A Autonomia do Desejo

Introdução

‘Quando se é um filho indesejado, procura-se

uma identidade que pareça aceitável.’

Marlon Brando.

O presente artigo organiza-se em torno da autonomia do desejo, que se alicerça na relação livre do sujeito com seu próprio desejo e se articula à sua formação saudável no bojo da família. Para discutir os elementos psíquicos que atuam nessa autonomia, três casos clínicos são dados a conhecer. Aliadas a eles, as concepções de desejo, do trauma do absoluto e do sistema das representações − que ora se expõem – fundamentam-se na clínica da autora, de base psicanalítica. Conceitos de outros psicanalistas, igualmente, ajudam a analisar a questão da autonomia do desejo.

O desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

O desejo humano configura-se como uma gama de representações e afetos, que potencialmente fomentam movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação. Ele constitui o vetor de orientação desses movimentos até se realizar no mundo, sendo influenciado pela intersubjetividade da família. Em virtude dessa influência, inibições do desejo do sujeito podem prejudicar sua realização na vida adulta. Dentre as circunstâncias que comprometem sua realização, faz-se mister considerar o trauma do absoluto (Almeida, 2003).

O trauma do absoluto refere-se às representações sobre-investidas por ódio e horror: ser abandonado, ser desamparado, ser rejeitado, ser não-amado, para sempre, sem lugar no mundo, entre outras. Atesta a prevalência do ódio sobre o amor ao filho − oriundo do narcisismo destrutivo dos pais − que desconsideram seu direito à diferença. O aprisionamento psíquico desse herdeiro no absoluto impede a satisfação de seu desejo, ainda que ele tenha potencialidades para satisfazê-lo, em sua vida adulta (Almeida, 2003).

O sistema das representações constitui um aparato psíquico virtualmente capaz de representar impulsos, relações de objeto e diferentes estados mentais do sujeito. Em seus diversos estratos psíquicos, há representações de si na relação com o outro e com o mundo. Essas representações relacionam-se com elementos psíquicos absorvidos pela criança, à medida que seus pais propagam conteúdos psíquicos recebidos da linhagem antepassada. A capacidade do sistema das representações de representar os vários estados mentais do sujeito é bastante alterada pelo trauma do absoluto, de cunho transgeracional (Almeida, 2003).

A autonomia do desejo

A autonomia do desejo é um construto hipotético que dialoga com o trauma do absoluto: seu contraponto psíquico, no sentido de bloquear a relação livre do sujeito com seu próprio desejo.

A autonomia do desejo significa ter princípios e leis próprias quanto ao desejo e buscar assumí-lo em sua amplitude de facetas: amor, sexo, trabalho, sucesso, auto-realização, entre outras. Assumir o desejo significa aceitá-lo como inalienável de si e legítimo, de modo que o sujeito o sustenta em si: em seus talentos, capacidades, dedicação, perseverança, entre outros. Para tanto, ele deve fazer contato entre seu desejo e a realidade, sem fazer do outro, mero suporte utilitário para satisfazê-lo. A autonomia e a saúde psíquica dependem da relação potente, fluida e autossustentada do sujeito com seu desejo, posicionando-se ativamente no mundo para obter dele novos recursos para sua satisfação. Elas passam ao largo das idéias de perfeição e de um funcionamento mental estático, no qual o sujeito não é atingido pelos confrontos de seu eu consigo e com a realidade. A saúde psíquica não é ausência de conflitos momentâneos quanto ao desejo, ainda que os conflitos patogênicos e crônicos devam ter sido resolvidos numa análise. Para tanto, é imprescindível profundo contato entre consciente e inconsciente, para se lidar com a relação eu-outro e os limites impostos pela realidade do mundo. A esse respeito, Freud (1917) afirma que, numa análise, o conflito patogênico é transformado em conflito normal, para o qual se pode achar uma solução.

Além disso, a autonomia do desejo se associa à primazia do amor sobre o ódio na psique. Nesse sentido, a psicanálise propala a fusão entre os impulsos amorosos e agressivos − com o predomínio dos impulsos amorosos − como base para o bom funcionamento psíquico. Para Freud (2006), a libido é fator de ligação e a agressividade tende a dissolver relações. Complementando, Laplanche e Pontalis (2016) atestam que quanto mais a libido prevalece sobre a agressividade, mais ocorre a fusão entre impulsos libidinais e impulsos agressivos. Por outro lado, quanto maior for o predomínio da agressividade sobre a libido, mais a fusão pulsional se desintegra.

Dando continuidade a essa reflexão sobre a autonomia do desejo, outros componentes do sistema representacional precisam ser apreciados. Dentre eles, as representações, os afetos, as posições simbólicas, os paradoxos, a identificação e a contra-identificação são discutidos, a seguir.

Na formação do sistema representacional, representações do sujeito articulam-se às representações das figuras parentais: ser um filho abandonado faz parceria com um pai ou mãe abandonadores, dentre outras parcerias. Além do mais, nele se encontram representações coerentes entre si − ser boazinha e ser concessiva, ser educada e ser obediente, investidas por amor − e representações contraditórias entre si − ser boazinha e ser briguenta, ser inteligente e ser burra, investidas por amor e ódio. A consonância entre as representações investidas por amor pesa a favor da saúde psíquica e a contradição entre elas com sua carga de ódio predispõe à confusão mental.

Grupos de representações – inconscientes, geralmente − constituem as posições simbólicas. As posições reúnem representações do lócus do sujeito na família − pai, mãe, filho − e representações de si – amado ou odiado; escolhido ou rejeitado; ativo ou passivo; determinado ou indolente, entre outras. Elas se caracterizam por uma espécie de forma e de conteúdo, envolvendo as representações. O contorno de uma posição tem por base o lugar do sujeito na tessitura familiar e seu conteúdo depende da modalidade de ação exercida nesse lugar. Assim, a forma pode remeter ao lócus de pai e seu conteúdo pode ser o de protetor, negligente, sádico ou ausente. Além disso, as posições simbólicas do adulto formam parcerias com as de seu consorte, com base em suas posições infantis junto às figuras parentais.

A coerência ou a incoerência entre a forma e o conteúdo de uma posição associa-se aos paradoxos. O teor de um paradoxo inclui o tipo de representação que o constitui e os setores do sistema das representações que ele atinge: sensação, emoção, pensamento, ação, sobrevivência e a própria existência do sujeito. Considerando a questão do paradoxo, Racamier (1980) pontua que ele liga indissociavelmente duas proposições, remetendo uma à outra. Submete o sujeito a duas ordens não conciliáveis entre si, sendo impossível obedecer a uma delas, sem desobedecer à outra. Essa agressão ao eu suscita um ódio intenso no sujeito e provoca grande confusão em sua psique. No que se refere a isso, Rosenfeld (1968) afirma que os estados confusionais são comuns no desenvolvimento normal e patológico. Quando predominam os impulsos de destruição, nem os impulsos de amor e de ódio, nem os objetos bons e maus são diferenciados uns dos outros, tornando-se misturados ou confusos. Tais estados infantis de confusão mental se relacionam com os estados confusionais do adulto.

As posições derivam da identificação e da contra-identificação da criança com certas características psíquicas de seus pais. Sua identificação com características e posições parentais tende a produzir representações de si idênticas às parentais: ser perseverante como seus perseverantes pais e ser cruel consigo como seus cruéis pais o foram com ele. Ela gera, ainda, a parceria entre uma representação de si prescrita pelo genitor e complementar a outra representação dele: ser chupim do pai poderoso e sádico, que merece ser espoliado. Ademais, sua identificação com as representações parentais depreciativas atribuídas a ele – ser estúpido, ser lerdo, ser mole – o impede de ser um adulto com autonomia, pois seu desejo não consegue se diferenciar do desejo parental. Quanto a isso, Freud (1921) diz que a identificação molda o ego de uma pessoa, segundo aspectos psíquicos de um modelo. Constitui a forma original de laço emocional com o objeto primário e se torna sucedâneo para um vínculo de objeto libidinal. Por sua vez, Eiguer (1997) informa que na identificação atributiva, o pai atribui ao filho uma vivência interior, um traço de sua personalidade, certa representação de seus objetos internos. Essa identificação atua nos processos alienantes da herança transgeracional.

A contra-identificação tende a produzir representações antagônicas entre si, de modo que certa representação do filho opõe-se a outra dos pais. Ser boazinha para não ser sádica como seu pai e ser despojada na vida para não ser mercantilista como ele exemplificam a contra-identificação. Por contra-identificação, designa-se o processo de formação do eu, pelo qual a identidade se estrutura em oposição a dos pais. Na contra-identificação maciça do sujeito com seus objetos primários, o sistema rechaça características positivas dos pais, que lhe causaram muito sofrimento em sua infância e foram odiadas por ele. Na prática, quando os pais priorizam seu trabalho em detrimento de cuidados amorosos com o filho, eles geram a vivência do abandono e desamparo. Essas vivências fazem com que as representações de ser abandonado e ser desamparado – sobrecarregadas de ódio – entrem em conflito com ser trabalhador, ser determinado e ser bem-sucedido, como seus pais – investidas de amor. Tão somente essas representações e esse afeto favorecem a consecução de seu desejo no presente, atingido pelo trauma do absoluto em seu passado (Almeida, 2016).

Por fim, o amor parental ao descendente deveria ser indissociável da liberdade de ele ser quem é. Todavia, haja vista a força dos traumas nessas relações, grande parte do desejo do filho tende a fusionar-se com o de seus pais. No que se refere a isso, o diferencial entre os traumas vividos nessas relações associa-se ao maior ou menor quantum de amor e de ódio investido no desejo do filho pelos pais e aos seus estados confusionais, que misturam seu desejo ao deles. Tomando-se por base o enfoque econômico freudiano, os investimentos e sobre-investimentos designam a maior ou menor quantidade de amor e de ódio investida nas representações do desejo do sujeito e nas representações de suas figuras parentais – intrinsecamente ligadas. A junção desses elementos desorganiza o sistema representacional em diferentes níveis e formas – como pode se acompanhar nos casos clínicos descritos adiante. Em face disso, o sujeito pode diferenciar seu desejo do de seus pais com maior ou menor facilidade, dependendo desses fatores.

Para elaborar essa tessitura familiar intrincada, o processo psicanalítico demanda desvendar os enigmas do sujeito quanto ao seu desejo. Nessa clave, a autonomia do desejo depende da assunção do homem ou da mulher adultos, que, geralmente, se encontram num estado latente. Assumir a condição de ser um homem ou uma mulher com autonomia do desejo associa-se à prevalência dos impulsos amorosos sobre os destrutivos num modelo interno de vínculo. Este fundamenta relações coerentes e saudáveis com o próprio desejo e com o do outro.

A clínica da autonomia do desejo

Três casos clínicos constituem a base empírica para as ideias formuladas nesse trabalho.

Uma jovem e promissora micro-empresária tem sua vida profissional consolidada. Em geral, morar com seus pais não a incomoda. Em oitenta por cento das situações, sente-se confortável na casa deles, na qual prepondera estabilidade emocional e financeira. Contudo, ela considera que morar fora é importante para seu crescimento pessoal. Todavia, a mudança de sua micro-empresa para um lugar maior encontrou barreiras da parte deles, que aumentaram quando ela deseja morar fora e comprar seu carro. Seu desejo de ter autonomia ao morar em sua própria casa encontra fortes obstáculos em seus pais. Assim, ela ouve de sua mãe: ‘você não está preparada prá morar fora, você vai cair de quatro, a vida lá fora é muito dura e você vai se arrepender’, ’você vai dar um mau exemplo pra sua irmã e fazer a família sofrer’. Além disso, sua mãe diz que ela será devolvida pelo namorado, por não saber fazer serviços domésticos. A relação dela com seu pai é mais amorosa do que com a mãe e dele ouve: ‘você é bonita, inteligente e não precisa ficar com ele’. Todavia, seu pai sempre usou o dinheiro para submetê-la as suas regras de proteção. Em sua adolescência, para ela ir de sua cidade a outra, um conhecido da família devia acompanhá-la. Desse modo, ela vive uma confusão mental quanto a ser amada e protegida, mas ser cerceada e subestimada.

A preservação dessa herança psíquica inclui um paradoxo mental, que a deixa sem saída. A despeito de ela ser inteligente e ter dinheiro para comprar um carro, ela não consegue dirigir. Quanto a isso, ela ouve de sua mãe: ‘dirigir prá que, pra ir onde, seu pai não leva você prá onde você quer?’ Noutra ocasião, quando ela pede a chave do carro dos pais, sua mãe responde: ‘não, não dou, eu não sou louca’. Seu pai diz: ‘você não precisa dirigir, deixa que eu te levo’, mas quando ela quer que ele a leve para algum lugar, ela ouve: ‘você é folgada, não faz nada, quer as coisas no mole’: polos de seu paradoxo central com eles.

No namoro, ela se posiciona como a mãe de um menino desencaminhado na vida. O namorado diz que ela é mimada, que não cuida dele, que ela coloca sua profissão em primeiro lugar e, certa vez, exigiu que ela desmarcasse afazeres profissionais, para conversar com ele. As frases dele reativam vivências dela com sua mãe: ‘se você terminar comigo, você não tá preparada prá me ver com outra’ e ‘você tem tudo o que as outras mulheres querem.’ Contra-identificada com a dureza materna, ela é compreensiva e acolhedora com o namorado, ao projetar, nele, a filha pouco acolhida pela mãe. Identificando-se com as representações parentais de ser incapaz e ser despreparada, projeta no namorado seu desejo de ser cuidada com delicadeza. Como filha, identifica-se com seus pais, que a impedem de ter autonomia. Como profissional, identifica-se com sua mãe: mais esperta do que seu pai, mas impedida de continuar trabalhando por ele. Porém, se sua mãe tivesse estudado mais e continuado a trabalhar, teria ido longe. Para essa paciente, ser mulher e ter autonomia associa-se ao perigo e a ser incapaz de resolver as situações, sendo confundidas com perversidade e maldade. Com isso, ela se divide entre a profissional bem-sucedida − que apostou no próprio estilo − e a mulher − abafada pela menina. Por sua vez, a mulher divide-se entre a faceta mãe − que cuida do namorado − e a faceta menina − que não dá voz ao que sente e ao que é melhor para ela. Confunde ser independente – por meio do dinheiro – com tomá-lo do outro mais frágil: reflexo especular da menina submetida ao poder paterno, mediante o dinheiro. Por um tempo, ela pagou algumas coisas para o namorado, para manter sua independência e ter controle da relação. Atualmente, apesar da irritação, pena e repulsa crescentes por ele, ela mantém essa relação. Sua acolhida para com ele − paciência, compreensão e expectativa de mudança − se transforma em uma corda, que a amarra. Suas pontas são metáforas da ligação aprisionada com seus polos afetivos principais: a relação primária com seus pais e a secundária com o namorado. Desorganizado seu pensamento pelo paradoxo, quando o namorado intrusivo e superexigente quanto ao amor dela liga com problemas, ela se desorganiza no trabalho.

Seu paradoxo central enreda-a numa tortura interna, que suga sua inteligência e energia. Apesar disso, no geral, ela segue caminhos pessoais e profissionais coerentes com seu desejo. Gosta do que faz, sente prazer em seu cotidiano, trabalha com leveza e aprimora-se profissionalmente, através de cursos específicos e de outros cursos sobre arte e lazer, que também favorecem seu exercício profissional. As situações insatisfatórias com o pai, a mãe e o namorado tendem a ser resolvidas com respeito por si e por eles, com calma e segurança pessoal. Guia-se por seus princípios e construiu bases profissionais e financeiras sólidas, que lhe permitem dar o rumo que quiser a sua vida. Todavia, a profissional de sucesso invadida pelo namorado; a mãe que direciona a vida do namorado/menino perdido e a menina cerceada em seu crescimento pelos pais escamoteiam a mulher, incapaz de ter autonomia do desejo. Para tanto, ela precisa apostar que o que sente é bom, legítimo, digno e, ainda, investir-se de amor como mulher. Com a análise, ela consegue investir de amor: ser amada e ser protegida, sem ser cerceada e subestimada, ser cuidada, ser competente,buscar o melhor para si e ser independente dos pais e do namorado .

Outra garota cresceu sob os sufocantes cuidados maternos, exacerbados pelo vazio vivido por sua mãe – desde a morte de um filho adolescente. Suas dificuldades respiratórias redobram as proibições maternas: não pode brincar com e como outras crianças; não pode tomar vento; não pode ir ao banheiro, sem cobertor. A necessidade materna de ordem e limpeza contribui ainda mais para seu sufocamento e suas crises respiratórias. Bebendo em meio às crises familiares, seu pai teve algumas amantes. Quando ele abandona a família, sua mãe envolve-se com outro homem. Numa viagem, sua mãe e uma amiga ficam bêbadas e tem que ser amparadas pela paciente. Todavia, seus pais vivem em torno dos filhos: escapam, mas acabam retornando para o casamento. A cada retorno, ela vive o medo da dissolução do vínculo familiar, o medo do abandono, o medo da morte dos pais. A quase morte da mãe faz com que ela temesse ser maltratada por uma madrasta e a possibilidade de separação dos pais adquiriu um tom catastrófico. A paciente fica traumatizada ainda pelas mentiras paternas, pois seu pai dizia que ‘tudo estava bem’, dava o que os filhos queriam, até que sua situação financeira revelou-se em sua realidade nua e crua. Com agiotas à porta de casa, ameaçando a todos e com seus pais paralisados diante da situação, restou à adolescente tomar medidas práticas para salvar a família. Brigou muito para que mudassem de cidade, brigou com o irmão que tomava dinheiro do pai, administrou as contas e conseguiu pagá-las, à custa de muita raiva e de muito sofrimento. Alçada à posição de pai e mãe dos pais paralisados, identificou-se com sua avó que, pouco antes de morrer, lhe pediu para cuidar deles.

Sua forte identificação com a figura materna deixa nela trilhas mentais fixas. Seu namorado tem três filhos e pede para que sua mãe cuide deles. Por sua vez, sua sogra despeja, nela, reclamações que se repetem a cada visita, enquanto o filho se afasta das duas. Ela se paralisa dada a repetição da situação de sua família de origem: seu pai saía, enquanto as namoradas do irmão despejavam em sua mãe, seus problemas com ele. Entre ela e esse irmão, havia uma competição, de modo que tudo que o pai dava para ela, devia dar para ele também. Como ela estuda e mora em outra cidade, ele cobra que o pai o ajude a manter a atual esposa e seus três filhos. Essa competição mantém-na sufocada junto ao namorado-pai de três filhos.

Cuida dele à custa de muita raiva, cobrança e briga, ficando paradoxalmente esgotada com isso, mas sem poder escapar da relação. Tal como sua mãe, deve cuidar do outro, ‘doa a quem doer’. Não se sente cuidada por ele, assim como sua mãe não o foi por seu pai. Tortura-se frente às possíveis traições do namorado, mas fica presa na posição de filha que teme o abandono e o vazio. Uma doença da sogra a sufoca, até que ela percebe que sua morte a colocaria na posição de cuidado obrigatório dos filhos dele. Lembra-se da quase morte de sua mãe, seu medo de ser abandonada e de ficar à mercê de uma madrasta. Tentando se descolar dessa trama caótica, diz que anda preocupada consigo mesma: posição materna arcaica.

Há muito, alguns paradoxos são perpetuados em sua família: se sua mãe tinha fome e ela, não, ela era alimentada; se sua mãe estava com frio e ela, com calor, ela era agasalhada. Por sua vez, sua avó paterna valia-se de chantagens. Ao abandonar o marido beberrão, ele se matou de tanto beber. Assim, ela cobrava da nora-mãe da paciente, que cuidasse do marido, para que ele não se matasse de tanto beber. Cobrava da paciente/neta cuidada por ela, que cuidasse de seus pais irresponsáveis. Levava-a para passear e dava-lhe atenção e presentes, mas exigia obediência total, para continuar a dá-los. Essa avó a comparava com uma prima. Na disputa entre elas, essa avó tornou-se importante, como objeto da preferência delas. Paradoxalmente, a paciente sente-se cheia de vazio e cheia de não desejo. Vive uma circularidade psíquica, em que nega seu próprio desejo e dá lugar ao desejo do outro. Nesse circuito, misturam-se as posições de sua família original e da secundária. O homem e a mulher não podem aparecer em seu namoro, tal como não se faziam presentes no casamento de seus pais. A mulher em potencial perde-se devido as suas identificações com antigas posições: filha, prestes a ser abandonada pelo pai; mãe que cuida sufocando a filha; pai que cuida dos filhos, negando os problemas; neta cuidada pela avó, que deve cuidar dos pais; irmã que compete com o irmão, para continuar criança e a adulta, que cuida agredindo o outro.

Ela brigou muito com seu pai e sente culpa pela doença dele; assim, procura ser boazinha e concessiva. Imersa nessa confusão identificatória, representações e posições ocupadas por ela e pelo outro entram numa contenda acirrada. Então, ela se larga no divã, suas frases são entrecortadas e sem sentido completo. Ela não deseja e a analista deve desejar por ela. Vive o vazio de não saber de seu desejo, não ter um sentido para sua vida e de não conseguir se separar da confusão familiar. Sua liberdade e autonomia ainda se aliam ao vazio e à tristeza. Contudo, frases e posições maternas são repensadas por ela. Travada em leveza, prazer e diversão, a criança ouvia: ‘não faça isso, porque eu não aguento’. Já na casa de uma amiga, ela ouvia: ‘cê fica aí e eu aqui doente’. A adolescente ouvia: ‘não viaja, porque eu tenho um mau-pressentimento’. Dessa forma, certa vez, ela fez um percurso muito maior de sua cidade até outra, para evitar uma cidade perigosa, segundo a mãe. Entretanto, frases e posições maternas são repensadas por ela. Ao analisar essas frases, aponta: ‘não viva, porque eu não vivo’, ‘não tenha prazer, porque eu não tenho’. Perguntada sobre as perdas em sua casa, responde como sua mãe: perda de um filho para a morte, perda de outro filho para o trabalho, perda dela/paciente para o estudo. Assim, as rupturas de vínculo, necessárias para seu crescimento, entram no mesmo estatuto da morte de sua mãe. Fala da perda de sua inocência aos cinco anos, pois a mãe e uma amiga falavam muito de sexo, de homens e das bebedeiras do marido. Restou-lhe uma inescapável suspeita de traição masculina, de mentiras e de perda de confiança em relações amorosas e seguras. Menos identificada com a posição de mãe que cuida dos filhos, afasta-se da sogra e dos enteados, mas continua fixada na de esposa solitária e a repete com o namorado. Em meio a isso, tem efeito a fala da analista: ‘nada há a perder, senão o medo de perder’. Posto isso, ela termina o namoro com ele e dá continuidade a seus projetos pessoais. Assim, diz: ‘preciso transbordar minha criança’, que se contrapõe a ser a criança doente, sufocada, controlada e ser a adulta, que se lesa ao cuidar do outro. Nessa empreitada, amar-se, ser amada, ser cuidada, cuidar-se, cuidar do outro, sem ser lesada e buscar o melhor para si são representações que tornam seu desejo vigoroso e potente.

Para outra paciente, a situação familiar é muito conflitante desde o início de sua vida. Com a segunda guerra mundial, seus pais sofreram uma série de perdas em seus países: bens materiais, projetos de vida, trabalhos com certo valor social e financeiro. Seu pai desejava ter sido artista e viajar ao redor do mundo, mas seu primeiro desejo foi proibido por seu pai e o segundo foi ceifado pela guerra. Criado segundo regras familiares rígidas, restava a ele se casar e trabalhar no novo país. Dessa forma, seu pai torna-se um self-made-man, que constrói um patrimônio considerável – na verdade, junto com a esposa. Eles trabalham arduamente, não aproveitam a vida, não compram coisas boas para si e quase não viajam. Assim, seu pai sobre-investe as ideias de ele ser o herói-mártir, ora orgulhoso e vaidoso por isso, ora cheio de sofrimento e ódio. Filha mais velha do casal, a paciente foi a depositária dos traumas dos pais com seus pais e irmãos. Seu pai teve no irmão mais velho, um competidor valorizado pelos pais, por ser um trabalhador vigoroso. Sua mãe teve na irmã mais velha, grande fonte de dissabor. Ela engravidou, há setenta anos, numa aldeia de um país conservador e envergonhou a família. Sua mãe/avó da paciente redobrou as regras sobre a segunda filha/mãe da paciente. Assim sendo, forte ódio e determinações bastante rígidas prevaleceram em sua educação.

Na infância da paciente, seu pai lhe contava que o chupim põe seus ovos no ninho do tico-tico e come os ovos dele: referência a um duplo parasitismo da filha. Chamava-a de débil mental e doente mental em público, mas face às suas explosões de ódio, dizia: ‘eu dou tudo, faço tudo; cê vai ser um nada na vida; cê não presta para nada; filhos trocados por m... ainda saem caro; criei você pra me fazer feliz e cê está fazendo da minha vida um inferno’. Ao pedido dela de dirigir o carro, ele impõe que ela dirija do jeito dele. Numa revelação de seu tosco poder fálico, diz que ela deve dirigir o peruzinho/carrinho de jardim. Por outro lado, frente a sua beleza na adolescência, ele diz: ‘Ninguém vai amar você mais que eu e outros homens vão ter por você só desejo’. Por sua vez, sua mãe representa-se como pobre; trabalhadora incansável, mas sempre esgotada; que sustenta, mas sabota o poder sádico do marido. Além disso, ela esmagou a filha sob a forma de regras rígidas, que se opunham ao seu prazer de viver e sob a tortura da submissão à crítica alheia: ‘o que outros vão pensar?’

Com talento para a arte, quando adulta, posiciona-se como mambembe, de modo que sua vida profissional e financeira vai ao sabor das circunstâncias. Com a análise, ela obtém um trabalho regular e ganha seu dinheiro. Porém, o mundo é o espaço dos homens: grandes e poderosos, mas repulsivamente sádicos. Sua sexualidade adquire um tom menos desestruturante, mas o olhar público ainda a fragiliza. Representa-se como uma bonne-vivant talentosa, que não precisa buscar com vigor o que deseja. Por tudo o que já sofreu com os pais, teria direito a viver no bem-bom e morar com regalia numa propriedade deles. Desfrutar de sua futura herança guarda forte ranço de vingança e de ódio; porém, tortura-se por ser fracassada. Ser fracassada − ao usufruir do bem-bom, sem se esforçar para conquistar o que deseja − é uma representação aparentada a de ser chupim. Assim, irrompe em sua mente a frase de Ricardo III: ‘Até as feras tem compaixão; eu não, eu sou humano’. Fera remete-a ao sadismo, à crueldade e à insensibilidade do pai poderoso que não teve compaixão dela – tão boazinha. Também remete a ser excelente na profissão, mas, para isso, ela deve ser firme, determinada e persistente. Em sua confusão mental, buscar com vigor seu lugar no mundo seria um ato sádico, dado seu pavor de ser cruel como o pai. Seu voto de ódio perpétuo aos seus pais foi erigido enquanto decreto irrevogável, para extirpar de si a loucura familiar. Ela vivia o pavor de enlouquecer, caso revogasse sua promessa de não amar os homens. E, ainda, seu sucesso dependia do fracasso ou do massacre absoluto de suas figuras parentais. Ter sucesso entrava em conflito com perdoar suas odiadas figuras parentais. A representação de perdão a seus pais era distorcida pela de se render a eles, aos quais ela jurou derrotar. A radicalidade de seu sofrimento gerou sua retirada do mundo dos vivos: extremo ódio às figuras parentais e à figura masculina, horror ao amor e às demais relações afetivas, bem como amor exclusivo à arte. Sendo assim, urgia elaborar os nós de sua herança familiar, de modo que seu desejo se tornasse potente e se realizasse no mundo. Ao rever suas identificações e contra-identificações com seus pais, investe de amor: ser importante, amada, cuidada, buscar o melhor para si e colocar-se em primeiro lugar.

Discussão

A comparação entre os três casos clínicos – no tocante às representações, afetos, posições simbólicas, paradoxos, identificação e contra-identificação – tem por objetivo discutir a autonomia do desejo e os empecilhos mentais a ela.

Na primeira paciente, na esfera doméstica, seu desejo de ter sua própria casa suscita as seguintes frases da mãe: ‘você não está preparada pra morar fora, você vai cair de quatro, a vida lá fora é muito dura e você vai se arrepender’; ‘você vai dar um mau exemplo pra sua irmã e fazer a família sofrer’. A parte inicial da primeira frase materna é reativada pela frase do namorado ‘Você não tá preparada’, que estabelece como definida e definitiva sua incapacidade de enfrentar o mundo e de estar preparada para a vida, independentemente deles. Na segunda parte da frase, é melhor enfrentar a dureza materna do que a do mundo e se essa regra for quebrada pela filha, esta perde a condição humana ereta – ‘você vai cair de quatro – e sua punição é projetada para o futuro – ‘você vai se arrepender’. A segunda frase materna cobra dela a posição de ser modelo para a irmã mais nova e de coibir seu desejo, para evitar o sofrimento familiar. Na esfera de sua mobilidade no mundo, seu desejo de dirigir é engolfado por um paradoxo, que a aprisiona e produz sofrimento psíquico nela. Conquanto ela seja inteligente e tenha dinheiro para comprar um carro, ela não consegue dirigir. Quanto a isso, ela ouve de sua mãe: ‘dirigir prá que, pra ir onde, seu pai não leva você prá onde você quer?’ Noutra ocasião, quando ela pede a chave do carro, sua mãe responde: ‘não, não dou, eu não sou louca’. Seu pai diz: ‘você não precisa dirigir, deixa que eu levo’; mas quando ela quer sair, ela ouve: ‘você é folgada, não faz nada, quer as coisas no mole’: polos de seu paradoxo com eles. A primeira parte desse paradoxo contém uma oferta inicial de amor, conforto e comodidade feita por seu pai, enquanto a segunda contém uma crítica posterior a ela feita por ele. O primeiro conjunto de condições oferecidas pelo pai dá lugar ao segundo, frente ao desejo dela de não se submeter ao desejo dele. Demarcam-se suas questões fundamentais: para que desejar e que rumo dar ao seu desejo. De forma dupla, reiterada e camuflada, ambos os pais ratificam essa forma de amor à filha. Porém, essa proteção no âmbito da casa mantém-na incapaz quanto a dirigir, somada à suposta lucidez da mãe/figura de poder em sua proibição ao desejo da filha – ‘não, não dou, eu não sou louca’. A despeito disso, suas representações – ser folgada, ser incapaz e ser despreparada – tem um teor leve e seu paradoxo atinge a clareza de seu pensamento e a integração entre suas ideias, emoções e ação. Ainda assim, eles produzem leve desorganização do sistema representacional, pois nele impera a primazia de amor sobre o ódio.

No segundo caso, as representações de ser super-frágil, ser briguenta, ser encrenqueira e ser culpada tem um teor mais grave do que na primeira paciente. Ser briguenta e ser culpada pela doença de seu pai favorecem que ela se fixe em ser boazinha e ser concessiva. Quanto aos cuidados maternos para com ela, sua mãe se baseava em suas sensações e não nas da filha. Desse modo, seus paradoxos desorganizam seu sistema representacional, visto que atingem suas sensações básicas − fome e temperatura, misturam-se às emoções caóticas – muita raiva e medo − e ameaçam sua sobrevivência física e psíquica. Assim, a mulher em potencial perde-se devido as suas representações: ser abandonada; ser sufocada, ser sufocadora; ser cuidadora, negando os problemas; ser competidora, para continuar criança e ser cuidadora, agredindo o outro. E, mais, ser livre e ser autônoma se associam a ser triste. Paradoxalmente, essa paciente sente-se cheia do vazio de seu desejo e cheia de não desejo, ao amar o outro. Porém, ao analisar as frases maternas, ela apontou: ‘não viva, porque eu não vivo’, ‘não tenha prazer, porque eu não tenho’. Ser perdedora como sua mãe e ser perdedora quanto à confiança em relações amorosas e seguras foram confrontadas com a interpretação paradoxal da analista: ‘não há nada a perder, senão o medo de perder’. Com isso, ser a criança autêntica transbordante de desejo se contrapôs a ser a criança doente, sufocada, controlada e deu lugar a ser a adulta, que cuida do outro sem se lesar. A despeito de seu sofrimento, parece prevalecer o amor nas catexias de sua mãe quanto a ela, ainda que ela tenha submetido o desejo da filha ao seu. Nessa jornada analítica, amar-se, ser amada, ser adulta, ser cuidada, cuidar-se, cuidar do outro, sem ser lesada e buscar o melhor para si são representações que tornam seu desejo vigoroso e potente.

O terceiro exemplo denuncia a destrutividade imposta ao sistema representacional da paciente, dada a sobrecarga de ódio e horror nas representações do trauma do absoluto: ser desamparada, abandonada, rejeitada, fracassada, odiada, ser um nada, para sempre, sem lugar no mundo. E ainda, ser débil mental, incompetente, pobre, chupim, pior que m... são investidas de ódio. Seu paradoxo é enlouquecedor, pois ser odiada pelo pai na infância se confunde com ser amada na adolescência, exclusivamente por ele. Assim, ele se posiciona como representante absoluto do amor num tempo condicional, pois ele a amaria mais do que qualquer outro homem, em qualquer tempo da vida da filha. Com isso, ele enuncia um desmentido radical e paradoxal de seu discurso e de seu comportamento anteriores quanto a ela e confunde amor e ódio a ela. Dessa forma, ele faz uma negação onipotente das percepções confusas da filha sobre seu ódio por ela. Além disso, esse paradoxo demarca uma cisão entre amor e desejo sexual, fazendo de seu pai e dos homens, elementos perigosos. Ser amada exclusiva e extremadamente por seu pai sádico e cruel se confunde e se opõe a ser desejada sexualmente por homens extremamente perigosos. Ser existente implica ser submissa à felicidade paterna e seu desejo singular é equiparado a ser infernal. Logo, seu paradoxo atinge a questão da existência da paciente.

No plano de suas representações no sistema, ela investe de amor ser boazinha e ser concessiva, investe de ódio ser pobre e ser chupim e sobre-investe de ódio ser abandonada, rejeitada, não amada, fracassada, para sempre, sem lugar no mundo. Elas se contrapõem às representações do pai sádico, egoísta, poderoso, vitorioso e endinheirado, que merece ser extorquido. E, ainda, ela investe de ódio um elemento dos pares de representações antitéticas. Mais especificamente, ser um nada impera sobre ser tudo e ser perfeito – atribuídos a seu pai; ser débil mental e ser psicótica sobrepujam ser inteligente e ser neurótica; ser sórdida prevalece sobre ser decente. Identifica-se com certas representações de seus pais − ser cruel consigo − e se contra-identifica com outras – ser trabalhadora, ser determinada e ser vigorosa como eles. Por fim, tendo conseguido rever seu paradoxo e suas posições, bem como suas identificações e contra-identificações com seus pais, ela investe de amor: ser amada, valorizada, cuidada, importante, buscar o melhor para si e colocar-se em primeiro lugar (Almeida, 2003).

Considerações Finais

O fator primordial que dificulta a construção da autonomia do desejo é a carga de frustração e de ódio depositados pelos pais no filho, a partir das relações com seus próprios pais. Há, pois, uma relação diretamente proporcional entre a carga de amor depositada pelos pais no filho e sua autonomia do desejo, bem como entre a carga do ódio e o trauma do absoluto – que comprometem a capacidade representativa do sistema de elaborá-lo.

Quando o amor impera sobre o ódio, mas o sujeito é destituído de parte de seu desejo, ocorre sua identificação parcial com o desejo parental. Nesse caso, a identificação inclui representações e posições coerentes e antagônicas entre si. Entrementes, quando o ódio predomina sobre o amor, o sujeito defende-se mediante uma contra-identificação maciça, fusional e hipercarregada de ódio com seus pais. Ambas as defesas envolvem uma confusão mental entre posições parentais e infantis, complementares entre si. Essa fusão torna-se mais indiscriminada e mais fixada no sistema quanto maiores forem o ódio ao filho e o grau de confusão entre o desejo dos pais e do filho – como no caso do trauma do absoluto. Em contrapartida, certos avós depositam forte carga de amor idealizado nos netos e esperam deles a continuidade de seus feitos reais e de seus desejos não realizados. Esse ideal narcísico focado nesses descendentes – benéfico, numa certa medida – revela seu desejo de mudança. Esse salto para o futuro mediante a projeção de amor idealizado nos netos resgataria esses avós de seu passado problemático junto a seus filhos. E, ainda, traumas no desejo do sujeito fazem-no conservar o menino e a menina vilipendiados, que compõem pares com uma avó ou um avô, que cuidaram dele. Tais figuras idosas podem contrapor-se a dos pais, que não o cuidaram de forma adequada. Apesar de ser uma possível saída psíquica para os conflitos da criança, essa identificação costuma conter representações de vazio e morte.

Entrave contra a autonomia do desejo, o paradoxo é formado por uma regra instituída por um emissor, a burla dessa regra por ele e o empecilho de que o receptor reconheça a contradição inerente ao paradoxo. A princípio, seu emissor propõe uma troca aparentemente igualitária entre seus haveres materiais ou imateriais e os haveres do receptor. Nesse nível consciente, o paradoxo se assenta num objeto de sedução, numa frase dúbia ou numa ação do emissor, que gera expectativa de prazer e satisfação no receptor. Em seus subterrâneos inconscientes, o primeiro detém uma posição importante para o segundo, ofertando-lhe algo valioso e obscuro para ele. Porém, o cerne do paradoxo reside numa proposição inconsciente: ‘ofereço a você algo que eu reputo como valioso, mas, para desfrutá-lo, você deve conceder-me algo que te é valioso: seu desejo. Tal como eu não tive o direito de exercê-lo, você também não tem direito a ele’.

Nessa pretensa oferta de amor, o sujeito é enredado pela expectativa de receber um objeto precioso, não o recebe na realidade, não reconhece essa contradição e não se livra do paradoxo. Na passagem da mera promessa − obtenção do objeto valioso − para a realidade − desfrute desse objeto de desejo − essa oferta transforma-se em ilusão. No geral, revela-se como discurso vazio de seu autor, dissociado de uma ação que consolide sua promessa. Nesse caso, assim como o emissor do paradoxo desconhece seu desejo, seu receptor deve desconhecer o seu. Pois, grande parte dos dramas da família deve-se à inconsciência de seus membros sobre seu desejo. A força das representações contraditórias e do ódio − inerentes ao paradoxo − impede que ele seja desvendado pelo sujeito, perpetuando o sofrimento psíquico numa família. É o caso de se educar uma filha para ser arrojada e ser independente como profissional, mas para ser casta e ser submissa às regras parentais quanto a sua sexualidade. A projeção de representações depreciativas dos pais sobre a sexualidade da filha, em especial – designada como suja, feia, vergonhosa – consiste em outro fator destrutivo, que desagrega sua autonomia do desejo.

A autonomia do desejo e a saúde psíquica sofrem revezes tanto mais graves quanto mais a criança for submetida a uma figura paterna bastante sádica e poderosa. Complica-se se a figura materna for sádica também ou árida no amor para com ela. No trauma do absoluto, os pais ocupam posições baseadas num poder sádico, dominador e com regras rígidas: vertentes de um ódio ancestral patológico. Nessa cadeia, a projeção maciça do ódio do sujeito sobre seus genitores mantêm-no depositário perene das dores da família. Porquanto, a fixação do ódio contra si e contra as figuras parentais – junto com a indiscriminação entre seus desejos– impedem a autonomia do desejo. Em contraste com isso, a constância e a prevalência das boas relações contribuem para a autonomia do desejo. Manejar as diferenças entre os desejos na família, bem como as diferenças entre as estruturas psíquicas − mãe histérica de filha obsessiva, pai paranoide de filho esquizoide − e assumir seus lugares como pais amorosos favorecem a autonomia do desejo do filho.

A autonomia do desejo torna-se tanto mais intrínseca ao sujeito, quanto maior é o quantum de amor e de respeito à singularidade de seu desejo, como ser diferenciado de seus pais. Mediante a análise dos traumas que enredam o desejo do sujeito, novos conjuntos de representações de si junto ao outro aproximam-no de sua autonomia. Esta se fundamenta no exercício de seu desejo, com seus princípios, interesses vitais e talentos próprios. Para tanto, há que rever o sobre-investimento de ódio em algumas representações – ser desprezado, ser rejeitado − em relação a outras subinvestidas de amor – ser amado, ser valorizado – mas fundamentais para a força propulsora de seu desejo. Nesse trabalho, a identificação e a contra-identificação do filho com certos atributos parentais e com as posições patológicas da família, assim como a sobreposição das relações com seus pais e com seu consorte precisa ser depurada. Dessa forma, a criança traumatizada – em sua autonomia − pode dar lugar à criança divertida e criativa – que experimenta amor e prazer na vida. Então, o homem e a mulher adultos podem retomar a direção de seu desejo.

A autonomia implica restituir ao estrato consciente do sistema representacional, representações solidárias ao desejo investidas de amor: ser amado, inteligente, competente, determinado, dedicado, persistente, com méritos próprios e sustentado em si mesmo. As representações da autonomia do desejo incluem ainda: ser um homem ou uma mulher adultos, sexuados, amorosos e independentes do desejo familiar. Para isso, o sujeito precisa instituir um modelo de vínculo investido de amor e investir-se com amor junto ao outro. Nessa atualização de seu desejo, ele se torna potente, fluido e inalienável de si, com base no uso de capacidades e dons herdados de seus pais. Todavia, seu desejo deve ser autossustentado na determinação, perseverança e dedicação do sujeito, rumo ao mundo. Reconhecer seu desejo, construir sentidos próprios para ele e assumí-lo no mundo: dar significados singulares a ele, bem como estabelecer direção e perspectiva claras e coerentes para esse movimento saudável da vida psíquica.

Referências

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 10/05/2021
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