O coach como vendedor de mentiras
Se na Era Moderna o produto mais valioso era a informação, na Pós-Modernidade, o produto mais comercializado se tornou a mentira, e como maior serviço, a capacidade de produzir mentiras. A factibilidade se tornou obsoleta. O importante agora é ser crível. Consome-se a desinformação e anticiência como água, oxigênio ou qualquer outra coisa necessária à nossa sobrevivência.
Numa sociedade em que ninguém nasce homem ou mulher e a terra é plana como um beiju de tapioca, nos encaminhamos para uma espécie de extinção parcelada em várias vezes. Para que possamos entender tudo isso, partimos do pressuposto de que a informação é a base para entendermos a fase histórica que atravessamos.
Na Pré-História, se produzia e registrava informação. Na História, o ser humano produziu, registrou e transmitiu a informação para posterioridade. Na frenética Hiper-História, produzimos, registramos, transmitimos e processamos informações num nível cada vez mais rápido e avançado.
É esse admirável mundo novo que surge o coach. A crítica é direcionada a prática da profissão em geral e não a esse ou aquele profissional ou método. Acredito que críticas construtivas são sempre bem-vindas. Nessa esteira, buscando a origem etimológica da palavra Coach, veremos que o estrangeirismo emprestado da língua inglesa tem uma outra origem.
Koscsi é um termo húngaro. Kocs é uma cidade húngara do condado de Komárom-Esztgorm. Margeia o Rio Danúbio. Era uma grande produtora de carruagens no século XVI. Os ingleses pronunciavam carruagem kocsi como coach. Noutra variação, os servos que trabalhavam na carruagem eram chamados de coach. No século XIX, os alunos de Oxford a usavam como gíria para tratar os professores que trabalhavam nos exames finais.
Na segunda metade do século XX, a palavra começou a designar o profissional que treinava atletas. Isso despertou o interesse de executivos que optaram por trazer técnicas de treinamento de atletas para o interior de suas empresas. Sendo assim, o coach mudou de “aquele que é conduzido” para “aquele que conduz”.
Os coaching se utiliza de diversas técnicas e conhecimentos interdisciplinares que vão desde Linguagem a Neurociência. O método consiste em sessões de coaching com o cliente visando ações que viabilizem alcançar seus objetivos pessoais e mudanças positivas em sua vida. Seu maior grau de aperfeiçoamento. O problema é quando isso é usado como um mecanismo de alienação social.
Os coaches se tornaram produtores e vendedores mundiais de mentiras. E isso não surge por geração espontânea, é mais uma cegueira deliberada. Fingir não ver para diminuir a sensação de que o falseamento da realidade seja menos danoso do que parece. O profissional do coaching tem educação e conhecimentos suficientes para entender que o mundo é gerido por um sistema macroestrutural.
Esse sistema é como um circuito fechado, só admite a inserção daqueles que façam o seu jogo. Entretanto, de modo daninho, numa espécie de defesa meritocrática, os coaches atribuem ao indivíduo toda a responsabilidade de seu sucesso ou fracasso. Isso é irresponsável por dois motivos: acrítico e a-histórico.
Levando em consideração que pessoas e grupos sociais inteiros nascem em condições socioeconômicas desiguais, equiparar a sua própria condição a de outros é uma hipocrisia. Ser um branco da classe média, heterossexual, morador do Sul ou do Sudeste, possuindo acesso a uma moradia confortável, plano de saúde, dieta adequada, e educação de qualidade; e ao mesmo tempo comparar sua ascensão social com um jovem sertanejo que corre atrás de vacas magras na caatinga no interior do Nordeste, onde se compra água em carros-pipas e a mão do Estado só chega para retirar impostos, é desonesto.
A meritocracia, diferente da isonomia, parte do pressuposto que o indivíduo é o único capaz de remanejar as forças sociais, econômicas, políticas e culturais que interferem em sua vida. Seria interessante ver um coach explicar isso para refugiados africanos que se amontoam as portas da Europa pedindo exílio. Atribuir ao indivíduo a responsabilidade por tudo, é o mesmo que silenciar sobre a opressão das classes mais altas, fechar os olhos para as desigualdades, para a própria história, da ausência de políticas públicas no país.
O culto da meritocracia é acenar para a violência do Estado e fazer propaganda positiva da opressão das elites. E há um discurso comum em todos os coaches que conheci: a desvalorização do Ensino Superior. Alguém que se deu ao luxo de não ir a faculdade e ganhar dinheiro no YouTube fazendo vídeos não é qualquer pessoa, é alguém que teve a opção de escolher. Os relatos dos coaches sobre seu “sofrimento” são muito sugestivos. Basta ouvir menos de sessenta segundos para saber que aquela pessoa nunca sofreu nada além de uma privação da mesada que recebia dos pais.
Quando o coach diz ao público que a universidade é uma perda de tempo, isso deve ser analisado com muito cuidado. O coach é alguém que não pertence as classes sociais mais baixas. Não passou pela opressão, preconceito ou sofreu racismo. Não sofreu com a fome ou falta de assistência médica. E provavelmente, é alguém que já possui um curso superior ou técnico. Mesmo que não possua, é alguém abastado. Trabalhou na empresa familiar ou seu meio social lhe apresentou outras possibilidades mais. Nenhum coach vai te dizer para ter um diploma na vida. Ao contrário, ele vai te indicar pirâmides financeiras, onde, em muitas ocasiões, ele é o dono ou um sócio.
Os coaches vão te dizer que o mundo é desigual, mas não irã te explicar o porquê. Os motivos? Eles fazem parte disso tudo. Lembre-se, eles comercializam mentiras. São peças essenciais nesse mecanismo de alienação consuetudinária. Lubrificam as mentiras com sonhos. A alienação é tida como uma quimera. Nunca abordarão a luta de classes, nunca tratarão de raça e racismo, de misoginia, da violência simbólica e estética, LGBTfobia, nunca tratarão de intolerância religiosa, de conflitos históricos sobre territórios e muitas outras coisas. Tudo se resume ao indivíduo. O sujeito sozinho, assim como Scott Pilgrim, irá lutar contra o mundo. Perderá de certo. Isso não é pessimismo, é realismo. O mundo não é um filme da Disney onde você, pobre, sem dinheiro, educação e até mesmo saúde, irá se tornar o mais novo multimilionário playboy do pedaço da noite para o dia.
Meu objetivo não é dessubjetivar e destituir o sujeito de escolhas e responsabilidades. Mas é injusto apontar unicamente para ele quando condições estruturais e adversas sãos fatores maiores a serem considerados. Para um coach, políticas públicas e ações afirmativas atrapalham os negócios, afinal, elas trazem verdades. Verdades não vendem muito bem no mercado. É por isso que fake news fazem tanto sucesso. O coaching como prática individual é eficaz, mas como ação humana é inútil.