ME CONTA UMA HISTÓRIA!

Durante a infância, apesar das condições financeiras não muito favoráveis, tive acesso ao maior patrimônio com o qual se pode brindar uma criança: amor e sonhos!

Éramos três: mamãe que ficou viúva ainda jovem, eu e minha irmã dois anos mais velha.

Sei pouco sobre a origem das famílias, não conheci nenhum dos meus avós. Me marcou uma informação que merece destaque. Segundo nos contou minha mãe, nossa bisavó italiana foi uma mulher extremamente ousada para o seu tempo, quando o racismo era quase palpável de tão forte – ela teria feito a escolha nada comum à época de eleger um companheiro negro.

Não herdei nem um pouquinho de pigmento, sou dessas branquelas que sofrem ‘bullying’ (Nossa! Você precisa tomar um pouco de sol!), mas certamente herdei a ousadia da bisa.

A família de meu pai devia ter ascendência portuguesa. Os filhos tinham nomes portugueses. O tio Manuel, tinha tido uma padaria... Encontrei tio Vital, há 15 anos, no enterro de minha mãe: reconheci imediatamente pelo rosto igualzinho ao do meu pai nas fotos, mas com os cabelos branquinhos. Após pesquisa, descobri que o primeiro registro do sobrenome paterno, foi de uma família portuguesa estabelecida no Recife.

Meu pai foi vítima de acidente no trânsito. 27 anos. Voltava do trabalho de bicicleta e foi atingido por um ônibus. Essa tragédia, 50 anos depois, segue acontecendo em toda parte desse país: não desenvolvemos um sistema de ciclovias decente que proteja a nossa população.

Nunca me comportei de forma depressiva por causa da perda. Eu era um bebê de poucos meses. Não tenho memória alguma de meu pai. Tudo o que sei é que ele dizia que eu seria cantora. Bem, não segui a carreira de forma profissional, mas cantei em bandas, bailes e eventos por um bom tempo! Em cada palco onde cantei e dancei com muita alegria, dediquei meu canto ao meu pai e agradeci à minha mãe por meu sucesso.

O sucesso a que me refiro é a minha alegria em viver, já que sou uma das pessoas mais felizes que conheço!

ERA UMA CASA...

Morávamos no subúrbio de Osasco, na grande São Paulo, em uma casa que mamãe comprou com a indenização recebida após o falecimento de meu pai.

A casa era pequena, mas tinha coqueiro e jardim na frente e, nos fundos, um quintal bem grande. Era um terreno em declive. Na parte mais alta e plana tínhamos árvores de frutas como manga, mamão, limão, goiaba, plantação de milho, fumo, café, horta de verduras e legumes e lá no final, fazendo o papel de cerca, as bananeiras.

Eu e minha irmã brincávamos no jardim, na horta plantando e arrancando cenouras , no quintal e com o bônus de poder sair pela rua descalças, de shortinho, descabeladas, livres para brincar, pegar minhocas, ver borboletas de todas as espécies e cores... Eu colhia flores do mato e trazia de presente para a minha mãe. Às vezes, ela já estava brava de procurar e gritar para a gente entrar em casa. Quando ia me dar a bronca, eu oferecia ‘flores’ e beijos. Pronto. Na maioria das vezes, a bronca ficava esquecida. Houve ocasiões em que apanhei mesmo! Privilegio as memórias de carinho e cuidado. Todos cometemos erros e quando mamãe errou conosco, foi por falta de preparo e sob a pressão de preocupações.

O que vale são os momentos edificantes! Como quando me cobria as mãos canhotas com as suas destras para me ensinar a escrever.

Passávamos os dias brincando, ouvindo canções italianas, interagindo com as pessoas da vizinhança, observando a mãe cozinhar, costurar, ler, bordar e escrever mil e uma palavras em seus vários cadernos de receitas, cartas e cálculos...

Que delícia que era fazer biscoitos de bichinhos, cortar e marcar com garfo os gnochis caseiros que a gente enrolava na maior alegria!

À noite, a gente dormia no mesmo quarto, em uma cama de casal. A mamãe no meio, uma filha em cada lado, apoiadas naqueles braços ternos e gorduchos feito travesseiro...

CONTAÇÃO DE HISTÓRIA

Era muita conversa, divagações e histórias.

Contos da Carochinha, Fábulas de Esopo, Irmãos Grimm, sem falar nos casos mais inverossímeis do mundo que ela inventava (até caso de abdução por alienígenas ela protagonizava!)

Além disso, mamãe fazia vozes de bichos, barulhos e onomatopeias, prendendo a nossa atenção e pedindo nossa participação... Fazia pausas dramáticas e indicava a nossa vez de falar.

Já adulta, frequentei as aulas do Teatro Macunaíma por algum tempo, mas devo dizer que o Curso de Iniciação ao Teatro mais bacana foi a senhora minha mãe quem ministrou!

Das Fábulas de Esopo, uma das minhas prediletas era “A Cigarra e a Formiga” e por identificação! Eu era a Cigarra, claro...

Às vezes vou adiando as tarefas da casa: primeiro devo concluir um trabalho, uma publicação, uma tradução, enviar relatório, checar o e-mail, o Whatsapp e o Facebook... Só não fica bagunça porque moro sozinha e com um esquema de organização que até funciona.

De volta ao quarto das 3 meninas...

Quando não era história, eram jogos de sombras, perguntas, adivinhações... Uma pergunta frequente em formato de entrevista:

“O que você vai ser quando crescer?”

“Ah, eu vou ser bailarina! Cantora! Professora! Astronauta!” As respostas variavam... E como eu não tinha foco, continuava. “E vou me casar com um Príncipe e morar em uma casa bem grande e com piscina!”.

Psicóloga de mim mesma, já posso me arriscar a traduzir um pouco dessas respostas infantis, mas autênticas.

A bailarina-cantora-professora-astronauta segue comigo e se manifesta em tudo o que sou e no que faço.

É preciso arte para viver. Se não abstraímos não criamos nada.

E como contribuir sem a habilidade da criação? Seja qual for o título da profissão na qual me graduei (Letras e Tradução), seja qual for o cargo que ocupe em empresas (que me lembre já estive em quase 10 posições diferentes), meu objetivo fundamental é fazer uso de minhas habilidades para contribuir, melhorar, reaprender e colaborar dentro do ambiente ao qual pertença.

Não é mais “quando eu crescer”, mas é “enquanto eu crescer”: enquanto viver, quero crescer e me colocar à disposição – colaborar, conviver feliz.

Já aquela história de Príncipe e piscina fica por conta dos milhares de contos de fadas que ouvi e quinhentas mil revistas que lia, onde figuravam as tais piscinas.

Ao longo da jornada, tive a chance de viver poucas, mas belas e duradouras histórias de amor. Amei e fui amada com entrega e paixão. Nesse exato momento, depois de quase um ano do último rompimento, já guardo uma lembrança de amor e respeito sobre o que houve e estou pronta para recomeçar.

Tenho muito amor e gratidão por minha vida. Sempre haverá espaço ao meu lado para quem queira ser mais feliz.

A professora é sempre eterna aprendiz. Pode aprender com astronautas e atendentes, com motoristas de táxi (e Uber ) ou filósofos daqueles que dizem que é preciso aprender, apreender, desaprender e reaprender.

***

A minha história é a história de meu pai, José, dos portugueses antes dele, de negros trazidos em navios, de imigrantes esperançosos, dos poetas que tantas vezes recitei à janela, de cor, ao lado de minha irmã Cláudia. Mas, principalmente, é a história de minha ilustre e muito amada mãe, Francisca, que se estivesse viva, teria comemorado seu aniversário no dia 14 de agosto.

Graças ao Amor e ao cuidado que me dedicou, sigo feliz pela vida e a represento em cada tentativa de evoluir.

Uso o batom vermelho que aprendi a amar observando a arrumação simples e bonita nas raras vezes em que ela saía de casa.

Vejo Paula e Giovanna (suas netas), belíssimas e identifico em ambas, traços de uma beleza muito conhecida...

Aplico o meu perfume e ainda a ouço dizer:

“Filha, antes de você chegar, já sinto o seu perfume!”.

Isso parece trecho do Pequeno Príncipe, não é mesmo?

Mas eu avisei que ia te contar uma história (e foi apenas a primeira parte).

AGOSTO, 2018

Claudete Mello
Enviado por Claudete Mello em 25/08/2018
Código do texto: T6429720
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