Narciso não é uma for. Ou a Era dos Narcisos
 
O narciso é uma flor que cresce para baixo na beira de rios e lagos. Suponho aqui uma possibilidade: a de ele se exibir até despetalar por completo e morrer afogado no refúgio de sua vaidade. Espelhos d’água e narcisos são, assim, simples metáforas para simbolizar o ego dos reizinhos criados nas últimas gerações.
De onde vem este exagero dos pais modernos de instilar nos filhos pequenos a necessidade de se amarem acima de todas as coisas? O tema é complexo, mas uma pequena evidência salta aos olhos: é daí que brota o nefasto individualismo que nos assola. O desapego ao coletivo, nódoa que marca a pele da humanidade nos últimos cinquenta anos de forma progressivamente assustadora, nasce da constância com que eles são tratados como seres especiais. Elevação da autoestima e o centro do mundo focado nos seus interesses são apenas as partes mais salientes dessa aberração narcísica contemporânea.
Parece ser caminho sem retorno. O egoísmo aumenta a cada geração e ninguém, sociedade, escola, famílias e instituições se apercebem do fato e conjeturam sobre os males de uma humanidade guiada pelo supremo interesse em si mesma.
Aparentemente, tudo começou de forma ingênua e bem intencionada dentro das vísceras da Psicologia que prega o amor-próprio incondicional. A popularização dessas ideias, bem ao gosto da mídia rasa e apressada que repassa avidamente tudo o que se lhe apresenta, chegou aos ouvidos de uma população acrítica, destituída de qualquer capacidade de ler e entender significados além da reles aparência dos textos. Foi assim que o conceito do bullying foi se firmando como um separador entre as crianças saudáveis e as psicologicamente devastadas.
Bullying significa zombaria do mais fraco em que a ferramenta verbal, em vez de agressões físicas, instrumentaliza o desprezo e magnifica a humilhação. Por estranhos caminhos seus resultados são conseguidos pela persistência de pequenos gestos, repetitivos, depreciativos e jocosos. A vítima nem sequer reage, admitindo a derrota e o aniquilamento. Para ela, quanto mais espernear, pior é o resultado. Mas, num passado não muito remoto obesos, calvos e negros eram tratados sem sutilezas e eufemismos. Mesmo assim, nem todos tentaram suicídio ou se autocondenaram aos vícios.
Os mais antigos devem se lembrar de cenas escolares na hora do recreio. Pereba, quatro-olhos, careca, manquito, girafa, negão, japa e tantos outros adjetivos, que hoje seriam casos de invasão de assassinos em série nas escolas onde estudaram (mesmo que professores e alunos sejam outros a vingança contra a instituição não seleciona as vítimas) eram tratados com bom humor. Apelidos agregaram-se a nomes sem nenhum resquício de ódio ou violência, a ponto de se tratarem da mesma forma nos encontros de celebração de trinta anos de formados com a maior naturalidade.
E os mesmos detratores, estes sim, parte do contingente imbecilizado da humanidade, se batiam em retirada quando os viam vitoriosos. Fracassar nas carreiras ou se dissolver psicologicamente é atitude de derrotistas que foram criados em casulos e blindados contra adversidades. Das dificuldades nascem os fortes. Fortaleza que não se constrói com proteção excessiva, com o afastamento e o escamoteamento de situações adversas. Pais que se convencem por antecipação de que seus filhos são os mais bonitos e inteligentes da turma ignoram a realidade e com o agravante de proclamar estes atributos com exagero e constância. Qual o resultado disso? A produção de gente com excesso de autoconfiança e egoísmo que se frustra diante de uma mínima perda ou de previsível fracasso diante de problemas cotidianos.
Durante algum tempo, passado o período de perplexidade, hesitei entre ignorar e analisar esta questão. Com o passar dos anos alguns estudiosos com maior viés científico começaram a se preocupar com o exagero dos elogios frequentes e mal dosados a crianças diagnosticadas com baixa autoestima. Naturalmente estou inclinado a imputar de culpa mais os pais do que parentes e professores da irresponsável necessidade de dizer – pior ainda, de achar – que seus filhos são mais bonitos, inteligentes e espertos do que os que lhes estão próximos, isto é, seus rivais. Sou testemunha ocular da história de que foi assim que nasceu e prosperou, até o limite do máximo insuportável, a maníaca divisão do “nós contra eles” que assolou o Brasil nos últimos vinte anos.
Há um mundo que se chama umbigo. É lá que moram os homens fracos criados como reis e que se comportam como tiranos. Nada lhes pode ser negado, “o que custa me fazer isto?” eles berram aos nossos ouvidos. Gritam com serviçais, porteiros, motoristas de táxi, professores e, como qualquer liberdade produz libertinagem, ofendem com naturalidade chefes e progenitores. Quem sabe os velhinhos despejados em asilos no fim de suas vidas já não sejam vítimas de sua própria obsessão de exagerar na exaltação desnecessária aos filhos?
Pode-se inventar um nome para simbolizar o adulto jovem que detesta contrariedades quando malogra em seus planos? Sim: é o homem amargo, deprimido, ansioso e frustrado; o homem que continua criança em seus relacionamentos ou que não aceita a humana falha porque cresceu sob a expectativa de ser uma entidade superior. É o homem que foi criado para ter excesso de confiança, tônica da Geração Z e da que lhes antecedeu. Daí nasceu o poder jovem, que inverteu o sentido no caminho da progressão funcional nas empresas; começa-se já no topo. Nada de ser soldado raso ou contínuo de repartição e galgar postos.
Exibicionismo é a raiz do narcisismo que produz homens de caráter individualista. Na faixa dos vinte anos se pode ter certeza de que esta juventude já atingiu o grau de epidemia na arte de conquistar e descartar. Antes mesmo de desabrochar para a vida sua personalidade já está deformada pela extrema vaidade.
O narciso está com o olhar voltado para o lago mirando-se e admirando-se antes que se afogue.