A LITERATURA INDÍGENA E O RESPEITO À PLURALIDADE CULTURAL BRASILEIRA

“Todo Brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro,

traz na alma, quando não na alma e no corpo (...)

a sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro"

(Gilberto Freire – Casa Grande & Senzala)

INTRODUÇÃO

Uma vez que somos fruto de diferentes etnias, respeitar a pluralidade cultural presente em nosso país não é um gesto soberano, é acima de tudo um dever para com a nossa própria identidade. O presente trabalho tem o objetivo de esclarecer alguns aspectos da recente produção literária indígena em língua portuguesa, ressaltando sua importância como instrumento de valorização do saber indígena, conscientização do respeito à pluralidade cultural brasileira como meio de erradicação do preconceito em relação às nossas matrizes étnicas. A fim de desfazer a visão equivocada e generalizada que normalmente se tem das milenares culturas indígenas.

E quem são os índios afinal? O que sabemos sobre esses povos que contribuíram fortemente para a formação da cultura brasileira? Ao contrário do que supomos, existem muitos índios no Brasil. Povos que sobreviveram e mantiveram parte ou toda sua cultura e tradição, até os dias atuais. O que existe em pouca quantidade é a difusão do conhecimento a respeito desses povos, o brasileiro atual, sobretudo a população urbana, pouco sabe sobre a sua matriz indígena. E esse conhecimento não se dará através do estudo de estereótipos. Não podemos simplesmente generalizar os índios, mistificá-los catalogando-os como seres exóticos e isolados que pararam no tempo, o que precisamos é aprender sobre esses povos dos quais somos herdeiros enquanto brasileiros. Esse aprendizado precisa ser através do respeito à pluralidade cultural, do diálogo e da desconstrução de preconceitos.

Hoje existem no Brasil aproximadamente 235 povos indígenas falantes de 180 línguas diferentes (ISA, 2011). Diante dessa multiplicidade não se pode falar em uma unidade cultural indígena, pois, cada povo tem suas próprias maneiras de ser e agir no mundo, povos que carregam uma cultura milenar e que lutam para sobreviver no mundo hoje globalizado.

Como nos esclarece a epígrafe que inicia este trabalho, todos os cidadãos que se assumem e se reconhecem na identidade brasileira, devem reconhecer suas marcas indígenas ou negras na memória e no corpo. Contudo, sendo a literatura também um instrumento transmissão de saber, revela-se então a literatura infantojuvenil como semente promitente para tal conquista, dado a sua importância na formação e educação do indivíduo.

1. ARTE INDÍGENA, A PALAVRA E A LITERATURA

A arte literária acompanha o homem há milênios, e são muitas as definições e explicações para sua natureza e função. O ser humano como um ser construtor de história, tem inúmeras necessidades e valores que se modificam com o tempo, com cada período de seu desenvolvimento e evolução da vida social. A cada época, por assim dizer, temos um novo parâmetro ético e moral. Para os gregos, a arte é um fazer, teckné (técnica, modo exato de realizar uma tarefa), ou seja, a habilidade para se construir algo que assuma certa utilidade física ou espiritual, tornando objetos comuns em elementos de significação e diálogo. Sob esse ponto de vista, a arte nos revela como algo que comunica ao outro aquilo que está em nosso imaginário, seja individual ou coletivo. Na arte indígena, assim como na arte do tempo dos filósofos, todo utensílio carrega marcas de significação, símbolos que assumem valores estéticos a fim de satisfazer as necessidades e anseios da vida em comunidade. Sendo a arte também um processo de comunicação, temos então na palavra uma manifestação concisa da poética.

Para tal exercício de comunicação, pode ser considerada tanto a arte da palavra na oralidade, como na escrita. Portanto todas as manifestações por meio da palavra de um determinado indivíduo ou grupo, com a intenção de comunicar algo, dentro de determinados valores estéticos estabelecidos, é literatura. Percebe-se na cultura indígena uma magnífica, extensa e milenar literatura a ser compreendida. Antônio Candido em seu ensaio "Direito a Literatura" nos dá uma boa definição para o entendimento a cerca da definição de literatura, cujo ponto de vista foi adotado neste trabalho:

"Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação."(CÂNDIDO- 1995)

Partindo dessa perspectiva, vamos analisar o processo de desenvolvimento da literatura indígena, desde a sua manifestação restrita às suas comunidades, até o atual século XXI, onde se projeta para além das aldeias e chega até nós em diversas manifestações e estilos, principalmente em literatura infantojuvenil.

2. LITERATURA INDÍGENA, DA ORALIDADE A ESCRITA

O fato de não compreendermos todas as línguas indígenas nos limita a compreensão do que chamo aqui de literatura indígena, que tem seus próprios códigos e sua maneira própria de transmitir, de comunicar. Talvez em línguas indígenas exista até mesmo outra definição ao que em língua portuguesa chamamos de literatura.

Os rituais, os cânticos, as cerimônias festivas, a arte da pintura, enfeites e vestimentas (cada qual própria para um momento), as pinturas corporais, pinturas em utensílios domésticos, a ritualística utilização das cores, tudo isso e tantas outras atividades são as bases da literatura indígena. Que tradicionalmente frui sua cultura nas manifestações literárias da oralidade, onde a contação de histórias é um forte pilar, para o compartilhamento de saberes e valores às novas gerações. É nesse momento em que a palavra habitada de valores, assume seu poder maior, pois como canal de comunicação, exerce sua plena função de transmitir aos demais todo o imaginário individual ou coletivo, referente a cada povo.

A pergunta que inicia a investigação sobre o assunto é: Como essa literatura de tradição oral tem chegado até nós em forma de texto escrito?

Há muito tempo que muitos indígenas, aprenderam a falar em língua portuguesa, e a se comunicarem com aqueles que não fazem parte da vida nas aldeias. Muitos estudiosos se deram ao trabalho de tentar transpor algumas línguas indígenas para o português, a fim de se construírem dicionários ou métodos de aprendizado dessas línguas. O que nos interessa, de fato, é perceber que foi a partir do momento em que o indígena ao aprender a língua portuguesa, e a se apropriar da escrita, é que se dará início a um novo tipo de produção literária. Uma literatura étnica, de temática indígena. Que nos últimos trinta anos, vem trazendo ao universo literário nacional, um pouco da visão de mundo mais profunda dos povos nativos.

Trata-se aqui não de qualquer escrita, mas a escrita de qualidade, onde a língua portuguesa é utilizada como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania, ou seja, trata-se de uma escrita que viabiliza transpor a rica cultura indígena para um plano mais amplo de difusão, além das aldeias, permitindo ao cidadão brasileiro uma nova fonte de conhecimento a respeito de sua matriz indígena.

3. LITERATURA INDÍGENA, IDENTIDADE E APRENDIZADO

A importância dos estudos literários na formação do cidadão é fundamental para o próprio exercício da humanidade, sendo que a capacidade de fabular e de simbolizar é o que faz do ser humano uma espécie diferente das demais, podendo acumular e transmitir conhecimento, e também construir e reconstruir significados. Sobre a função da literatura em sociedade, Cândido diz:

"A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. "(CÂNDIDO, 1980)

Nossa base de conhecimento literário, ou seja, aquela que nos é oferecida na escola obrigatória e formal segue a tradição euroamericana, ou seja, aprendemos literaturas francesas, inglesas ou norte-americanas, pressupondo tais literaturas o suficiente para a constituição de um repertório cultural básico de qualquer cidadão, ignorando-se completamente o legado indígena, assim como o africano. Em nossa literatura brasileira a interpretação dessa milenar cultura é apresentada de forma equivocada (um tanto distante da realidade) ao leitor, colaborando assim para uma visão preconceituosa dos povos nativos. Exemplo desse equívoco está em O Guarani de José de Alencar, onde o bom selvagem com costumes medievais se faz herói.

Os escritores indígenas, ao se apropriarem da língua portuguesa, ao ponto de apresentarem produções literárias de alto valor, abrem espaço para que o caminho inverso também aconteça, para que línguas indígenas sejam aprendidas pelos falantes de brasileiros e a partir daí termos ao menos um pouco mais de compreensão, da rica e tão pouco conhecida produção literária em línguas indígenas.

O fato de vários indígenas estarem escrevendo e publicando livros, mostra o quanto caminham por diversas formas possíveis para sua autonomia política, econômica e cultural. Os indígenas não estão parados no tempo, estão evoluindo e buscando à sua maneira formas de permanecerem existentes sem serem obrigados a dispensar toda uma tradição cultural milenar. Trata-se do início de um longo e profundo diálogo literário e cultural que se estenderá por longas décadas.

A literatura indígena em língua portuguesa apresenta muitos autores com estilos diferentes de criação literária, podemos dividir essa produção em literatura infantojuvenil marcada pelas lendas, mitos, contos fantásticos e a literatura para público adulto, cuja produção apresenta um convite a reflexão sobre a filosofia, presença indígena em território nacional e evolução indígena no mundo contemporâneo.

Existem no Brasil diversas tribos bilíngues (ou trilíngues), onde o índio além de aprender sua língua materna (que pode ser mais de uma como no caso dos Tuyuka do norte do Amazonas que falam pelo menos duas, a língua do pai e a da mãe), e são alfabetizados em língua portuguesa (ISA, 2011).

É notável o número de indígenas que se dedicam a arte da escrita e produzem livros, blogs, e-books, roteiros de curtas metragens, como os produtores dos Vídeos nas Aldeias. Assim como os compositores em estilos musicais que prezam pela a rima, como o grupo de RAP Brô MCs do Mato Grosso do Sul, que escrevem letras que protestam contra as desigualdades e mazelas de seu povo oprimido pelo latifúndio, tão confiantes e poéticos quanto os rappers das diversas periferias do país.

4. LITERATURA INDÍGENA E O UNIVERSO INFANTOJUVENIL

Na literatura euroamericana que conhecemos, a origens da literatura infantojuvenil, vem das narrativas de tradição oral. Cujas histórias eram passadas de geração a geração, para que se ensinassem valores e crenças de determinada sociedade. Percebe-se que na tradição indígena também acontece tal trajetória, pois a cultura indígena criou todo um universo do maravilhoso, do fantástico, do fabuloso, de saberes e ciência somente por meio da tradição oral.

Hoje existem diversos autores indígenas que escrevem livros para crianças e jovens. Proporcionando-lhes um conteúdo tão importante para a formação cultural, quanto qualquer outra literatura presente no currículo escolar. Dentro dessa demanda atual de literatura étnica, destacam-se as lendas e contos fantásticos do universo indígena, que contribuem para a formação dos educandos, sendo uma forma de lhes apresentar toda essa cultura. Criando-se assim um instrumento de valorização dos saberes indígenas e de respeito para com nossa diversidade cultural. Nesse universo literário, a criança é conduzida a perceber que existem outras maneiras de se viver, outras formas de organização social e que devem ser respeitadas.

As produções literárias destinadas às crianças e jovens trazem as mais belas histórias do imaginário coletivo indígena. Histórias cheias de aventuras, romances, lutas, misticismo e, sobretudo ensinamentos. Narrativas que carregam um alto teor poético e filosófico, trazendo reflexões sobre nossos medos, a relação com a natureza, o papel do ser humano na preservação desse equilíbrio entre a terra, homem e sociedade. Cumprindo importantes papéis na formação do jovem leitor, proporcionando o prazer na leitura e o de despertar o interesse pelo conhecimento, do desenvolvimento linguístico, desenvolvimento da imaginação e proficiência leitora. E o mais importante, se divertir com a riqueza das histórias no simples ato de fruir artisticamente um objeto cultural. Tal literatura proporciona aos jovens e crianças uma diferente visão do mundo que os cercam. Tornando-se uma semente para o respeito à pluralidade cultural que calca a sociedade da qual pertencemos. Direcionando ao início de uma maior compreensão das necessidades de amparo e proteção desses povos que mantém em seu cotidiano uma cultura milenar, de riquezas e sabedorias.

Por isso a literatura indígena infantojuvenil se faz tão necessária, sobretudo nas escolas. Dentre os escritores, cujos livros são destinados em maior parte ao público infantojuvenil, Daniel Munduruku é o representante mais conhecido dessa literatura étnica.

5. DANIEL MUNDURUKU

Nascido em Belém, PA, filho do povo indígena Munduruku. Povo de tradição guerreira, os Munduruku dominavam culturalmente a região do Vale do Tapajós, que nos primeiros tempos de contato e durante o século XIX era conhecida como Mundurukânia. (ISA. 2011)

Formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, integrou o programa de pós-graduação em Antropologia Social na USP. Lecionou durante dez anos e atuou como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo. Esteve em vários países da Europa, participando de conferências e ministrando oficinas culturais para crianças. Autor de: Histórias de índio, Coisas de índio e As serpentes que roubaram a noite, entre outros, sendo os dois últimos premiados com a menção de livro Altamente Recomendável pela FNLIJ ( Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).

O seu livro Meu avô Apolinário foi escolhido pela UNESCO para receber menção honrosa no Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na questão da Tolerância. Viaja pelo Brasil e pelo mundo participando de seminários, encontros, realizando palestras e participando efetivamente da militância indígena, sobretudo pelo respeito à diversidade e a luta contra o preconceito. Sendo educador seus livros têm um forte dinamismo didático. Um exemplo está em O Banquete dos Deuses, onde o autor dialoga sobre a origem da cultura brasileira, se debruça sobre a problemática do preconceito em sala de aula, investiga as origens da visão deturpada que os professores fazem a respeito dos povos indígenas e aponta caminhos para uma educação humanista no Brasil. “Minha principal preocupação é libertar as crianças do preconceito”, disse em entrevista publicada em seu blog. (http://danielmunduruku.blogspot.com). Nesse espaço virtual, escreve regularmente sobre literatura e diversos assuntos ligados às questões indígenas, principalmente as questões políticas. O blog é outro fator interessantíssimo na produção literária de Daniel, pois nos revela um autor pronto para o diálogo também através das novas tecnologias de comunicação.

6. CATANDO PIOLHO CONTANDO HISTÓRIAS

Esse livro publicado em 2006 traz a história do menino índio em seu cotidiano na aldeia. Através de suas memórias ele nos revela as tradições de seu povo Munduruku. Como deitar no colo de um adulto, pai, mãe ou avó para que lhe catassem "piolhos" era uma maneira de ter um momento único de relação entre passado e presente, ou seja, entre ancestralidade, corpo e memória.

6.1 - Um lugar de todos

Na primeira história, é relevado o cotidiano da aldeia, as tarefas dos adultos, a liberdade de ser criança, a organização social de forma igualitária onde todos são responsáveis pela sobrevivência de todos.

“Quem vive numa aldeia sabe que todos são responsáveis por tudo. Ninguém está isento de contribuir para que todos vivam bem e sejam o mais felizes possível. È uma forma encontrada para que ninguém se arvore o direito de se achar melhor que o outro e quebre, por isso, a harmonia.” (MUNDURUKU,2006,P.10)

Durante a narrativa, o menino conta sobre sua rotina na aldeia, e aos poucos vai revelando a riqueza e profundidade das relações com os amigos, com os mais velhos e com a própria natureza. Não só a natureza enquanto fauna e flora da qual se obtém o sustento, mas também da própria natureza humana.

6.2 – Brincar para aprender

A criança é respeitada como criança, como ser em processo de formação que está desenvolvendo sua consciência de corpo e memória. O trabalho fica por conta dos adultos. As crianças apenas observam e aprendem.

"Brincar para aprender. Assim a gente aprendia, não precisava ninguém chamar a nossa atenção ou implorar para que a gente ficasse quietos para pode falar. Não. Todos nós tínhamos que fazer um respeitoso silêncio quando algum adulto começava a falar, especialmente se fosse já um avô ou avó. Eles falavam e a gente ouvia, interessante é que eles sempre diziam a mesma coisa:

- É preciso estarmos atentos aos sinais da natureza, ela nos revela quem somos e qual o melhor caminho a seguir.

- Mas como ouvir esses sinais meu avô? Perguntávamos sem receio.

-Vocês têm que brincar meus netos, vocês têm que brincar, respondia o velho sorrindo. "(IDEM.p.15)

No caso da criança, sua natureza é ser criança e viver sua infância na totalidade, para que quando se torne adulta, não sinta saudade de nada e possa vivenciar por inteiro sua vida adulta. O respeito com os sinais que nosso próprio corpo, mostra o norte para as atitudes futuras. Porém esse diálogo entre corpo e memória, só é possível a partir da intensa relação do indígena com a terra e com sua ancestralidade. É preciso conhecer-se e reconhecer-se em natureza para entender o sentido da vida. E perceber que não existem enigmas indecifráveis nessa relação, o que existe é apenas o autoconhecimento, preparo e respeito para com o outro. E acima de tudo um respeito para com as próprias escolhas.

6.3 - Catando piolhos, ouvindo histórias

Aqui o momento mágico entre mãe e filho fica evidente. O autor mostra como esse momento é importante para a harmonia entre as relações afetivas. Nesse momento experiências e carinhos são trocados, fazendo dos conhecimentos e valores presentes nas histórias um elo entre mãe e filho.

“Quando nos cansamos, vamos descansar em casa. Nessas horas, normalmente nossas mães estão sentadas na frente de casa traçando paneiros, pintando as crianças pequenininhas. Quando ali chegamos, elas nos pegam no colo e se esquecem de tudo. Elas sabem que estamos cansados e que precisamos de um pouco de colo. Cada mulher pega seu menino-quase-homem ou sua menina-quase-mulher e deita no colo para tirar piolhos da sua cabeça. Nessa hora o mundo para. Ficamos totalmente entregues ao carinha mágico de nossas mães...” (IDEM, p16)

6.4 - Outras histórias

As histórias do garoto, aventuras vividas com amigos e relatos do seu dia são revelados a mãe nesse momento. A contação de histórias assume também um tom de intimidade para confissões e reflexões pessoais.

“Depois que contei essa história para mamãe, ela compreendeu o que eu havia feito e pediu desculpas por ter interpretado mal o que tinha vista. E me disse que o que acontecera foi por causa do excesso de fruta que ingerimos.

- Nosso corpo pode agüentar uma quantidade certa de alimento, meu filho. Quando comemos mais do que ele suporta, podemos ver e sentir coisas estranhas. Essas coisas às vezes sentimos no próprio corpo. Outras vezes é a nossa cabeça que padece. ”(IDEM, p.22)

É interessante observarmos como o diálogo entre mãe e filho promove uma reflexão conjunta dos fatos. Ao ouvir a versão do filho sobre um determinado ocorrido, ela pede-lhe desculpas pela interpretação equivocada que fizera antes. Durante toda a narrativa esse diálogo seguido de reflexões são constantes, dando a história um alto teor filosófico.

6.5 – O Pajé

Nessa história percebemos que não só os pais são responsáveis pela educação das crianças, mas sim todos os adultos. O pajé também conta histórias e é tão respeitado quando os outros adultos mais velhos.

“Outra pessoa que cata piolhos na gente é o pajé. Ele é uma espécie de sábio, muito embora em meio à nossa gente todos sejam sabidos o suficiente para não depender uns dos outros. Gostamos das pessoas mais velhas e as respeitamos porque acreditamos que elas nos indicam um caminho que podemos seguir com pessoas seguros.” (IDEM.p.25)

O pajé também é o representante da espiritualidade, pois na aldeia é quem fala com o mundo dos espíritos. As histórias contadas por ele revelam surpresas e desafios enfrentados pelo povo há muito tempo, trazendo as memórias do menino índio reflexões sobre sua ancestralidade.

6.6 – O pai que cata piolhos

O papel do homem na educação dos meninos é marcado pelo ensinamento da arte da caça e da pesca. Assim como a mãe o pai também toma o filho no colo para a catação de piolhos, para momentos de carinho e cumplicidade.

“Numa aldeia, é papel do homem educar o menino nas artes da caça e da pesca. É papel dele ensinar coisas práticas, que ajudarão os meninos a se tornarem úteis para a sociedade e para sua família. É o homem que ensina e a comunidade toda educa.” (IDEM, p.32)

6.7 – O saber das avós

Ao contar a relação das crianças com as avós, o autor deixa mais claro ainda a intensa relação entre os membros da comunidade, reforça o respeito que se tem com os mais velhos e transmite o conforto e aconchego que só as histórias de avó podem proporcionar.

“Às mulheres velhas chamamos avós. Todas são nossas avós e temos muito respeito por elas. São pessoas especiais, experientes, bondosas. Sabem acolher como ninguém e nada passa despercebido por elas. Funcionam como “antenas” da comunidade pois sabem ouvir e dar conselhos a todas as pessoas.” ( IDEM ,p.37)

Fica marcada mais uma vez, através da narrativa desta memória, a imensa relação do indígena com suas raízes, suas tradições e apreço pelo aprendizado dos conhecimentos guardados pelos mais velhos.

6.8 - Última história

Ao final do livro o autor nos revela sua inspiração para com o livro escrito, pois foi a maneira que encontrou de catar piolhos em incontáveis cabeças. Através dos textos apresentados, o leitor se envolve com a memória do menino índio, experimentando todas as sensações que somente as narrativas podem proporcionar.

“Hoje cresci. Conta histórias como quem cata piolhos na cabeça de quem lê meus textos. (IDEM,p.40)

Esse tom filosófico e ao mesmo tempo poético permeia toda a obra na voz do menino índio. São revelados diversos costumes, percepções e saberes milenares. Saberes que fazem parte de uma cultura que tem muito a nos ensinar e a contribuir com a atual sociedade brasileira. Uma cultura que precisa ser reconhecida como parte de nossa identidade e que pode através de sua sabedoria nos livrar do preconceito e nos permitirmos aceitar nossa cara de índio. O livro é recomendado para crianças do ensino fundamental, na faixa etária de 6 a 10 anos. Contém ilustrações feitas por Mate, que revelam um pouco do olhar indígena sobre a arte, um olhar que observa tudo ao mesmo tempo. As cores quentes e frias misturadas, juntamente com os traços, as formas, dão vida a essa possibilidade de perspectiva multidimensional que pode ser lida por vários ângulos distintos. Pela sua riqueza em conteúdo e expressão, contribui muito para o letramento e desenvolvimento da visão de mundo do jovem leitor. O livro aborda vários aspectos do cotidiano de uma aldeia, dando ênfase ao olhar da criança indígena sobre esse cotidiano.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje existe uma demanda de literatura étnica, que até pouco tempo não se imaginaria possível. Talvez isso seja um sinal de que é preciso rever muitas coisas no que diz respeito ao currículo escolar, e também ao que consideramos literatura. Mas além das questões educacionais, essa vasta produção literária chama atenção para aquilo que deve ser o pilar de uma sociedade miscigenada como a brasileira, o respeito à pluralidade cultural. Somente após uma leitura diversa, tal como a literatura étnica pode nos proporcionar é que teremos um olhar mais sensível para tal realidade. Somos um povo misto, com uma produção cultural plural e literatura rica, precisamos reconhecer-nos e respeitar-nos.

A prosperidade da literatura indígena em língua portuguesa é apenas o resultado de muitos esforços e lutas que começaram bem antes com seus ancestrais, e que hoje ganham uma dimensão e importância fundamental e reconhecimento.

Conclui-se que o livro Catando Piolhos Contando Histórias é um convite a uma breve viagem ao universo indígena, onde através do cotidiano narrado pelas memórias do menino índio, o leitor é convidado a refletir sobre uma existência um pouco diferente da qual a atual sociedade brasileira se estrutura. Com outra perspectiva de vida, tão rica que merece permanecer e existir em sua complexidade sendo respeitada por toda a sociedade. Ser diferente não significa ser melhor ou pior, significa apenas ser diferente, portanto merecer respeito. Através desta leitura é possível que a criança perceba com mais clareza as múltiplas culturas que fazem parte da formação do povo brasileiro, criando-se assim uma forte barreira contra o preconceito, e tornando-se um indivíduo esteticamente mais sensível. Consequentemente um ser humano melhor, com um olhar plural para a vida e para o mundo, mais ético e menos preconceituoso.

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BIBLIOGRAFIA:

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária, 6ªed, São Paulo, Ed. Nacional,1980.

CÂNDIDO, Antônio.Vários Escritos – (Direito a literatura PP.235-263). 3ª ed, Duas Cidades, São Paulo, 1995.

GOMBRICH,E.H, História da Arte,16ª ed.LTC S.A, Rio de Janeiro, 1999.

HOLANDA,Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil,Companhia das Letras, 26ªed,33ªimpressão,São Paulo,1995.

ISA, Povos Indígenas do Brasil,São Paulo, 2011.

MUNDURUKU, Daniel, Catando Piolhos Contando Histórias,6ª impressão, Binque-Book,São Paulo,2006.

MUNDURUKU, Daniel, Meu Avô Apolinário,2ªed. Studio Nobel, São Paulo, 2009.

MUNDURUKU, Daniel, O Karaíba - Uma história do pré-Brasil,1ªed,Amarylis- Manole, São Paulo,2010.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, Companhia das Letras, 7ª impressão, São Paulo 2006.

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Karina Guedes
Enviado por Karina Guedes em 30/03/2012
Reeditado em 09/11/2023
Código do texto: T3585037
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