Superdesinteressante: do cérebro

Li numa edição da revista Superinteressante e ouvi em algumas ocasiões uma idéia que é, parece-me, recorrente nos meios intelectuais, em particular no campo da neurologia: A de que o cérebro engana aquele que o possui. Pensando a respeito, encontrei, acho, a sem-razão desta afirmação: como pode o cérebro enganar aquele que o possui? Acho que tal idéia vem, conquanto extraordinariamente absurda, ao gosto daqueles que querem reduzir o ser humano a uma coisa, a um ser inumano, sem consciência, desprovido de vontade própria, de inteligência, reduzindo-o à condição de matéria; dá a entender que o cérebro é um ser independente daquele que o possui. Mas se aquele que o possui não é outro ser desconectado do cérebro, que é um dos seus componentes, então como pode aquele que possui o cérebro ser por ele controlado a ponto de ser por ele enganado, como se ele tivesse vontade própria e um dos seus propósitos fosse o de enganar, com orientações e sugestões de seu próprio interesse, aquele que o possui? Como isso é possível? Se o cérebro engana aquele que o possui, e sendo aquele que o possui ele mesmo, pois o cérebro não é um ser independente de quem o possui, então ele, o cérebro, para enganar aquele que o possui, engana-se a si mesmo, e toma decisões que não tomaria, induzindo aquele que o possui a tomá-las, se não tivesse enganado a si mesmo. Mas como o cérebro enganaria a si mesmo, se durante o tempo, infinitesimal que seja, em que está a arquitetar a artimanha para ludibriar aquele que o possui, e, portanto, a si mesmo, toma consciência de quais são os seus propósitos e, portanto, reage, simultaneamente ao tempo em que planeja enganar-se, aquilatando o teor de seus propósitos, acalentando um plano para se proteger de suas próprias artimanhas, anulando-as, portanto? O cérebro conhece as suas motivações, então como ele se enganaria a si mesmo, e, consequentemente, aquele que o possui? Para o conforto de si mesmo, aquele que possui o cérebro, que o engana, pode alegar, no caso de incorrer em alguma falta, que nela só incorreu porque o cérebro o enganou, induzindo-o a cometê-la, e só se persuadirá desta alegação se obrigar o cérebro a enganá-lo, a ele, aquele que o possui, persuadindo-o a acreditar que o cérebro o enganou. E pergunto, então, quem enganou quem, o cérebro enganou aquele que o possui, ou este aquele? Ou ambos ludibriam-se?

O cérebro, sabe toda pessoa sensata, não tem vontade própria; é apenas um órgão, que pertence a um corpo, que, por sua vez, atende às ordens de algo que o transcende, sendo o cérebro um servo, e não um ser que possui autonomia para pensar por si mesmo e impor os seus desejos e os seus interesses àquele que o possui.

Para encerrar: Acreditar que o cérebro engana aquele que o possui é o mesmo que acreditar que pode uma pessoa, num jogo de pôker, jogando contra si mesma, blefar, acreditar no próprio blefe, e explodir de alegria cantando vitória (e para tanto ela terá de enganar-se, ocultando de si mesma um detalhe: foi ela a derrotada).

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Se o cérebro urdisse uma trama para enganar a si mesmo e concebesse um artifício para se proteger das tramas por si mesmo arquitetadas, não tomaria decisões, e aquele que o possui não viveria, morreria. E quando se diz que o cérebro quer enganar aquele que o possui, diz-se que ele quer enganar a pessoa, e não o corpo apenas; então o cérebro, que é, dizem, quem, como um ser independente, que comanda o corpo, engana, ou quer enganar, a si mesmo, pode se dar a sugestão para se enganar e suspender toda defesa que concebeu contra as suas próprias artimanhas, mas, neste caso, não está se enganando, e terá de inventar uma mentira para se livrar do constrangimento de ter de reconhecer que vive uma farsa.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 17/04/2019
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