
A conquista da liberdade e da independência é uma jornada individual, que depois se projetará por toda a sociedade.
Conta-se que em seus últimos momentos, ferido e debilitado, Guevara passou numa escolinha daquela pobre região boliviana onde foi socorrido pela professorinha local; e que suas últimas palavras foram: ”Falta o acento”. Referia-se a uma frase escrita na lousa: ”Yo sé leer”.
Como muito bem escreveu Ricardo Piglia, “morreu com dignidade, como um personagem de um romance de educação perdido na história”.
Nagib Anderáos Neto