Herberto Sales - Os melhores contos de

SALES, Herberto. Os melhores contos de Herberto Sales. Org. e Sel. Judith Grossman. São Paulo: Saraiva, 2000.

Nasceu em Andaraí, BA, em 21 de setembro de 1917, e faleceu no dia 13 de agosto de 1999, no Rio de Janeiro. Jornalista, contista, romancista e memorialista, Era filho de Heráclito Sousa Sales e Aurora de Azevedo Sales.

Os vigilantes

D. Isabela que ficava somente na janela. Os homens passavam e ela dava bom dia, e segundo eles ela tinha vários amantes, e o pobre do marido Jenuíno, dono de uma loja que trabalhava o dia todo não desconfiava. Ela era uma prostituta. Coitado do Jenuíno!

Fizeram uma reunião entre o prefeito Sr. Camargo, o padre velho Tobias, o coletor Queirós, o juiz da paz Stanislau. Ficou decidido que iriam fazer uma carta anônima para Jenuíno contando tudo. O coletor pegou o papel e escreveu alguma coisa. Pronto. Levantou e foi embora. O vigário leu e disse: - não é possível.

Entregou ao juiz de paz que leu e disse: - não é possível.

Entregou ao prefeito, que leu em voz alta: “Você é um corno. Sua mulher é uma puta.” E desabafou: - porre! Esse Queirós esta de porre.

Fizeram outra redação, e o padre só fazia as recomendações – É preciso tato. Muito tato.

O automóvel

Conta a história de uma família pobre com Seu Raul, dona Eufrosina e cinco filhos, sendo quatro mulheres e um homem, que morava na travessa Etelvina, em Olaria. A esposa vivia mandando o esposo arranjar uns biscates, como o Pereira, que trabalha em casa.

- Ora mulher, Pereira, o padrinho do nosso filho Mário, não tem cinco filhos como nós. Só tem ele e a mulher. – desabafou seu Raul, já com quase 50 anos.

O próprio Pereira lhe arranjou um biscate. Logo a Gracinha, sua filha mais velha arranjou um casamento com o motorista do Ministério da Agricultura, por nome de Valdemar.

– Um motorista? Reclamou ele.

- O importante é ela ser feliz, disse dona Eufrosina.

Valdemar não era um cachaceiro, mas tinha sempre umas contas a pagar na bodega. Pensando que o noivo se casaria coma sua filha e a levaria para diminuir as despesas, aceitou fazer o casamento com uma festinha. Deu tudo certo, mas Gracinha chamou Valdemar para morar dentro da casa dos seus pais, mas ele praticamente não ajudava nada, até que um dia seu Raul saiu do banheiro procurando quem pegou a sua gilete. Valdemar disse que foi ele e que iria comprar outra, mas não teve conversa. A briga de xingamentos foi grande. Valdemar pegou a esposa e foi morar com uma irmã, enquanto providenciava uma casa para eles. Tudo voltou a calmaria naquela casa.

Num certo dia a espoa disse a seu Raul que ele precisava comprar um terno para melhor se vestir, pois “o pau se conhece pela casca”. Ele concordou e foi a uma loja, acharam o preço tão bom que compraram dois ternos, e receberam dois tickets de sorteio de um automóvel Sinca Tufão, que seria sorteado pela loteria. Os filhos não acreditaram naquilo.

Mas aconteceu. Ele foi sorteado e recebeu o carro. Foi entrevistado na rua onde morava e saiu em todos os jornais. Os filhos já faziam planos de viagens.

Pronto, agora só faltava tirar a carteira de motorista. No meio da madrugada caiu uma chuva torrencial e ele ficou com pena do carro, e disse a dona Eufrosina que no dia seguinte iria procurar uma garagem onde guardaria carro. Um amigo Almeida da repartição conversou com Teixeira, que se prontificou em alugar a sua garagem enquanto não comprava o seu próprio carro.

Dona Eufrosina ficou preocupada com as despesas que estavam aparecendo. - Mas o aluguel da garagem vai ser baratinha. – Disse o marido.

E para tirar a carteira de motorista? Foi pedir orientação a Pereira para lhe ensinar, pois não teria dinheiro para gastar com autoescola. Pereira tinha a carteira há dez anos e nunca mais tinha dirigido, e nem sabia se ainda acertaria. – Que nada! Disse Raul. – Carro é uma segunda família, disse Pereira.

No dia seguinte Pereira iria dirigir o carro até a garagem alugada, para dar um treino e lembrar de como era dirigir. Mário queria ir junto, mas o pai Raul não deixou. Logo na saída fez barbeiragem e o carro desligou, mas mesmo assim conseguiu levar o carro até a garagem da casa. Na hora de acertar a entrada, com Raul já fora do carro, em vez de entrar na garagem, jogou o carro em cima de Raul, pois o espaço era pequeno para o tamanho do carro, e o porta mala iria ficar no meio da rua. – Vamos embora Pereira. – Chamou Raul. Foram embora e Pereira indicou outro lugar maior num galpão, onde o preço dava para pagar. Acertaram tudo e Pereira dava aulas teóricas sobre a sinalização a Raul. – O diacho é o trânsito. – Reclamava ele.

No dia seguinte foram todos ver o carro na garagem alugada e encontraram limpinho. Pereira então sugeriu que Raul já sabia o básico e que poderia tentar dirigir. Entraram no carro e Pereira foi dando as instruções. Ao ligar o carro foi direto numa pilastra, amassou a frente e quebrou o farol e o para lama. – Que pena – Disse o rapaz responsável pelo estacionamento. Um carro tão novinho. Depois do estresse, Raul se acalmou e pediu orçamento ao rapaz da garagem para consertar tudo. No dia seguinte foi saber do orçamento de tudo e era Vinte mil cruzeiros. Como iria arranjar aquele dinheiro. Tinha de fazer logo, pois tudo estava subindo.

Como não tinha onde arranjar o dinheiro, o compadre Pereira sugeriu que ele tomasse emprestado na mão de um agiota amigo dele, mas que ele não poderia ser avalista e iria precisar de um. Que ele arranjasse. Falasse com Quintela, da tesouraria, mas se pudesse fizesse também o seguro.

Ao procurar a Sul América Seguros, soube que era trezentos mil cruzeiros. Ele caiu fora. - Ladrões! Não encontrou Quintela na repartição e ao voltar para casa passou na casa de Pereira que confirmou o empréstimo do agiota. Tudo certo. É na hora. Falta só o avalista.

No dia seguinte Quintela orientou que ele procurasse um camarada que trabalhava com fianças de aluguel, bastava pagar 20% do valor que ele avalizaria, bastava que ele levasse um bilhete do amigo Quintela.

Para pagar todas as despesas e a comissãozinha, ele teve de assinar uma dívida de trinta e cinco mil cruzeiros com o agiota. Pronto! Tudo resolvido. O carro ficou lindo. Seguro, nem pensar. – Ladrões, ladrões!

Em casa dona Eufrosina sugeriu que ele procurasse Valdemar, o genro motorista, com quem poderia usar o carro, fazer passeios nos fins de semana. Ao que Raul incialmente não aceitou, mas depois entendeu que poderia ser bom para uma reconciliação. Naquela mesma noite, depois do jantar foram até a casa da filha e ao entrar deu logo um abraço no genro. – O que passou, passou. Todos os quatro se abraçaram. Marcaram domingo uma feijoada, para mostrarem o carro, e lá estiveram. Foram passear na quinta da boa vista com Vakdemar dirigindo. Todo domingo inventavam um passeio. Estava progredindo na autosciola e pediu para que Valdemar fosse com ele no dia do exame. – Se eu estiver de folga, eu vou.

No outro domingo foram a praia. Tiveram de comprar roupa de banho, mas dona Eufrosina não quis participar do banho. Foram para o Arpoador, mas tinha muita gente rica e mulheres de biquíni, quase peladas. Partiram para a praia de Ramos, mas ao chegar lá também ficaram deslocados com o carrão no lugar de pobre. Tiveram de voltar para casa e almoçar.

Chegou o dia do exame de motorista e ele foi aprovado. Mas para a tristeza de Raul, a esposa disse que, por sugestão de Valdemar, o genro, o carro deveria ser vendido e com o dinheiro comprar uma casa. Ou então comprar um carro mais barato e dar entrada na compra de uma casa. – Essa não senhora!

Tudo estava bem, passados dois meses, numa manhã de sábado o carro estava estacionado na porta de casa quando um caminhão FNM do Estado bateu no seu carro e acabou tudo virando um monte de ferros retorcidos. Foi choro de todos da família. Para fazer com o Estado pagasse um novo caro, só contratando um advogado, e deveria esperar anos e anos. Sabe como são essas coisas. Valdemar sugeriu que não se gastasse nada e vendesse o carro para o ferro velho. Não teve outro jeito. Vendido o resto que sobrou do carro, na terça feira Valdemar foi entregar o dinheiro. Guardado numa gaveta, pelo menos daria para pagar o resto da dívida. Valdemar ofereceu carona para levar Raul à sua repartição, ao que ele respondeu agradecendo:

- Não, meu filho. Eu vou mesmo no meu trenzinho parador.

A carta

Amaral, chateado com a vida depois de vinte anos de casado com sua esposa Edwirges, pensa em fugir de casa e planeja sair numa hora em que a família esteja fora. É o que ocorre numa noite, na qual a esposa, o filho Afonso e as duas filhas Marivalda e Léia resolvem sair para assistir um filme. Ao ficar só em casa, ele já está com uma carta pronta, escrita há alguns dias. Antes de se arrumar e sair, ele dá outra lida para saber se é tudo aquilo mesmo, prepara as malas e deixa a carta sobre a peça da sala, em local bem visível. A carta diz mais ou menos assim: Que trabalha muito feito um burro para sustentar a casa e não suporta mais os filhos não lhe respeitam mais, chegando a responder de forma agressiva, sem lembrar tudo que ele fez para criá-los. Ele não pode nem mais ouvir músicas que gosta ou sentar-se em sua cadeira quando a sogra dona Eponina chega para passar uns dias.

Ao ler novamente a carta, ele sai com a mala e pega um taxi para a Central do Brasil, de onde partiria num trem, para outro lugar. Ao se deslocar até o destino dentro do taxi, vai passando o filme da sua vida em família, e passa a observar que não são todos tão ruins assim. Lembrou que antes de saírem, disseram: “Você não vem conosco? Venha se distrair um pouco, papai ”. A mulher, por exemplo, tinha valor pelas suas atividades como dona de casa; o filho de 18 anos precisaria dele para ser um grande homem no futuro. Abandonar as filhas não era possível, pois em certos momentos nessas idades todos perdem a paciência. E dona Eponina, coitada! Sempre foi preocupada com ele. A única diversão dela era assistir televisão mesmo.

Vendo o desespero de Amaral, o motorista pergunta se ele está se sentindo bem. Ele pede para voltar para casa, pois esqueceu alguma coisa. Ao voltar ele paga a conta e manda o taxi ir embora. Entra correndo em casa e vai procurar a carta, desfazendo as malas, tudo antes da família chegar.

Ao entrarem em casa, ele tomou um susto, mas já havia se desfeito da carta e apenas com uma roupa nas mãos. A esposa perguntou:

- O que está fazendo Amaral?

- Nada, respondeu.

- Puxa! Tomei um susto. Nem sei o que eu pensei. - Sentando-se, pediu: - Traz água para mim minha filha.

- Ele pediu para que trouxesse água para ele também. Ficou pensando no susto que ela teria, se tivesse lido aquela carta.

O morrinho

A história de dois coronéis proprietários de terras: Militão e Apolônio, que brigam por causa de uma cerca que foi colocada entre as suas fazendas. Apolônio “chamou dois criolos e mudou a cerca de lugar”, mas levou uma parte de um morrinho.

Como mudar a cerca se não foi medida por nenhum tabelião? Especialmente Maçu Fonseca, que não ia no mato porque tinha medo de cobras? Militão podia pegar “quatro criolos” e mandaria botar a cerca no lugar de novo, mas ele era muito prudente. Mandou um agrimensor medir tudo certinho, de acordo com a lei. A cerca estava tão errada, que Apolônio perdeu o morrinho inteiro. Dois soldados com um oficial de justiça deram a notícia a Apolônio, que aceitou, mas queria vingança, preparando uma tocaia para Militão, que foi avisado por amigos.

No local e hora avisado, Militão, que nunca havia pensado matar ninguém, foi passando. Nessas ocasiões “o diabo está presente”, como dizia a falecida dona Brígida. Apolônio ouviu uma voz que dizia:

- Largue a arma Apolônio! Não se mexa, se ainda quer ver a luz do dia.

- Quem é o valentão? – valentão não, Militão. - Foi a resposta, que ainda pediu para ele fosse andando até a sua casa ali perto para conversar como amigos. – Entre a casa é sua.

- Mariana! Pegue um café para seu Apolônio e para mim. – Pediu Militão, que disse ter ficado triste por saber que Apolônio queria mata-lo por causa “de um morrinho à toa”.

- O morrinho é meu! Falou várias vezes Apolônio durante a conversa.

- Eu poderia até lhe dar o morrinho de presente, se não tivesse mudado a cerca de lugar como fez.

- Não posso aceitar seu café. Ruminou Apolônio. – Não faça essa desfeita com a moça que lhe trouxe o café. – Repreendeu Militão, lembrando o que disse a falecida dona Brígida: “se alguém faz uma desfeita, o diabo está à espreita”.

- Espero que o senhor não tenha envenenado o café. – E bebeu em silêncio. Eu só quero o meu morrinho. – completou Apolônio.

- Quando você pensar melhor vai ser meu amigo. Apareça quando quiser, a casa é sua - Se despediu Militão de Apolônio que já estava saindo porta a fora. – Tome a sua arma Apolônio. Entregou Militão, que a enfiou no coldre.

- Só quero que o senhor me dê meu morrinho. Voltando-se sacou a arma para matar Militão, que foi mas rápido e atirou primeiro, caindo morto no chão.

Verão

Conta a história de Rogaciano, um cidadão que morava num pacato lugar à beira-mar, onde foi invadido aos poucos por veranistas barulhentos, sujos e sem respeito. Todo verão era assim: um inferno para os moradores. Antigamente não tinha esses carros potentes ou barulhentos. Então teve a ideia de construir um muro em volta da cidade com uma placa proibindo a presença de veranistas. “Você está maluco Rogaciano!” – Precisamos de promoção. Queremos a promoção dos nossos terrenos que vão virar ouro. – Disse o prefeito.

- Então vamos fazer umas valas para ninguém passar. Rogaciano deu outra sugestão. - Precisamos de asfalto. Precisamos de promoção – Disse o prefeito. – E o fim do mundo – Gemeu Rogaciano. Construir um muro daquele tamanho iria demorar vários anos. Então teve outra brilhante ideia de ir até a pedreira ali perto, para pegar detonadores e bananas de dinamite, para botar mo porão do clube barulhento para explodir no meio da festa

Licurdo, da pedreira estava prevenido e não deixou fácil encontrar o detonador, pois já sabia da loucura de Rogaciano, que uma madrugada antes já havia enchido de gregos a estrada para furar os pneus dos automóveis que chegassem. Poderia querer explodir o clube onde a Marquesa de Santos (1797-1867) aristocrata brasileira, amante de Dom Pedro I, exercendo grande influência naquele governo, havia pernoitado com a sua comitiva ao passar pela cidade.

Para Rogaciano o detonador não iria fazer falta, bastava que ele acendesse a dinamite e jogasse pela janela. Ao chegar ao local viu logo um cara de camisa vermelha e costeletas enormes (seria D. Pedro I ?). Acendeu a banana de dinamite e ao tentar jogar, deu um pulo para tras e a bomba explodiu. Foi pedaço de Rogaciano para todo lado. Uns 30 metros de distância encontraram um pedaço de um braço agarrado num arame farpado. No dedo estava uma aliança com o nome da esposa Edeltrudes. Era do Rogaciano.

A onça

Essa é história de uma possível onça, que vivia comendo animais na região. Praxedes estava procurando seu cavalo desaparecido, quando encontrou Melquíades procurando um seu também. A carcaça do primeiro foi encontrada, mas a do segundo ninguém achou. Era uma onça enorme, eles pensaram. Por isso foram procurar o caçador experiente João Felão, que confirmou ser um bicho grande e perigoso, só que ninguém ainda o tinha visto.

- Talvez sejam duas onças. Retrucou Melquíades.

Chico Francisco, que brigava todo dia com a mulher quis saber se a onça poderia voltar. – Ela é animosa e não será surpresa se ela voltar. – explicou João Felão.

A mulher de Chico de madrugada foi lavar o urinol (penico) no quintal, ouviu um barulho e entrou em casa desesperada. É a onça! Gritou para o marido, e foram chamar o caçador. – Essa mulher se enganou. Entrem e escorem a porta. Só isso. Disse João Felão.

- Você viu onça nenhuma mulher. Você é mentirosa, inferniza a minha vida e ainda me faz passar vergonha. – Desabafou Chico.

Naquela noite outro cavalo de Melquíades sumiu. Foram chamar o delegado Izolino Bedê que disse: - Vou esticar o couro dela na parede da delegacia. – Convocou três soldados, organizou a patrulha e mandou chamar João Felão, que entendia de onça para ir junto.

- O senhor delegado vai na frente com os soldados que eu vou atrás com meu facão. Quando ela aparecer eu cuido dela. - Disse o corajoso caçador.

Em casa, Chico Francisco arrumou sua mala com seus apetrechos de funilaria e umas roupas e falou para a mulher: - Vou também. Quem sabe ela me come e eu fico livre de você.

Cercaram tudo que podiam e nada da onça aparecer. Não tinha onça nenhuma.

Pela manhã Chico havia sumido. Depois de três dias entenderam que a onça havia comido o homem com ossos e tudo, e nunca mais apareceu. Tudo ficou calmo e a onça também nunca mais ninguém teve notícia. Ficou tudo em paz.

- Quem não lembra o que aconteceu com o cavalo de Praxedes? Pergunta o autor.

- Se não lembra volte atrás e leia tudo de novo. Conclui.

Flor-do-mato

Essa história mista de surpresa, suspense, descobertas e amor do menino Janjão, solitário morador de uma fazenda que morava somente com seu avô, sem conhecer nada do mundo. Montava num cavalo de pau fogoso de galho flexível, com um galho de malva servindo de chicote. Fazia bois, carneiro, vacas com pedaços de coisas e frutas. Só não era totalmente sozinho sob as ordens do avô, pois existia a Sinhá Felismina, negra e velha, muito boa para ele, dizendo sempre que Janjão não devia brincar com os filhos dos vaqueiros, pois o avô não queria.

À noite teve uma grande chuva. No dia seguinte seguiu montado no seu cavalo de vara de camboatá para a sua fazendinha de faz-de-conta ver o que aconteceu, mas para a sua tristeza tudo ficou destruído pela enxurrada. Teria de fazer tudo de novo. Quando já ia voltar, ouviu uma voz chamando: Janjão! Ó Janjão!”. Saindo de uma moita uma menina de uns 12 anos, cabelos loiro e escorridos. Eu me chamo flor-do-mato! Venha brincar comigo - Disse ela.

- Meu avô não deixa. Ele vai mandar você embora. – Em mim ele não manda, disse ela. Venha! Vamos brincar de esconde-esconde. E saiu correndo. Janjão foi atrás.

Lá na frente ela parou, abriu os braços e chamou Janjão. Ele correu para abraça-la e até hoje ninguém sabe se ele aconseguiu. Sumiu com ela no meio do mato.

Sentindo falta do menino, o avô chamou os vaqueiros e saíram à sua procura: - Ele deve ter sido atraído pela Flor-do-mato e deve ter ficado encantado. - Disse o avô. Saiu gritando: Flor-do-mato, caapora, fêmea, dê de volta o meu neto! Até hoje o avô deve estar procurando Janjão.

Mãe D’água

Na fazenda Lagoa Encantada tinha um sobradinho em cima de um morro, de onde se via uma lagoa pelas janelas da casa. A lagoa parecia um buraco no meio da mata, por onde todos devem passar quando estão na estrada da fazenda, mesmo quem queria encurtar o caminho, tinha de passar dentro do brejo, com água na barriga da montaria. Desde a morte do Tio Lucas, o dono da fazenda, há cinco anos, ninguém passava por ali. O mato estava fechado.

O autor resolveu fazer uma visita, na companhia do guia, o Velho Joaquim (Quim), que mostrou da janela no meio da lagoa uma moita boiando. – É aquele, disse ele. A ilhota que muda de lugar. Na lagoa encantada morreu uma índia delicada, onde o corpo ficou boiando, como se estivesse dormindo, e os seus cabelos foram se transformando na ilhota. A lagoa ficou encantada. Ouvia-se da lagoa um gemido, que podia ser da índia, em noites de lua cheia, quando saia depois das dez horas. Antes, não. Era o canto da mãe d’água, bonito, mas também traiçoeiro.

O tio Lucas tinha um filho único, chamado Augusto, um rapaz louro de olhos azuis. Ele não sabia do canto traiçoeiro da mãe d’água. Certa noite ele acordou ouvindo um canto que vinha da lagoa, saiu da casa e foi até a lagoa fazer companhia a quem também estaria sozinha.

Em casa, o tio Lucas acordou também com o canto e foi ao quarto do rapaz, que estava vazio. Gritou: – Augusto! Augusto! Os gritos acordaram Joaquim (Quim) e desceram os dois barrancos a baixo correndo. Ao chegar à beira da lagoa, viram uma enorme cobra deslizando sobre as águas e sumindo no brejo. O vento soprou e a ilhota foi seguindo para outro lado. Ficaram ali até o amanhecer, pegaram uma canoa e rodaram toda a lagoa, sem encontrar Augusto.

Sem dúvida a mãe d’á teria se transformado em cobra e levado o rapaz. Tio Lucas voltou a a cidade e morreu de desgosto. A fazenda ficou abandonada. A última pessoa a por os pés ali foi o nosso autor, mas nunca mais voltou lá.

MARA

Um velho pajé, pei de Mara única e de idade de moç feita, com um corpo igual a um índio, parecendo mai com homem do que uma mulher, um fruto bonito e no ponto de ser colhido.

Para mostar todo o amor que o pajé tinha pela filha, ensinou-lhe toda a pajelança e feitiços que sabia ou ainda estavam ocultos em bruxarias. Conhecia os segredos de todas as ervas.

Ela não foi feita para casamento, era forte e tinha sete fôlegos, mas incapaz de ter filhos.

O pajé era cercado de respeito, por curar vários tipos de enfermidades internas e externas das pessoas. Viam os dois felizes, até que um dia ele foi procurado para cura uma índia velha que foi picada por uma cobra, mas com as ervas tradicionais não foi capaz de curá-la, somente Mara seria possível. Mas ela sumiu, somente aparecendo ao final da tarde, vindo das cabeceiras do rio, onde foi buscar uns lírios amarelos.

Um dia depois aconteceu que uma chuva caiu somente em cima do plantio de mandioca dos índios, acabando com a lavoura. Parecia coisa mal feita. O pai a chamou e censurou seu comportamento, ameaçando-a de maldição, porque estava trazendo o mal àquela tribo. Ela respondeu que os fortes poderes eram dela e somente o pai, com tristeza, sabia do que ela era capaz, inclusive se transformar em animal.

Não teria agora outra alternativa, que não fosse matá-la, para que não espalhasse na Terra o mal que trazia. Fritou um peixe e encheu de veneno, para que ela comesse ao chagar e morresse. Quando Mara chegou, pegou o peixe e jogou pela porta da tenda lá fora.

– Isto não é coisa que se coma assim. Disse ela, comendo pedaço de raiz de mandioca. – Minha fome não é de peixe envenenado. Agachando-se, se transfomou num coelho, que saiu pulando e foi comer capim lá fora. O pai pensou em pegar uma flexa e matar o bichinho, mas era o coleho preto a sua filha.

No dia seguinte, já mulher novamente, trouxeram um índio doente numa rede. Contaram que foi um coekhp preto que à noite ohomem estava caçando e ao apontar a flecha para o coleho, caiu no chão sem poder se mexer mais. O pajé tentou, mas também não conseguiu curá-lo. Somente podia quem lhe fizera o mal. Quando a filha entrou na barraca, transformou-se numa arara dizendo: - entrevado estás e entrevado vai ficar até morrer de fome.

Levaram o doente sem cura.

O pajé envenenou o pote de cauim, onde ela bebia. Quando ela chegou, disse a ele: - Uma coisa eu lhe peço, meu pai. Não use do meu de beber para me dar veneno. Direcionou as mãos ao pote e falou algumas palavras. O pote virou um sapo horroroso e pulando saiu da cabana.

Ela por três dias desapareceu na mata. O pajé foi atrás, na nascente do rio, onde ela gostava de dormir nos meio dos lírios. Chegando lá, o pai a agarrou e jogou no rio, afogando-a. Ao voltar para a tribo, informou que viu a filha morta. Levou sete índios para enterrá-la a quatorze palmos, profundos.

O pajé não saia é que da boca da filha escorreu durante aquele tempo morta uma baba pestilenta, nascendo dentro dos lírios amarelos umas ervas miúdas e más com o nome de maracaimbara, como os índios chamam.

ARMADO CAVALEIRO – O AUDAZ MOTOQUEIRO

Na frente de um espelho um garotão louro, se olhando e questionando se Jesus era louro ou moreno, japonês, chinês, lembrando o padre Avaristo que pregava a necessidade de multiplicação da face de Cristo na juventude.

O garotão maconheiro estava com 19 anos e tinha um pai coroa legal, que prometeu se o filho deixasse a maconha, daria uma moto Honda 1.000 Goldwing, além do carro que já havia dado. O garotão louro aceitou e cumpriu a promessa. Ganhou a moto e mostrou a toda a patota (galera).

Estava ele ali, diante do espelho, lembrando da moda, das vestimentas, dos cabelos, dos filmes, dos programas de TV. Pegou o capacete e se arrumou todo, parecendo um cavaleiro medieval. Na garagem ligou a moto e fez barulho, pois bonito era o ronco. Saiu em desabalada carreira.

O trânsito estava pesado, foi tirando fino daqui e dali, carro, buzinas e um grande ônibus à sua frente. Sem ninguém esperar um caminhão saiu de uma rua, e para o ônibus não bater no caminhão foi em direção ao motoqueiro que voando pela pancada foi esbarrar em cima de um poste.

Paz à sua alma.

O ESTILETE

José Mário queria compra um estilete. Um estilete de trinta centímetros. Onde poderia vender? Foi procurando em lojas e cutelarias. Mas ninguém vendia naquele tamanho. Talvez numa metalúrgica na Avenida suburbana. Uma semana depois, na terça feira, o estilete estava pronto. Na quinta feira pegou um boeing no aeroporto do Galeão, voando às 16h30 para Brasília.

Sentado à sua frente um homem cabeludo, d barba, bigode e óculos. O avião decolou.

José Mário sentiu-se incomodado com o homem que abaixou a cadeira e o deixou imprensado, sem condição de se mexer ou comer sua merenda. Com toda força ele enfiou o estilete nas costas da cadeira da frente. Um grito foi ouvido: - Me acertaram nas costas! Ao que José Mário dizia: - Recline a poltrona, filho da puta! Recline a poltrona, filho da puta!

José Mário foi contido pelo comandante que o levou para a cabine. Ao chegar ao solo, o estilete foi recolhido pela tripulação e entregue a polícia. Nunca mais quis falar do assunto.

SEDE DE VINGANÇA

Archibaldo Lessa Brito era um funcionário da Campanha de Folclore que queria matar seu chefe, mas seu amigo Porciúncula, servidor aposentado dos Correios e Telégrafos fez de tudo para tirar a ideia daquela cabeça.

- A gente na vida tem de engolir sapos. Seu chefe também engole, tenha certeza. Já pensou nas consequências? Só estou sendo franco. – O amigo tentou convencer Brito.

- Então eu vou descer o relho nele, para ele tomar vergonha.

- E se ele revidar? Ele é moço e você está com quase 70 anos. – Alertou o amigo Porciúncula. A solução era fazer uma reconciliação e vocês já foram amigos. Vai ver que ele está querendo reconciliar também. Dois dias depois Brito ligou para o amigo e disse que tudo estava resolvido.

- Resolvido? Tudo foi resolvido e está tudo bem?

- Tudo bem. Hoje mesmo teve uma reunião e ele acatou minhas sugestões. Obrigado Amigo. Se você não me ajuda esta hora eu poderia estar atrás das grades.

PISTOLEIRO?

Numa região existia um povoado chamando de Qualquer lugar, onde um poderoso fazendeiro, com o nome de Maximino Santana, multiplicando suas terras e rebanhos nos cartórios. Só não gostava de ser chamado de Maximino. Era Santana. E pronto. Ao filho foi dado o nome de Santana, Santana.

O filho falou que o vizinho Pedro João era pistoleiro e o pai deveria tomar cuidado, mas o pai disse que a família era de paz e nunca precisou fazer guerra para ter o patrimônio. Até que um dia ouviram falar que o vizinho contratou um engenheiro para medir as terras vizinhas da fazenda dos Santana. Viu pai? Não lhe disse? – alertou Santana, Santana ao pai. Amanhã vou falar com meu padrinho para contratar um pistoleiro. Não me envolva nisso! – alertou o pai.

Dois dias depois chegava o pistoleiro, e de amanhã não passa.

- Onde está o seu revolver? - Perguntou o pai.

- Não uso revolver. Tenho um punhal. Mato com punhal e sangro a vítima como um animal. O barulho dos tiros me assusta. – Explicou o pistoleiro.

O fazendeiro Santana sentou nojo daquilo. Entrou em casa e foi buscar um revolver, e ao voltar atirou e matou o pistoleiro. O filho chegou correndo e tomou um susto ao ver aquela cena. – Pai, matou o pistoleiro?

- Não. Matei um mostro. Já comecei, e agora é você uma marma também e vamos acabar com o vizinho.

E acabaram mesmo.

DA NECESSIDADE IMPERIOSA DE TELEFONAR.

As pessoas tem necessidade de se comunicar. Esse conto expressa o sentimento de uma época na qual o orelhão era muito utilizado, como uma “aba acústica”, onde todo mundo ouvia os diálogos.

O orelhão do conto está na Rua Hilário de Gouveia, em Copacabana. Inicialmente é uma mãe falando com a filha, para saber se lá estava chovendo.

Depois foi uma empregada doméstica ligando para a casa onde outra amiga trabalhava como doméstica, para trocar informações sobre as novelas.

Outra tentou ligar, mas o telefone chamado estava ocupado.

Outro foi um funcionário público ligando para a filha.

Outra foi uma senhora, filha Lúcia, ligando para a mãe, para saber como estava o seu cachorrinho.

O último foi Macedônio, que ao falar com Cristina, pediu para chamar Estela. Ela não estava.

– Não tem nada. Eu ia dar uma trepadinha com ela, mas como ela não está, eu trepo com você mesmo quando eu voltar do aeroporto. - Disse ele no telefone.

O VOO DA FANTASIA

Esse conto é uma sátira à parte do povo brasileiro que é gastador. Alexandre Higino, funcionário da Codevasf – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, conta que foi comprar passagens da Varig para ele e a esposa e a agência de viagem estava cheia. O funcionário disse “o senhor não sabe, que toda vez que as passagens aumentam, os brasileiro logo inventam uma viagem para comprar passagens com aumento?”.

E no avião? Tudo é dificuldade, desde a hora do embarque. As crianças tem prioridade e choram querendo entrar no avião. Quem viaja quer sossego, mas Rotinildo Vital, dono de uma agência de promoções imaginou um “voo da fantasia”, nome tirado da série da TV, A ilha da fantasia, onde as crianças até dois anos pagariam o dobro do preço dos adultos. Ou haveria aviões para adultos com crianças e outro só com adultos sem crianças. Seria o voo da fantasia, com lugares marcados com três poltronas em cada lado, mas somente com duas ocupadas. Claro que seria mais cara a passagem, sem nenhuma criança por perto perturbando.

Alexandre Higino questionou Rotinildo:

- Nenhuma companhia de aviação vai aceitar sua ideia.

É verdade. Tanto que Rotinildo disse o que queriam fazer com ele, quando falou da sua ideia:

- Só faltaram me colocar no hospício.

REFERÊNCIA:

SALES, Herberto. Os melhores contos de Herberto Sales. Org. e Sel. Judith Grossman. São Paulo: Saraiva, 2000.