José Saramago, um incrédulo protegido por Deus
O dia 18 de Junho de 2010 ficou marcado na história da literatura, dentre outros fatos, pela partida de um homem sem fé em Deus, partindo para outro plano, por certo agradecendo a Deus, desta vez mais lúdico, onde a vida, a morte e o amor tenham mais sentido, ou nada tenha sentido algum, para provar o sentido da nossa não existência.
Sobre Deus e sobre a morte foram escritas por ele muitas páginas e histórias nas suas obras. A velha e conhecida morte era tão presente, que ele a presenteou com os títulos dos romances O Ano da Morte de Ricardo Reis; e As Intermitências da Morte.
Como disse no início do livro Intermitências da morte: "No dia seguinte ninguém morreu", a partir de um Janeiro, num determinado país, ninguém mais morreu. Mas, como viver também cansa a dada altura, a morte retoma o poder e, através de uma carta, retoma a regras antigas do mundo, determinando que a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios.
De tanto rondar lhe procurando, a morte veio lhe encontrar aos 87 anos, na Ilha de Lanzarote, distante da sua querida Portugal, alcançável apenas pelo ar ou pelo mar. Foi lá que ele fechou os olhos para sua velha conhecida, que não veio pelo ar ou pelo mar, veio pelas asas dos seus pensamentos, flutuando entre as águas do mar das ilhas canárias e o firmamento do céu azul, povoado de garças brancas.
Agora, depois de 2010, quem conta as histórias sobre Saramago é a morte, numa inversão de papéis, falando de José Saramago como ficção na eternidade, tudo para rebater as ficções escritas por ele nestes tempos de silêncio ensurdecedor.
Esse destino de todos nós nada pode modificar, mas o Saramago que a gente conhece nunca morrerá. Disso ele tem plena certeza. A cada dia ao despertar ele se perguntava se estava vivo, saia para abraçar a natureza e agradecer a Deus, sem saber que o estava fazendo, por ser ateu não entendia que estava vivendo num mundo que o resumia em suas obras, como se fosse apenas o seu quintal. A morte era uma grande sombra que o acompanhava, mas Deus ainda não havia nele terminada a sua obra, fazendo-o ressuscitar várias vezes, enquanto voava na sua Passarola em direção ao céu tão festejado, ou na imensidão dos astros que faziam a moldura dos seus dias, ou ainda nos seus passeios utópicos.
Na sua veia política, Saramago abordou profundamente os problemas de Portugal contemporâneo e a falta da identidade do povo lusitano, exigindo que a sua Pátria seguisse a sua visão do mundo, perdida na sociedade moderna. Tudo por causa a adesão à União Europeia, perdendo, segundo ele, a sua identidade.
Mesmo contemplando períodos de violência, falta de democracia e enfraquecimentos das instituições do seu País, Saramago ainda teve tempo para viver utopias escritas em obras como Ensaio sobre a cegueira; Memorial do convento; A Caverna; O ano da morte de Ricardo Reis, dentre outros.
O seu mundo literário foi sempre constituído pela dúvida do homem moderno poder assumir uma posição crítica sobre o passado e, ao mesmo tempo, aprender com o passado; pelo impasse de trabalhar o elemento sobrenatural, sem perder a noção do mundo real; pela tentativa de encetar uma nova linguagem gráfica e pontual, mas que respeitasse a sintaxe da narrativa comum; e ter a possibilidade de viajar no mundo real e através da ficção, no interior do Homem. As suas utopias são buscadas em alusões alegóricas, críticas e éticas.
De certa forma, Saramago colocou a crítica literária no bolso, quando dispuseram sobre as idiossincrasias de sua linguagem, pois a novidade foi absolvida pela qualidade dos textos, a forma e conteúdo das criações, sem reinventar uma nova gramática, mas revigorando a escrita, alterando as colocações gramaticais formais dos pontos, das vírgulas, interrogações etc. Os elementos da sua narrativa não tiveram prejuízos, ganhando com a qualidade as personagens, as paisagens e os leitores.
Como frisou T.S. Elliot que o bom artista é formado por tradição e talento individual, podemos dizer, sem medo de errar, que Saramago foi grande leitor dos mais diversos temas, desde História, da Bíblia, Filosofia, Mitologia, elementos de formação da Literatura Portuguesa ou Universal (Pessoa, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Padre Vieira, Dante, Kafka, Tirso de Molina, Borges, dentre outros) compõem a matéria-prima de sua criação.
Lembramos que em diversos livros Saramago convida o leitor a sentar-se, para ouvir, especificamente, o que ele quer chamar a atenção.
Estaremos sempre a lembrar-nos que ele escrevia “para substituir o que foi pelo que poderia ter sido”, como um homem que crê no apocalipse e ao mesmo tempo na ressurreição só pode ser extraordinário.
Talvez ele não tenha ido de todo, pois existem muitos escritos a aparecer nas mãos da sua querida Pilar Del Rio, que poderá colher novas linhas e páginas na horta da melancolia do velho inquieto, vibrante e revoltado com a política e religião do seu Portugal.
Nos últimos dias, quais devem ter sido os passos do Mestre?
O que poderia pedir a Pilar? - Vida, Pilar ! Ouça !? Veja ! Tive uma ideia Pilar !
Portanto, Pilar era os ouvidos e as mãos do velho timoneiro das palavras.
Mas tudo que é bom deve ser repartido, e tem de ser dividido. Por isso, o Deus Criador de todas as coisas que vivem e que morrem, mandou aquela amiga que todos querem distância fazer-lhe uma visita: “a morte levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta”. O convite era irrecusável: Repartimos o Mestre com a morte. Partir, portanto, é o ato de dividir. Partiu José Saramago.
Quando a morte chegou à ilha, por certo ele deve ter dito:
- Obrigado Senhor! Está bem! Já vi, já ouvi e já vivi 87 anos. Estou cansado do que acontece deste lado da ilha, no mundo dos comuns. Aqui nada mais é novidade. Vamos para o outro lado.
Deu-lhe um abraço, sorriu e partiu.