A verve espinhosa de Adriano de Paula Rabelo

Ana Clara Batista de Almeida

Universidade Federal de Minas Gerais

Fazia já algum tempo que eu não tinha contato com um livro de aforismos originais. Em geral, as coletâneas de frases reúnem sentenças pronunciadas ou escritas por personalidades famosas ou recolhidas em grandes obras da literatura, da filosofia e das humanidades, bem como nos livros sagrados. Foi, portanto, com certa surpresa que li Ouriço: senso incomum, de Adriano de Paula Rabelo. Envolvida pelas criativas e provocadoras elucubrações do autor, não consegui deixar o livro até praticamente terminar a leitura numa só sentada. Depois disso ainda voltei a ele várias vezes, relendo várias páginas aleatoriamente.

Dividido em quatro partes – “Sociocultural”, “Sentimentos”, “Linguagens” e “Especulações” –, o livro coleta pensamentos sobre as questões essenciais do homem: o amor, a morte, Deus, o destino, a sexualidade, o sucesso, a felicidade, a beleza... A vivacidade dura, provocadora e espinhosa da linguagem do autor chega a lembrar o estilo do panfletário austríaco Karl Kraus, frasista de muita verve. O humor ácido com que critica os costumes lembra a irreverência do aforista italiano Pitigrilli. O destemor com que vergasta instituições falidas e personalidades reacionárias lembra a postura do jornalista americano H. L. Mencken. Já o deboche com que ataca alguns valores consagrados da nossa época lembra o nosso Nelson Rodrigues, que não por acaso está presente na epígrafe do livro. Não sei se Rabelo conhece todos eles. Nem isso importa muito. Se não se pode falar de influência, certamente se pode falar de afinidades eletivas com esses quatro grandes satiristas do século passado.

Parodiando provérbios, frases feitas e sentenças consagradas nas grandes obras, o autor de fato constrói uma ode ao “senso incomum”. Chacoalha a poeira daquilo que é repetido popularmente ou de forma pretensamente intelectual, automaticamente, sem reflexão, como os cães que latem ao ouvir outros cães latirem. Afinal, qual seria o sentido de se escrever um livro, se for para pensar de novo o já pensado, da mesma forma como já foi pensado?

Se as grandes frases que circulam por nossa cultura – muitas vezes repetidas sem crédito ao autor ou à obra de que se originam – quase sempre constituem sentenças morais ou moralizadoras, pode-se dizer que os aforismos de Adriano de Paula Rabelo são amorais. Eles não se preocupam em moralizar nem inverter simplesmente a moral consagrada em busca de uma originalidade forçada. É como se o autor não se guiasse por um código de moralidade prévio e definidor de suas concepções, que vão se apresentando na escrita ao sabor dos efeitos expressivos, da poesia da sintaxe, da morfologia e da semântica da língua portuguesa.

Vejamos alguns dos recursos utilizados por ele:

Aliteração:

“Casamento: recíproco leito de Procusto.”

“Bobos são os bons bombardeados pelo padecer.”

“Amor materno: meio Maria, meio Medeia.”

Assonância:

“Os outros compõem um monstro só olhos.”

“O coração é o bobo do corpo.”

“Sem o riso, a realidade nos convocaria ao suicídio.”

Metáfora:

“A boa reputação, esse piolho da moralidade.”

“O amor é uma brotoeja da eternidade.”

“A inveja é o subúrbio do ódio.”

Antítese:

“Gente fina, pura grossura.”

“Amar é atormentar-se docemente.”

“Um feio assunto rende lindas histórias.”

Paradoxo:

“Sofrimento passa, mas é para sempre.”

“Para execrar o cinismo, encontremos um cínico.”

“O silêncio fala demais.”

Rima:

“Só se pode ser bonito sem faniquito.”

“Ao burro, basta o urro.”

“Distraídos, desunidos.”

Paronomásia:

“Rumores não têm rumo.”

“Um ator: ou atordoa ou atormenta.”

“Mostre-me uma musa e lhe mostrarei um museu.”

Intertextualidade e paródia:

“A feiura não está nos olhos de quem vê.”

“A mentira possui pernas curtas porém asas longas.”

“O homem é a desmedida de todas as coisas.”

“Os que não viram e creram, deles é o reino da manipulação.”

Jogo com o duplo sentido das palavras:

“A paixão é cega e surda, mas não muda.”

“O homem grávido é algo que não se pode conceber.”

Humor:

“O pior voyeur é aquele que não quer ver.”

“Amor: óleos nos olhos.”

“Quando conseguir me encontrar, me direi poucas e boas.”

“Há poemas sublimes como um furúnculo.”

Essa verve espinhosa está em consonância com a metáfora do “ouriço” que dá título ao livro. Se se tiver de classificar a filosofia que o perpassa, talvez ela possa ser aproximada de um misto de estoicismo e epicurismo em seu pessimismo e desapego de base. É o que transparece em frases como estas, que enfatizam a fragilidade das coisas humanas:

“Recém-nascido é um ser humano velho o suficiente para morrer.”

“A luxúria sempre renasce das próprias secreções.”

“O ser humano está mais para piramboia que para Pirandello.”

“Por dentro de um corpo bonito, apenas um esqueleto horrendo.”

Chama a atenção também o diálogo do autor com o momento tenebroso por que estamos passando. Títulos como “Cunha”, “Bozano”, “Skaf”, “Liberalite”, “Homo demens”, “#MeToo” falam por si mesmos. Já no campo das frases, algumas parecem tratar diretamente de absurdos recentes:

“O juiz é um sicário vicário.”

“Os linchadores de teclado têm medo de sangue.”

“Quando um político se diz não político, politicalha.”

“Quem entende o que quer procura desentender-se.”

Mas o autor também é terno e lírico em alguns momentos:

“No abraço da infância, a vetustez se desmancha.”

“Ser o que meu cão acredita que sou.”

“Uma bela boca vale mais que belos ditos.”

“Os momentos felizes, não os passamos, nós os possuímos.”

Enfim, Ouriço: senso incomum é um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos, seja pela qualidade da expressão do autor, seja pelo conteúdo filosófico e a poesia das frases, seja pela renovação de um gênero secularmente explorado, seja pela discussão leve mas profunda de problemas fundamentais da humanidade, seja pelo debate acerca das misérias do nosso tempo. Parece-me que desses novos autores, a maioria desconhecidos a publicar por editoras pequenas, faz-se hoje a literatura brasileira mais interessante.