João Plá, o Pasteur caipira
João Plá, o Pasteur caipira
por Márcio de Ávila Rodrigues
[2006]
Uma história marcante, curiosa, que aconteceu nos primeiros anos de funcionamento do Hipódromo Serra Verde, reuniu como ingredientes o enfermeiro-veterinário João Nunes, o cavalo Beau Geste (nascido em Pedro Leopoldo, a uns 25 quilômetros do Jockey) e a doença da moda de então, a Anemia Infecciosa Equina (AIE).
João Nunes tentou a carreira de treinador ainda nos primeiros anos do Serra Verde, mas não conseguiu deslanchar. Era mais conhecido pelo apelido de “João Plá” por ser muito falante e expansivo. “Plá” era uma gíria da época para “conversa”.
Ainda no final do ano da inauguração (1970), uma epizootia de AIE dizimou grande parte dos cavalos da vila hípica do Serra Verde. Nos anos seguintes continuou atingindo casos isolados. O clube então contratou um veterinário da Polícia Militar, o capitão José Geraldo Cascardo, e o João Plá arrumou uma vaga de enfermeiro-veterinário.
O capitão Cascardo era um prestador de serviços, não ia todo dia ao hipódromo. Para suprir suas ausências, treinou o João Plá para os serviços de enfermagem. Até necropsia ele aprendeu a fazer, de tantas que ajudou. Assisti a uma necropsia feita por ele, sozinho, no cavalo de nome Felipe, no dia 22 de fevereiro de 1973. Era um potro de três anos, ganhador de uma corrida em três atuações no Serra Verde, que chegou a pontear um clássico de potrinhos no Rio de Janeiro, no ano anterior. Segundo o seu treinador Sérgio Pereira Gomes, ele havia recebido uma semana antes uma massagem no joelho com um produto muito cáustico, à base de óleo de cróton, para tratamento de uma manqueira, mas soltou-se do cabresto e lambeu o produto. O nosso patologista-prático diagnosticou lesões no estômago e intestino causadas pelas lambidas e decretou que esta foi a causa-mortis. Eu era muito jovem (18 anos) e acreditei na história durante anos mas depois, com a maturidade e experiência, achei-a muito estranha. Aliás, qual a utilidade de uma necropsia feita por um leigo de baixa escolaridade, apenas orientado com informações práticas de caráter técnico? Mas não discuto a utilidade do João Plá na enfermagem, inclusive porque a deficiência na antissepsia das injeções foi a principal causa da disseminação da AIE no hipódromo.
O trabalho preventivo do capitão-veterinário estava mantendo o Serra Verde sob razoável controle quando, em torno de 1975, o turfe mineiro foi surpreendido com a notícia de que o Beau Geste foi correr no Rio mas, antes da prova, foi diagnosticado como positivo para Anemia Infecciosa Equina e posteriormente sacrificado. A surpresa aumentou quando o João Plá pediu demissão e enviou à diretoria uma carta assumindo a responsabilidade por esconder de todos – inclusive do capitão Cascardo – a doença de Beau Geste.
Depois o “Plá” me contou que descobriu a doença meses antes, mas escondeu o resultado, pois viu aí a chance de ficar famoso, de tirar a sorte grande. Afinal, a AIE era a doença da moda em equideocultura. Quem descobrisse a cura ficaria famoso. Talvez até rico.
João Plá começou a se sentir um novo Pasteur. E mãos à obra! Começou a fazer experiências. Com entrada franca na cocheira, passou a utilizar o arsenal que tinha à mão para tentar a cura e alcançar o sucesso. Arsenal pequeno, pois o almoxarifado do clube era ainda menor que o seu cabedal de conhecimentos científicos, farmacológicos ou químicos. Ele me contou que misturava o sangue do cavalo-cobaia com água destilada e derivados de mandioca para “experiências”.
Um resquício de ética ainda apareceu nas maluquices do candidato a Doutor Frankenstein. Como ninguém desconfiava da doença, o cavalo treinava normalmente. Voltava da raia e o cioso João Plá estava lá, ao lado, se oferecendo para ajudar. Limpava os arreios e passava álcool na embocadura, pois este material depois era usado na boca de outros cavalos. Preocupava-se em garantir que sua experiência não causasse outros prejuízos. Na cocheira, o treinador ainda agradecia aquela prestimosa e gratuita colaboração.
Na época a AIE era frequente, o Ministério da Agricultura não acompanhava o desenrolar de cada caso. Para testar seus estranhos experimentos, o João várias vezes enviou o sangue do Beau Geste para o laboratório, com o cuidado de colocar no rótulo o nome de algum cavalo já comprovadamente infectado. E gravava o nome de Beau Geste no material coletado em um cavalo são, o que garantia tempo e liberdade para as suas experiências, que imaginava “científicas”. Um dia, o exame dele deu negativo. E este foi o único ponto de orgulho e satisfação que ele guardou de sua experiência pseudo-científica. “Não descobri a cura, mas pelo menos descobri um jeito de disfarçar o resultado”, me garantiu ele. Acho que esqueceram de dizer-lhe que laboratório também erra.
Passado algum tempo dessa situação absurda, o dr. Alberto Hissa, dono do Haras Alibra e do próprio Beau Geste, resolveu levar a sua cria para correr na Gávea. O João Plá depressa arrumou o sangue de um cavalo saudável e entregou o exame para o treinador, com o nome do Beau Geste no documento. Mas desta vez deu errado. No Rio de Janeiro alguém mandou repetir o exame. O resultado foi positivo, o cavalo sofreu sua sentença de morte e execução, mas o João Plá pelo menos teve a hombridade de assumir o erro e isentar o capitão Cascardo.
João Nunes desapareceu dos bastidores do turfe mineiro, mas nas décadas seguintes sempre chegava alguma notícia dele, quando encontrava algum profissional de turfe nos bares e ruas dos bairros de Venda Nova, São Benedito e adjacências. O sonho da fama e riqueza foi só sonho.
Sobre o autor:
Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).
Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.
Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.