O jardineiro fiel: um exercício de análise
O despertar para a trajetória inicia-se com a morte. A morte como marcador de tempos, como divisor de águas, como porta de entrada para um novo caminho.
A morte é o espanto necessário que leva à reflexão. Que leva ao movimento de tornar-se quem se é. Enquanto não havia movimento da problemática até a reflexão, Justin mantinha-se bem acomodado, de olhos fechados e em seu cargo de diplomata inglês, reproduzindo a fala daqueles que pagavam o seu salário, acreditando que o problema social dos quenianos é muito maior do que ele podia imaginar, ou tentar amenizar. Entre tantos que precisam de ajuda, como ajudar uma única pessoa poderia resolver? (Foi o que Justin disse a Tessa quando passavam por uma família que ganhou e perdeu um membro da família ao mesmo tempo. A mãe – uma criança ainda - ao trazer ao mundo uma vida, deixou a sua para trás). Somente Tessa e o cultivo de suas flores continham importância em sua vida.
“[...] pequeno ou grande, e pouco importando o estágio ou grau da vida, o chamado sempre descerra as cortinas de um mistério de transfiguração – um ritual, ou momento de passagem espiritual que, quando completo, equivale a uma morte seguida de um nascimento. O horizonte familiar da vida foi ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o momento da passagem por um limiar.” (CAMPBELL, 2007, p. 61)
Tessa esteve com ele no Quênia, pediu para que Justin a levasse. Realizou investigações perigosas, se inquietando sem fechar os olhos para o sofrimento que a aliança entre políticos e grandes empresários que testavam seus medicamentos no povo queniano em troca de porcentagens em dinheiro causavam. (As famílias quenianas só tinham direito ao atendimento médico se consentissem com os testes das drogas farmacêuticas). Segundo os envolvidos na distribuição de drogas, estas pessoas miseráveis já estavam condenadas a morte de qualquer maneira por conta da condição de vida que tinham, portanto eles não estavam causando nenhum dano que já não existisse naquela terra.
De qualquer maneira Tessa cumpriu sua trajetória, começo, meio e fim, no (2005) fio de sua própria narrativa. Foi enterrada em solo africano como desejou em vida.
Mas Justin, até então, nunca demonstrara algum interesse em saber do que se tratavam as investigações de sua esposa. Mesmo quando observava o visível cansaço físico e psicológico de Tessa, manteve-se imperturbável. Afinal, sua esposa continuava ali, e ela não permitiria que a impedissem de continuar realizando o que dava sentido à sua vida, então, porque se intrometer em seus assuntos? Nem mesmo a desconfiança de traição por parte dela o abalou a ponto de tentá-lo a descobrir o que ocorria. Fechava os olhos para todas as possibilidades.
Mas o chamado foi realizado, a morte de Tessa deixava um assunto mal resolvido – ela foi traída por um amigo que entregou seu caminho para aqueles que não estavam contentes com suas atitudes e pretendiam parar com suas investigações. E ao aceitar abrir os olhos para os testes que as indústrias farmacêuticas realizavam no Quênia, Justin aceitava a viagem interna que o transformaria. O sofrimento presente nas lembranças de sua esposa o fizera desejar continuar o trabalho que ela começou. E esta é a passagem para o seu renascimento.
Ameaças e agressões o acompanharam em sua jornada. Um bilhete escrito “Desista. Vá para casa e viva” lhe enviaram. Mas já não importa mais. A jornada escolhida é um caminho sem volta. Como voltar e viver, simplesmente? Já não fazia sentido o modo que conduziu sua vida até então, já não era mais adequado. O momento em que se hospedara na antiga casa de Tessa na Inglaterra é crucial para esta transformação. Todas as lembranças, carregadas de significados o machucavam. Foi a primeira vez que Justin chorou sua morte. E foi também a partir disso que voltou para o Quênia, a fim de continuar com as investigações de sua morte e concluir sua jornada.
“Este caráter trágico engendrado pela própria liberdade confere à pessoa a dimensão não apenas heróica, mas existencial, em que pesam suas opções, atitudes, posturas num mundo concreto permeado de várias relações afetivo-emocionais com o Outro.” (SANTOS, 2005, p. 173)
Após ser engolido para dentro e ressignificar sua existência, uma fala marca a mudança de seu ser: Entre tantos que precisam de ajuda, porque não ajudar essa única pessoa que está ao meu alcance? Agora ele percebia o sentido e o valor que tem uma única vida.
Estas pessoas, africanas, tidas como vidas baratas, condenadas a morte de qualquer maneira pelos grandes empresários do mundo são o Outro. E sua nova postura diante do mundo não lhe permite mais passar por essas pessoas de modo indiferente. Estas pessoas têm histórias, família, dificuldades, lembranças e dores que as compõem e não podem ser descartadas como vidas menores, menos valorosas. Abuk é sua relação direta com o sentimento de empatia pelo Outro. Escutou a mesma frase que disse em outra ocasião a Tessa, quando tentou levá-la junto com ele no avião de resgate que o resgatou dos traficantes locais, porém não foi possível e acabou deixando Abuk para trás: são muitos precisando de ajuda.
“A primeira exigência de que trata Mounier na comunicação humana é, exatamente, esse exercício difícil de relativizar nossos valores, cosmovisões, regras morais e sociais, etc., para compreender – em profundidade- a emergência da outra pessoa.”. (SANTOS, 2005, p. 39)
Aquelas pessoas, européias ou oriundas de países ricos estavam ali, em solo africano, sem enxergar seus habitantes. Sentiam-se no direito de explorá-los, machucá-los sem nenhum constrangimento, como se estas pessoas, o Outro, fossem objetos dispostos a exploração. A grande divindade monetária acima de tudo e de todos.
Terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio da graça de alguma personificação masculina ou feminina, humana ou animal, o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a benção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos.”. (CAMPBELL, 2007, p. 195)
O retorno com o troféu representa em O Jardineiro Fiel a conquistas das provas que incriminavam as pessoas responsáveis pela a atrocidade cometida no Quênia.
Justin foi atrás de todas as pistas deixadas - E a sua jornada foi sempre acompanhada de lembranças atormentadas de Tessa - Depois de realizar vários contatos, visitar pessoas, estar em situações de risco e acessar arquivos pessoais no computador de sua esposa, confiou em seu primo para garantir que o conteúdo seria compartilhado caso algo lhe acontecesse durante o processo.
E assim foi feito. Justin foi perseguido durante todo o tempo e encontrado por seus perseguidores no local deserto que planejara. Mas naquele momento ele estava em paz afinal. Tessa estava ali, mas sua presença era serena, não mais atormentada. Ele estava pronto para a partida, certo de que também conduzira sua vida no fio de sua narrativa; começo, meio e fim. Trouxera o troféu de renovação da humanidade e poderia seguir o seu destino.
“Quando nomeamos um sentido ele se cristaliza e se torna real assim como no processo de decantação nas vidrarias translúcidas do laboratório. Basta darmos um nome para que as coisas passem a existir. A palavra tem estatuto progenitor... Entre os guarani há a mesma concepção: os seres humanos vivem para cumprir o destino de seus nomes.”. (SANTOS, 2005, p. 93).
Referências bibliográficas
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
SANTOS, M. F. Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica e educação em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2005.