William Wilson: literatura e psicanálise.
"E tudo nele, da roupa até as feições do seu rosto, era eu. A mais absoluta identidade. Era o próprio eu. Era Wilson. Mas falava. Não mais num sussurro. Mas como eu próprio, com minha voz, minhas palavras, minhas idéias, minha emoção. Minha agonia. Minha morte." (E. A. Poe)
Eis um fragmento do fim da curta história William Wilson publicado em 1839 por Edgar Allan Poe na Burton's Gentleman's Magazine - revista inglesa de época. Como a maioria dos contos de Poe - e o número não é baixo - trata-se de uma história que aprisiona o leitor do início ao fim , porém não com o mesmo suspense de O coração delator de 1843, nem com o terror inteligente e investigativo de Os assassinatos da Rua Morgue publicado pela primeira vez na Graham's Magazine em 1841, tampouco com a filosofia de Deus, a revelação magnética o último conto de uma compilação de contos que possuo, traduzida como Histórias Extraordinárias de 1995. Este dessa vez, aborda genialmente a questão do Duplo, e Poe se vale deste fenômeno psicológico para criar as situações mais tenebrosas e instigantes. Obviamente este tema desde as tragédias gregas foi recorrente, a exemplo das peças Aristófanes e Plauto que traziam aos palcos dos Anfiteatros o "gêmeo" pela primeira vez. O próprio Wilde por meio de sua paixão por retratos e quadros tratará mais tarde do mesmo assunto em seu O retrato de Dorian Gray de 1890. No entanto, há diferenças gritantes entre o conceito dos Duplos no teatro grego, nas histórias de Oscar e para Allan Poe. Enquanto que no teatro a réplica ameaçava o Eu se manifestando como seu lado antagônico e antitético, para Dorian Gray a pinturas e fotografias aprisionavam em si uma parte da vitalidade, da alma, dos sentimentos do Eu real. Para Poe, não. Ao contrário do que Freud analisará em sua obra O Estranho de 1919 a questão do Duplo, ou Duplicata surgirá a partir de experiências sensíveis de horror de alguma situação externa ao sujeito e que o fará projetar seus temores em um personagem. É o que Freud chama de "unheimlich", que no português aproxima-se de "algo não-familiar", ou seja estranha, incomum, sem conceitos prévios, o que se distancia do conceito de Mesmo, e que se aproxima mais dos arquétipos de Wilde, pois o horror dos personagens nasce da incapacidade do próprio reconhecimento de si no Outro duplicado, como se estivessem olhando no espelho, e fossem completamente dominados pelo reflexo, mas não se reconhecessem nele. Em William Wilson, que foi escrito muito antes da obra de Freud e de Wilde, há algo extremamente inovador: o personagem principal repudia as semelhanças com seu duplo, mas não as nega, e sua agonia nasce exatamente do incontestável poder dos fatos que lhe são apresentados. Além disso, possui tudo que um filho da aristrocacia inglesa poderia querer: posses, estudo nas melhores escolas, liberdade... Por que razão criar um alter-ego? A não ser é claro que sua existência o causasse náuseas:
Para muitos, Wilson e eu éramos amigos ou companheiros inseparáveis. É isso mesmo. Este estranho estado de nossas relações me favorecia os ataques. Ironias, pilhérias e tudo o que pudesse tocar os seus pontos fracos. Estes, eu tudo fiz para conhecer a fundo. E, conhecendo-os, pude usá-los sempre quis. Ele revidava, é claro. E também conhecia os meus pontos fracos. Sua própria existência e presença diária ali, no mesmo colégio que eu, já eram uma constante provocação. Sempre detestei o meu sobrenome vulgar e o prenome comum. Ora, a mim já bastava ser eu o portador de tamanha anti-patia.(página 113)
No final das contas a resposta é turva, pois o clímax da história trata-se da morte de William Wilson. Mas, não se sabe ao certo quem mata quem, ou se os dois - o original, ou a cópia - morrem juntos, e quem é, de fato, a cópia de quem. A questão é que, talvez o excesso de poder, de liberdade e de não haver forças opostas ao mundo do Wilson real o fizeram projetar alguém idêntico, não apenas nas feições, mas também com as mesmas habilidades físicas, possuidor de um intelecto extraordinário e de sagaz eloquência e postura. Qualidades que o egoísmo exacerbado do primeiro não poderia aceitar e ao mesmo tempo o exponenciam até o desfecho macabro:
- Venceste e eu me rendo. Contudo,de agora em diante, tu também estás morto... Morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu vivias... e, na minha morte, vê, por esta imagem, que é a tua própria imagem: assassinaste a ti mesmo! (página 120)
Eu mesmo não saberia responder quem matou quem, mesmo supondo tais coisas. Talvez, nem o próprio Poe se se levantasse de sua tumba em Westminster na cidade de Boston poderia responder a tal questão. O fato é, que as réplicas tomam diversas formas, isso a literatura demonstrou sabiamente, e mesmo antes da própria psicanálise. Penso que a literatura é mais do que ficção obsoleta, ou leitura de lazer. A imaginação imposta para criar o fictício parte muitas vezes do desejo de fuga de uma sociedade, de fatos repetidos, do sentimento claustrofóbico em relação a uma época, da História que cria padrões sob conceitos fechados. Para tanto, é quase necessário falar do que se detesta para recriar seu mundo. Cabe ao leitor ter sensibilidade para localizá-lo.
Quanto a um conceito fechado sobre o Duplo... Bem, pode ser alguém que seja o oposto, pode ser uma pintura idêntica, pode ser um complexo produto de seu inconsciente, ou alguém de carne e osso exatamente igual, pronto para ocupar custe o que custar o mesmo espaço que você. Se você se identificou com o texto... quem sabe não sou eu uma cópia perfeita sua. Pense bem.