Recortes sobre a não-leitura e as más leituras

Boécio, estadista e poeta romano, que não conhecia os livros de auto-ajuda, consolava-se com a filosofia.

Augusto Dito

Wittgenstein em 90 minutos na mochila. E o Tractatus? Pergunte ao pó.

Lú DiCantares

É fato, cada vez se lê menos..., pensa Lafcadio, o Bazárov francês de André Gide, num velho trem sob as últimas luzes do século XIX. Não se lê mais, ele diria, se contemporâneo nosso fosse. Conclusão um tanto quanto injusta, é verdade, um tanto quanto sofismática, enquanto menos que meia verdade, porquanto exigente.

W. Somerset Maugham já notara com amargura o papel do livro como mero entretenimento, aquilo que se busca quando se tem tempo, ou nada melhor para se fazer; foram mais ou menos estas suas palavras no seu O Fio da Navalha. George Orwell, um tanto moralista, que se gastava mais com cigarros e bebidas na Inglaterra que com a leitura.

Saiamos do século XX, e retornemos um pouco, para o tocador de flauta Arthur Schopenhauer. Para ele, mais importante que ler, era saber o que ler, mais do que isso, ler com parcimônia. Que a leitura é necessária à manutenção do pensamento, mas não deve tornar-se substituta para o mesmo; pois quando se lê, dizia ele, se pensa com a cabeça do outro. Há de se ter cuidado com semelhantes possessões.

Daí chega-se a outro ponto: quando se lê sem o devido respeito, que é outra forma de ler coisa nenhuma. Se se lê, lê-se com pressa, sem saborear as palavras, sem apreender os sentidos, as sutilezas e os nuances dos tempos, as expressões carregadas de afetos pessoais determinadas por um tempo outro estranho ao nosso; salta-se por sobre as estruturas gramaticais; e é por isso o declamar belo, a escrita se torna música, e a música não se ignora.

O senhor Algor de José Saramago nos revela um segredo, Há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, diz o sábio personagem, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem.

Jorge Luis Borges fala num poema de um homem preso em uma torre, numa biblioteca, a salvo da barbárie do mundo, e que no entanto era cego. E se a torre fosse de marfim, a biblioteca o vasto mundo virtual, a barbárie do seu mundo a nossa barbárie...

A má leitura nos é mais prejudicial do que a não-leitura, pode-se ser virtuoso sem nunca se ter lido uma única palavra, mas é deveras difícil o ser quando há leitura, e não há reflexão, quando há compreensão, e não há critica, quando há diferenças de tempo, e não há cuidado, quando há o sentido do outro e o meu sentido, e não há interpretação e ainda mais cuidado.

As palavras têm de ser saboreadas, lidas em voz alta, se possível, com calma, não é uma competição para ver quem come mais, senão, com o tempo, a má digestão literária nos tornará a todos papagaios prolixos.

Sem mencionar, e já mencionando, o detalhe insignificante de levantar os olhos de onde quer que estejam pousados e contemplar o mundo com admiração e a ciência de que somente este justifica o ato de perder-se naquele.