O jóquei Jorge Ricardo, um campeão mundial, já foi essencial para a moralização das corridas do Hipódromo da Gávea

O jóquei Jorge Ricardo, um campeão mundial, já foi essencial para a moralização das corridas do Hipódromo da Gávea

por Márcio de Ávila Rodrigues

[27/08/2024]

O jóquei Jorge Ricardo é realmente o fenômeno das rédeas. Aos 62 anos de idade (quase 63), monta regularmente no Rio de Janeiro e São Paulo, e a sua contagem de vitórias está com 13.316 (números de 19/08/24, a contagem está no seu Instagram pelo link https://www.instagram.com/jorgericardooficial/), um absoluto recorde mundial. O segundo maior ganhador na história do turfe é o canadense Russell Baze, que encerrou a carreira poucos anos atrás com 12.844 vitórias.

Uma história que é importante contar, inclusive pelo fato de ser pouco conhecida, foi a importância de Jorge Antônio Ricardo no projeto de recuperação do turfe carioca a partir da posse de José Carlos Fragoso Pires na presidência do Jockey Club Brasileiro. O saudoso empresário do ramo naval capítaneou o clube com sucesso entre 1992 e 2000.

Um dos problemas encontrados pelo grupo que tomou posse em 1992 foi a perda de um razoável volume de apostas - principal receita financeira da entidade - por causa do jogo clandestino (bancado pelos bookmakers) e também pela desconfiança sobre a lisura de boa parte das carreiras. Apostador desconfiado talvez não pare de jogar, mas arrisca menos dinheiro.

A administração e fiscalização das competições é função de um órgão da diretoria chamado comissão de corridas. E coube a este órgão, então presidido pelo turfista Milton Lodi, o trabalho de moralização das corridas. A recuperação da lisura.

Milton Lodi era o proprietário do Haras Ipiranga, iniciado pelo seu pai Euvaldo Lodi. E também tinha ligações familiares com Fragoso Pires, pois tinha uma filha casada com um filho dele.

O projeto de moralização era conhecido, mas obviamente não podia ser documentado. Não era apenas uma questão de estratégia, mas também segurança.

Jóqueis considerados "puxadores" e treinadores classificados como golpistas passaram a ser punidos com maior frequência e maior rigor. Um processo de seleção, uma peneira que foi mudando paulatinamente o perfil dos profissionais de turfe de então.

Na época havia um certo grau de contaminação advinda do jogo do bicho, provavelmente o jogo ilegal mais importante na história do cotidiano brasileiro. Os banqueiros (bicheiros) que o comandavam no Rio de Janeiro conseguiram montar uma organização, obviamente secreta, bem aos moldes da famosa máfia italiana. E criaram diferentes graus de influência e de poder decisório.

Alguns bicheiros se infiltraram no turfe como donos de cavalo ou em associação com bookmakers, que são os banqueiros clandestinos das corridas de cavalos. Entre os bicheiros que integravam a cúpula de comando, quem mais se destacou no mundo do turfe foi José Caruzzo Escafura, mais conhecido pelo apelido de Piruinha. Entre Rio de Janeiro, Campos e Belo Horizonte ele chegou a ter, segundo estimativas dos anos 1980, mais de 200 cavalos da raça PSI, simultaneamente.

Havia muita apreensão sobre os riscos de a diretoria agir com rigor nos casos de suspeitas de irregularidades cometidas pelos poderosos - e bastante perigosos - bicheiros e seus assistentes. Mas a omissão do novo grupo dirigente levaria ao fracasso seus projetos de estímulo às apostas, a principal fonte de renda. Sabe-se que há uma relação direta entre o grau de confiança dos apostadores e o volume por eles jogado.

Mas um fator externo ajudou sobremaneira a execução do projeto de reformulação. No segundo ano do mandato de Fragoso Pires, a juíza de direito Denise Frossard decretou a prisão simultânea de 14 bicheiros importantes, praticamente toda a cúpula de comando no Rio de Janeiro. A decisão da corajosa magistrada aconteceu no dia 14 de maio de 1993, durante uma audiência com o grupo de contraventores, uma semana antes da sentença de condenação.

A participação dos bicheiros no turfe envolvia dois aspectos: a manipulação de resultados e, principalmente, a “banca” de jogo clandestino, os “bookmakers”. O jogo clandestino caía nos cofres de seus banqueiros e eles faziam os pagamentos usando os rateios do Jockey Club. Um dinheiro desviado, com a consequente perda de capital necessário para a entidade sustentar suas atividades e seus funcionários. Na prática, uma parte dele voltava, pois os banqueiros, quando desejavam baixar os rateios, faziam repasses (chamados de descarga) para os cofres da entidade.

Já a questão da manipulação, infelizmente, era bem ampla e se enquadrava claramente na classificação de "cultural”, na decepcionante aceitação da malandragem nacional. Eram vários os seus formatos, mas o mais importante, sem dúvida, era a derrota provocada, a "puxada”. O objetivo final era chegar ao dia da vitória com um retrospecto ruim, que resultasse em poucas apostas, e proporcionando um bom rateio.

Os treinadores participavam da manipulação “despreparando” o cavalo para a corrida, o que é obviamente ilegal, mas não é fácil de executar. Tinham também a opção de inscrever o animal em provas difíceis ou inadequadas, com a finalidade de criar um histórico desinteressante para o apostador. Esta última opção é obviamente legal, um caso de esperteza.

Mas o personagem principal na manipulação de resultados é o jóquei. É ele quem está em cima do cavalo, quem pode exigir a melhor performance de sua montaria. Ou não. Essa é a origem da usadíssima expressão “puxada”. Puxar as rédeas para trás, no sentido oposto à corrida.

Os comissários de corrida da nova diretoria trabalharam ativamente na função repressiva, punindo com mais frequência e dureza os casos suspeitos.

Mas havia um trunfo diferente que a diretoria percebeu que poderia usar para dificultar as manobras. Era um trunfo menos impactante e menos problemático, sem riscos de conflitos. Usar o sucesso do jóquei Jorge Ricardo.

Ricardinho completou 30 anos em 1992, já no mandato de Fragoso Pires. Estava no auge da sua capacidade física e técnica, era procurado pela maioria dos proprietários e treinadores e quase sempre tinha duas ou três ofertas de montaria em cada corrida, ficando livre para escolher a melhor.

E havia um detalhe-chave em sua atitude: era absolutamente incorruptível, sempre teve a sede e a ambição de ganhar sempre e de somar números em seu formidável currículo. Manipular resultados em corridas com sua participação tornou-se uma tarefa árdua para os mal-intencionados.

Jorge Ricardo encaixou-se como uma luva no projeto de moralização das corridas de cavalos do Rio de Janeiro na última década do século 20. Era um projeto conhecido e facilmente observado por quem vivia aquele meio ambiente, mas não podia ser um projeto oficial. “Ricardinho” passou a ser especialmente valorizado e estimulado, mas isso não podia transparecer. Havia um favoritismo que jamais era citado.

Os tempos passam e as pessoas que participaram dos eventos citados não precisam mais se preocupar com consequências. Isso agora é história. Eu gostaria que alguém que participou ativamente do projeto acrescentasse todas as informações possíveis e interessantes.

Sobre o autor:

Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).

Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.

Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.