Capoeira: O 22 do Marajó de Monteiro Lobato!!!
Antes do futebol, só a capoeiragem conseguiu um cultosinho entre nós e isso mesmo só na ralé. Teve seus períodos áureos, produziu seus Friedenreichs, e afinal acabou perseguida pelo governo, com grande mágua dos tradicionalistas que viam nela uma das nossas poucas coisas de legitima criação nacional.
Infelizmente não se guardou memoria escrita desse esporte, cujos anais se encheram de maravilhosas proezas. Não teve poetas, não teve cantores, não teve sábios que as salvaguardassem do olvido; e de todo o nosso rico passado de rasteiras, rabos d’arraia e soltas restam apenas anedotas esparsas, em via de se diluirem na memoria de velhos contemporâneos.
Que se fixe, pois, em letra de fôrma, ao menos o caso do 22 da Marajó com tanto chiste narrado pelo maior humorista brasileiro, esse prodígio Mark Twain inédito que é o sr. Filinto Lopes.
O 22 da Marajó era um imperial marinheiro, mestre em desordens, amigo de revirar de pernas para cima quiosques portugueses. Rapazinho bonito, imperava na Saúde onde suas proezas de capoeira excepcional andavam de boca em boca, discutidas como façanhas de Rolando. E tais fez que o governo, incomodado, deportou-o para o Norte, a servir em canhoneira da flotilha estacionada no Pará. A mudança de clima regenerou-o e o rapaz, resolvendo tirar partido dos seus dotes plásticos, ferrou namoro com a mulher de um Shipchandler, da qual se tornou amante.
Pouco durou o trio.
O Shipchandler morreu e o 22 casou-se com a viúva, herdeira dum paco de quatrocentos contos de réis. Pediu baixa, obteve-a e foi com a esposa em viagem de nupcias á Europa, onde permaneceu dois anos. Ao cabo regressou á pátria, elegendo o Rio de Janeiro para residencia definitiva.
Mas quanto mudara! Transformado num perfeito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas, as luvas, a cartola café-com-leite.
– Algum fidalgo certamente, cochichavam. Não vêem que modos distintos?
E o 22, impavido, petroneando de monoculo no olho, a olhar de cima para os homens e as coisas…
Tinha habitos certos e todos os dias passava pelo Largo de S. Francisco, como paca pelo carreiro.
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques, fortemente despeitados ante a esmagadora elegancia do desconhecido, rival perigoso, sem duvida, em materia de esporte feminino. Os quais rapazes, depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a prôa do novo concorrente, apenas aguardando para isso a bôa oportunidade.
Certa vez em que Petronio passava mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda chique um capoeira mordedor, que se gabava de ser mestre em soltas.
Quem sabe hoje o que é a solta, nesta epoca de kickes e shootes? Solta era uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco mil réis.
– Perfeitamente, responderam os rapazes, mas primeiro has de sapecar uma solta naquele freguês que ali vai de monoculo.
– É já! exclamou o capoeira, gingando o corpo. E, tirando o chapeu, foi postar-se na calçada por onde vinha o 22, de cartola e monoculo, sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em Londres.
Um, dois, tres… Quando Petronio o defronta, o capoeira avança e despeja-lhe uma formidavel e primorosa cabeçada.
O Petronio, porém, quebra o corpo, e a cabeça do atacante vai de encontro á parede, ao mesmo tempo que um pé bem manejado planta-o no chão com elegantissima rasteira. O mordedor, tonto e confuso, ergue-se… mas desaba de novo, cerceado por outra gentil rasteira. Passara imprevistamente de agressor a agredido e, desnorteado, deu sebo ás canelas, indo apalpar o galo da cabeça a cem passos de distancia.
Enquanto isso o Petronio, serenamente consertando a gravata, com grande calma dirige a palavra á assombradissima roda elegante.
– Só uma besta destas dá soltas sem negaça. Já dizia o Cincinato Quebra- Louça: soltas sem negaça, só em lampeão de esquina. Se “grampeasse”, inda vá lá. O Trinca-Espinhas, o Estrepolia e o Zé da Gambôa admitem soltas neste caso, mas isto mesmo só quando o semovente não é firme de letra.
E girando entre os dedos a bengala de unicornio, concluiu com saudades:
– Já gostei deste divertimento. Hoje a minha posição social não mais permite. Mas vejo com tristeza que a arte está decaindo…
E lá se foi, impertubavel e superior, murmurando consigo:
– Soltas sem negaça… Forte besta!
Passando o momento de estupor e depois de muito debaterem o estranho incidente, os elegantes planejaram solene desforra. Contratariam o famoso Dente de Ouro, da Saude, para romper o baluarte e quebrar de vez a prôa ao estranho personagem.
Tudo bem assentado, no dia do ajuste vieram colocar-se no carreiro da vitima, com o rompe-e-rasga á frente.
– É aquele lá! disseram, assim que repontou ao longe a cartola café-com-leite do Petronio.
Dente de Ouro avançou para o desconhecido. Ao defronta-lo, porém, entreparou e abriu-se num grande riso palerma – o riso da boca aberta quem reconhece um antigo parceiro.
– O 22… Voce por aqui?…
– Cala o bico, moleque, e toma lá para o cigarro; mas afasta-se, que hoje sou gente e não ando em más companhias, respondeu o Petronio, correndo-lhe uma pelega de dez e seguindo o seu caminho impertubavelmente.
Dente de Ouro voltou para o grupo dos elegantes, alisando a nota.
– Então? Perguntaram estes, desnorteados com o imprevisto desfecho.
– ‘cês tão bestas ! Pois aquele é o 22 da Marajó, corpo fechado p’ra “sardinha” e pé que nunca “lalou saque”. Estrompar o 22, ‘cês tão bestas.
Importantíssimo: Gingar!!!!
Na época o verbo gingar era empregado, na gíria do Rio de Janeiro, como alternativa a peneirar, e não tinha assumido o papel de termo técnico do jogo de capoeira.
O verbo gingar remete a um gesto comum para um marinheiro, o de empurrar um barco balançando um remo colocado em popa.
NOTAS
por Pol Briand
Vida das pessoas citadas
Lobato, José Bento Monteiro – escritor, editor, industrial, político e diplomata brasileiro, nascido em Taubaté, estado de São Paulo, em 18 de abril de 1882, e falecido em São Paulo em 4 de julho de 1948.
“22 da Marajó“. Os marinheiros acostumavam-se a ser chamados pelos números de matricula na tripulação dos navios. Houve uma canonheira Marajó, participante da Revolta da Armada em 1893 e afundada em frente ao Desterro (Florianópolis). O termo Imperial Marinheiro remete o início da história mais de trinta anos antes do tempo da narração. Essas vagas lembranças de fatos meio esquecidos da história do Brasil criam uma impressão de verosemelhança, remetem para um passado que parece algo familiar, mas que é difícil ou impossível situar com precisão. Essa técnica caracterisa os gêneros da crônica e do conto, de que Monteiro Lobato fez a sua especialidade.
Cincinato Quebra-Louça – apelido de capoeira não indentificado.
Dente de Ouro – apelido de capoeira não identificado.
Estrepolia – apelido de capoeira não identificado.
Zé da Gambôa – apelido de capoeira não identificado. O bairro da Gambôa no Rio de Janeiro é vizinho ao da Saúde, em que “imperava” o 22.
Trinca-Espinhas – apelido do capoeira Manoel João de Freitas, que aparece na crónica policial na noite de 7 de março 1880 ao ficar ferido de punhalada no peito num conflito , na rua de S.Cristovão [Tito Augusto Pereira de Mattos, Relatório do Chefe da Polícia da Corte, 31 de Março de 1880, anexo ao Relatório do Ministro da Justiça 1879, p. A-G-10 – ver www.crl.edu]. Também citado em Coelho Neto “Nosso Jogo”, in Bazar, 1928.
Rolando – guerreiro franco, personagem importante do popular cíclo de cantos de Carlo Magno, cujo modelo histórico faleceu em 778.
Cabe nestas páginas consagradas à capoeira considerar alguns detalhes, colocados por Monteiro Lobato –
Longe de ser um vadio ou desempregado como é colocado na lei de 1890, ou nos jornais do final do século 19, o conto apresenta o capoeira como bem inserido na vida social, mesmo que seja “mestre em desordens”. Houve marginais engajados à força na Marinha, porém o apelido de “22” mostra que era ativo como capoeira enquanto marinheiro. Entretanto, se era Imperial Marinheiro, o termo “removido” para o Norte muito melhor caberia à situação do que “deportado”. É que este último relembra vigorosamente as deportações para a região amazônica dos presos civis, feitas nas ocasiões do golpe de Floriano Peixoto em 1892, da Revolta da Vacina de 1904 e da Revolta da Chibata de 1910. O deportados de 1904 foram remetidos, em condições que evocam as dos navios negreiros, para o recém-criado Acre, isto é, na própria região estratégica que foi o motivo para a criação da frotilha do Pará. Deportados também para o Norte, na ilha de Fernando de Noronha, os presos da campanha de repressão à capoeira de Sampaio Ferraz em 1890.
Rasteira, cabeçada solta, negaça, rabo de arraia:
o léxico básico da capoeiragem está presente. Talvez “gingando o corpo” mereça uma menção especial. Na época o verbo gingar era empregado, na gíria do Rio de Janeiro, como alternativa a peneirar, e não tinha assumido o papel de termo técnico do jogo de capoeira. O verbo gingar remete a um gesto comum para um marinheiro, o de empurrar um barco balançando um remo colocado em popa.