UM OLHAR NEANDERTHAL
Lembro-me bem do dia em que entreguei o primeiro distintivo “LIS DE OURO” da história de Pernambuco a um escoteiro do 46º PE Grupo Escoteiro Marechal Osório. As lágrimas vieram-me aos olhos. Sabia naquele momento que havia vencido uma barreira intransponível para aquele jovem: André Carneiro da Cunha. Filho de doméstica e pedreiro, sem nenhum grande projeto de vida. Este jovem havia vencido todas as dificuldades apresentadas e chegou mesmo a conquistar 22 especialidades escoteiras. Vinte e duas! E o que vale salientar: até as especialidades de técnicas escoteiras eu fiz questão de que outros chefes as avaliassem e autorizassem. Tenho plena consciência que não “dei” nenhum daqueles 22 distintivos! Foram conquistados com garra e fibra! Naquele momento só não tinha consciência de uma coisa: que havia feito história!
No acampamento ELO de Igarassú em 1985, este mesmo jovem a apenas seis meses de sua promessa, já ostentava uma Segunda Classe com orgulho. No ELO de Curcurana em 1986, fez sua Jornada de Primeira Classe e galgava os últimos degraus para a conquista do distintivo máximo: a “LIS DE OURO”. No ano de 1987 em uma noite de sábado de Agosto, tive a suprema honra de entregar-lhe o tão sonhado distintivo “LIS DE OURO”. Vale recordar que tive que pintar o distintivo já que a Região Escoteira, mesmo o titulo sendo concedido pela Direção Nacional, não forneceu o mesmo (como era praxe naqueles dias). O jovem André Carneiro da Cunha fez história em Pernambuco. Fez história em uma época em que ter um distintivo daquele porte era o marco de excelência de escotismo! A prova disto é que mesmo existindo Grupos Escoteiros como o Guia Lopes e o São Francisco de Assis (que apresentou no CAB de 1986 dois escoteiros com Cordão Verde e Amarelo), foi lá em Maranguape II, no 46º PE Grupo Escoteiro Marechal Osório, um grupo de meninos pobres e com uma chefia “inexperiente” que surgiu o primeiro “LIS DE OURO” de Pernambuco.
Agora vem o olhar do Neanderthal: Será que exigíamos demais de nossos rapazes, quando colocávamos o caráter, o companheirismo, a convivência familiar como marcos de comportamento para a conquista de tal distintivo? Será que estávamos sendo radicais quando queríamos que um escoteiro com este nível sobressaísse-se na escola e no seu dia a dia fosse reconhecido como uma pessoa digna? Será que era nossa implicância que os levava a não conquistar tais patamares? Poderíamos justificar um médico que não tivesse feito integralmente seu curso receber o diploma e medicar? E será que é imaginável alguém ser médico sem ter passado nas melhores colocações no vestibular? Se nada disto é possível, como poderemos ter “LIS DE OURO” às mancheias hoje? Conquistamos o patamar de termos jovens engajados de tal forma em seu próprio desenvolvimento que o que deveria ser a conquista do ápice passou a ser o comum de todos eles? Estamos no mundo ideal? Finalmente o objetivo de Baden-Powel foi alcançado? Se assim é, onde estão estes mesmos jovens em seu dia a dia? Quais as suas notas nas escolas? Seu comportamento familiar é primoroso, como atestam seus distintivos?
Não precisamos ser radicais e querermos que um jovem de 12 ou 13 anos compreenda todo o arcabouço de desenvolvimento moral, cívico e social que estamos agregando ao seu caráter. Até por que muito Chefe Escoteiro ainda não se apercebeu disto... Mas não vamos agir com leviandades e distribuir distintivos de conhecimento, que somente atestam nossa incapacidade de adestrá-los. Sim! Adestrá-los! Por que não? Adestramento, segundo o bom dicionário é tornar destro, hábil. E o que nós fazemos, quando o fazemos, como Chefes Escoteiros é tornar o jovem destro, hábil em alguma coisa. Adestramos sim senhor! Formação vai muito mais longe. Não alteramos seu ambiente familiar, não alteramos seu ambiente de trabalho, não alteramos seu ambiente de convivência com os amigos... Que diabos de formação é esta que não forma? Formação é criar uma nova forma... Nós nos perdemos quando não procuramos compreender a profundidade do que fazemos e com o tecnicismo dos “professores” que pululam entre nós, com seus conceitos pedagógicos modernos (parece-nos que Piaget e Kant estão ultrapassados) alteram termos que vêm sendo usados desde as Legiões Romanas para termos somente adequados à escola formal. Na escola escoteira nós não formamos ninguém! Quando somos vitoriosos os deixamos mais ágeis, mais destros e mais hábeis em alguma pequena especialidade. Talvez seja o tecnicismo que facilitou a vida de nossos novos “LIS DE OURO”. Jovens que usam seus distintivos sem o garbo de outrora. Mas isto é só modo de pensar de um Chefe ultrapassado...
Fernando Barbalho de Melo – IM
(O Chefe Fernando é Chefe de Grupo do Grupo Escoteiro Independente Marechal Rondon)