A DEUSA NUA



Em todas as épocas da história humana a arte tem sido aquele aspecto peculiar da raça que lhe confere sentido, ao proporcionar especulações, interpretações e leituras sucessivas para o que significa ser humano, expandindo as perspectivas da consciência do humano para além do evento prosaico que não lhe destina senão à categoria de objeto, obra de acaso fortuito, construção social, capricho biológico ou uma combinação bizarra de tudo isso e algo mais.


A arte sempre afirma o humano onde e quando nenhuma outra abordagem pode fazê-lo sem soar como o embuste de um desajustado.


O verdadeiro artista, amaldiçoado com o senso da responsabilidade de dizer o que seus antecessores não disseram – e manter a sanidade, se possível, ao fim do processo – está sempre no limiar da próxima epifania, sempre a um fino véu do vislumbre do inefável.Estranho personagem, o artista, feito o Bobo das cortes medievais, emblema de bem-aventurança de seu rei, diversão para os cortesãos, o círculo dos amigos do monarca, e uma aberração digna de pena ou desprezo para a grande maioria.Indispensável e incompreendido.Perder o Bobo era tido como sinal de desgraça iminente para o reino.O Bobo, além de alguma habilidade que lhe franqueasse a posição – e não raro alguma deformidade física traduzindo externamente a notória anomalia espiritual – não se dispunha a ser Bobo por uma vontade incontrolável, por uma vocação, digamos, apenas sabia-se assim e cumpria o seu destino da melhor maneira que pudesse.O verdadeiro artista costuma ter muito em comum com esse curioso personagem, excepcional e trágico.


De tempos em tempos, no entanto, outro tipo característico ocorre na história das artes, o do falsificador do belo, o diluidor barato, o estelionatário dos anseios da alma, o aventureiro banal munido de noções prontas a respeito do que, profundamente, ignora por completo.Suas motivações são as mais diversas, de vaidade a sobrevivência fácil em tempos confusos, de fama inconseqüente a fortuna volátil.Ele ocorre em profusão, como um fenômeno meteorológico imprevisível ou uma praga, de forma particularmente acentuada em momentos de declínio cultural, como um indicador de que a civilização se encontra em vias de processo de decadência.Em comum com o Bobo, talvez, podemos perceber o toque de inexorável determinando a trajetória de ambos – muito embora no Embusteiro (chamemo-lo assim) o auto-engano erga uma ficção a respeito de sua relevância e necessidade ao meio e ao tempo aos quais pertence, é o “artista engajado” e “comprometido com causas x e y”.Enquanto o Bobo, porém, de alguma maneira não muito clara parece ter a idéia de que está a cumprir seu destino – a tornar-se naquilo que é – o outro é levado a reboque de circunstâncias sobre as quais não apenas não possui controle mas também não demonstra o mais mínimo discernimento, ainda que o mais incipiente que se pudesse esperar de sua frivolidade.

 
Ele é Actéon diante da visão que mudaria tudo num momento : incapaz de assumir a sua indignidade, continua a observar a deusa nua, julgando, talvez, que deveria, por algum motivo, estar ali, como se fosse um eleito, um predestinado, que aquela visão é a SUA visão.O trágico, para o Embusteiro, é que sua apreensão do sagrado, se é que a possua, está corrompida além de qualquer esperança, e os deuses são particularmente severos com profanadores.Ele é metamorfoseado num cervo e devorado por seus cães, irreconhecível em sua nova forma.A deusa priva o profanador de tudo o que o define como humano, como que a insinuar que não é merecedor de ser humano aquele que já não se reconhece como tal, aquele que se arroga ao que escapa ao seu espírito corrompido – antecipando Dante, “Não é justo alguém ter aquilo que desprezou”.


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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 27/09/2017
Código do texto: T6126573
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