Côa: um rio, uma história ainda por contar
Côa: um rio, uma história ainda por contar
Chamam-lhe o Rio Louco pela inconstância do seu caudal, pelo encaixe que marca o seu leito cavado ao longo de 130 quilómetros entre a Serra das Mesas, sobranceira à freguesia de Fóios (Sabugal) e Vila Nova de Foz Côa.
É dos poucos rios que em Portugal correm para Norte mas talvez o único que determinou definições definitivas dos limites daquilo que hoje é o território nacional quando foi tido como referência, em 1297, no Tratado de Alcañices, para a integração em terras lusas da hoje chamada Região de Riba Côa.
Frei Francisco Brandão, na sua Monarchia Lusitana referia-se a esta região: “ Hé a comarca que chamamos Riba de Côa, hua lingoa de terra de quinze legoas de comprido, e de largo quatro, aonde tem mais largura. Está lançada de Norte a Sul, e cingida da parte de Portugal com o rio Côa, que tendo seu nascimento na Serra de Xalma q he hua parte da Gata, faz hua entrada em Portugal pelos lugares de Folgosinho, Val de espinho e Quadrasais, donde se avisinha ao Sabugal, primeira villa acastelada desta comarca por aquela parte, e della vai correndo até se meter no Douro em Villa Nova de fos Côa”.
O monge descrevia ainda que “ Pela parte do Reyno de Leão, ou Estremadura de Leão, com que confina, vai a raia balisada por campinas, e montes até São Pedro de Rio seco, perto do qual lugar nasce a ribeira de Turões, que vai dividindo os Reynos até entrar no Ageda, abaixo de Escarigo. Daqui vai o Ageda, fazendo a mesma divisão até entrar no Douro, que fecha ultimamente este destrito, recebedo as agoas do Côa no logar que dissemos”.
Portugal, até ao Tratado de Alcañices ou de Alcanizes, celebrado pelo rei D. Dinis com o monarca de Castela, D. Fernando, acabava precisamente na margem esquerda do Côa, tendo como principal bastião a fortaleza da Guarda e mais avançadas Sortelha, Vila do Touro, Pinhel, Castelo Mendo e, mais para o interior, Linhares, Celorico, Trancoso, Jarmelo, Longroiva, Marialva, Casteição, Ranhados, Numão.
Em 12 de Setembro de 1297 foram integrados em Portugal os castelos de Sabugal, Alfaiates, Vilar Maior, Castelo Bom, Almeida, Castelo Rodrigo, Monforte e Castelo Melhor.
Determinante na cultura e na História, o Côa é berço de poemas populares, de lendas e tradições, de costumes únicos no mundo de que a Capeia Raiana, uma estranha maneira de lidar com o Touro, é exemplo.
Talvez seja uma dança guerreira, uma manifestação de virilidade, um gesto de valentia esta que não é conhecida por tourada mas talvez mais por Festa da Raia.
Num aparelho em forma de delta, construído com madeira e corda, cerca de três dezenas de homens, sobretudo jovens, perfilam-se para desafiar o animal bravio a atacar “ a galha”. E o grito ecoa nas praças outras improvisadas delimitadas com carros de bois carregados de giestas e ramagens: “Ó forcão, rapazes”.
Singular é o castelo de Sabugal, altivo, de origem anterior à nacionalidade, com sua torre de menagem pentagonal com 28 metros de altura ladeada por quatro torreões.
Sobre esta fortaleza medieval canta o povo : “ CASTELO DE CINCO QUINAS/ SÓ HÁ UM EM PORTUGAL/ FICA NAS MARGENS DO COA/ NA VILA DO SABUGAL”
Determinantemente influenciada pelo Côa, sua nascente e o fio de água que lhe confere juventude, a povoação de Fóios, junto à Serra de Mesas, “mesmo à beirinha de Espanha” onde o rio nasce, encara este curso de água como um recurso único de desenvolvimento que no passado recente serviu de fonte para lameiros e prados e alimentou o imaginário das pessoas.
“Fóios é a nossa terra, é mais bela de Portugal/ É um encanto vir vê-la e conhecê-la, não há igual/ Mesmo á beirinha de Espanha e na nascente do rio Côa/ É que nasceu esta terra, que não inveja mesmo Lisboa”, diz hino.
Conhecida como “terra de contrabando” foi de facto esta uma actividade que marcou a economia local, garantiu sustento das famílias em tempos em que a fronteira era vigiada pelos “ guardilhas” da Guarda-fiscal e os Carabineros espanhóis.
A artimanha e a imaginação foram determinantes para o florescimento de uma actividade que acabou com a abolição física das fronteiras mercê da integração na Comunidade Europeia.
Aliás, o seu fim foi um autêntico desastre para as pessoas da raia, como afirma José Manuel Campos, presidente da Junta de Freguesia local. Sem meios alternativos de subsistência, as dificuldades perante uma terra de pobre agricultura mas onde a castanha, a criação de gado e mais recentemente a aquacultura de trutas são ainda importantes.
Espanha sempre influenciou os povos raianos, conferiu-lhes uma pronúncia e uma gíria própria, como no caso de Quadrazais, bem próximo de Fóios, imortalizada na obra de Nuno de Montemor “ Maria Mim”.
Foi terra de emigração, a salto, a caminho da França e outra Europa, principalmente na década de 1960, com segredos e aventuras que marcaram as memórias das pessoas.
José Manuel Campos trocou o desenvolvimento da grande Lisboa pela terra que fora conhecida por “ calcanhar do mundo”, no extremo da Beira Serra, na Beira Raiana profunda, onde os acessos difíceis não impediram um desenvolvimento e mobilização dos jovens.
“ O Côa faz parte das nossas vidas, da nossa cultura como raianos, das nossas gentes como emigrantes e seus descendentes, da nossa História de Portugal. É um autêntico monumento vivo”, afirma o edil fogeiro.
Conta-se que na Serra das Mesas, perto da nascente do Côa, ter-se-hão reunido quatro bispos, a 1265 metros de altitude, em torno de uma grande mesa de pedra, cada um no território pertencente ao seu bispado no local onde confluíam as dioceses portugueses de Guarda e Lamego e, do lado espanhol, os de Ciudad Rodrigo e Coria.
As “Memórias Parochiais” referem-se a este encontro solene “ …a celebrada serra de mezas, aonde estão cuatro Byspos sentados há meza cada hum no seu Byspado, dividindo quatro Linhas superficiais, do centro aos ângulos… de cada Byspo que é: o da Goarda, Lamego, Coria e Cidade Rodrigo, e pelo meio huma Linha divide este Reino do de Castella e há tradicção que por padroes esteve esta maravilha patente” (T.2º fl.412 das memorias Parochiais, Arq. T. 2, pág. 181).
Na reunião, os prelados analisavam e discutiam problemas que afectavam as suas dioceses respectivas.
A freguesia dos Fóios e os ayuntamientos de Navasfrias (Salamanca) e Valverde del Fresno (Cáceres) querem evocar, com fins culturais e turísticos, este acontecimento lendário pelo que vão candidatar ao Quadro de Referência Estratégico Comum (QREN) a construção da lendária «Mesa dos Quatro Bispos» no alto da serra das Mesas, de onde brotam os rios gémeos, Côa e Águeda, ambos correndo para norte, cada um em sua pária.
José Manuel Campos estima que esta Mesa venha a orçar os 30 mil euros, inserida num conjunto que, além da mesa de pedra, com cerca de 50 metros quadrados, terá quatro cadeirões com mitras bispais talhadas também em pedra, em cada um dos lados
A ideia mereceu o aplauso de ambos lados da fronteira e segundo o autarca de Fóios, D. Manuel Felício, bispo da diocese Egitaniense, da Guarda, que já esteve no local, e o bispo de Ciudad Rodrigo, já garantiram a sua disponibilidade para estar presentes no dia da inauguração.
José Manuel Campos considera assim que, aliando a nascente do Côa à Mesa dos Bispos, poderão atrair-se pessoas a um património natural e a uma região “ profundamente despovoada, marcada pela emigração, onde anualmente morem 15 a 20 pessoas e nasceu apenas uma criança de quando em quando”.
É o sonho do Turismo Natural e Cultural como tábua de salvação para o interior do Interior da Beira Serrana Raiana.
O Côa ganhou maior fama internacional – era conhecido como um dos melhores rios truteiros da Europa – com a descoberta, estudo e prospecção das Gravuras Rupestres do Vale do Côa, sobretudo as existentes no concelho de Vila Nova de Foz Côa que deram origem ao Parque Arqueológico classificado pela UNESCO como Património da Humanidade.
Foi corolário de um processo que o Governo socialista de António Guterres abraçou em defesa de um conjunto de gravuras, as mais antigas datadas do Paleolítico, com mais de 20 mil anos, que ficariam submersas caso fosse construída a mega-barragem do Côa, a pouca distância da foz deste rio.
Ainda hoje as opiniões estão divididas sobre o deve e haver da decisão, das promessas cumpridas e não satisfeitas, dos projectos anunciados e nunca construídos, do impacto da barragem numa região agrícola inserida na Região Demarcada de Produção de Vinho do Porto.
Certo, porém, é que Foz Côa e as Gravuras ultrapassaram as fronteiras, foram visitadas por Presidentes de Republicas, monarcas (Rei de Espanha, o príncipe do Liechtenstein), dignitários, embaixadores, cientistas, universitários, especialistas em arqueologia, geologia, botânica, zoologia, ou simplesmente turistas ávidos de ver com os próprios olhos os testemunhos por vezes complexos se não explicados, daqueles “riscos na pedra” como chegaram a ser apelidados.
E, afinal, cumpriu-se o slogan tantas vezes entoado na época da indefinição do destino das manifestações rupestres do Vale do Côa: “ As Gravuras Não Sabem Nadar”!
O presidente da Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo, António Edmundo, defendia, como o seu antecessor Armando Pinto Lopes, a construção de uma barragem em Vale Afonsinho ou Monforte (onde já existe um aproveitamento) mas as pretensões vieram a ser goradas com o anúncio da construção de uma grande barragem no Sabor, na margem direita do Douro, concelho de Torre de Moncorvo.
O Côa é a principal fonte de abastecimento de água no projecto de Regadio da Cova da Beira, num primeiro transvaze que partir da Barragem da Senhora da Graça (Sabugal) para a de Meimoa (Penamacor) leva águas da Bacia Hidrográfica do Douro para a do Tejo.
O “rio louco”, melhor e simplente o Côa ( ou Cua, comonera conhecido no passado) atravessa uma vasta região que se insere na Meseta Ibérica datada da Era Primária, descendo do concelho do Sabugal até Vila Nova de Foz Côa, depois de atravessar os concelhos de Almeida, Pinhel, Figueira de Castelo Rodrigo.
Mesmo perto da foz, no sítio do Poio, na periferia de Foz Côa, numa escarpa acentuada são explorados os esteios de lousa ou xisto que no passado recente serviram para suster vinhas e pomares do país e estrangeiro e agora embelezam as construções, os arranjos urbanos, as fontes e s museus.
Desvenda inicialmente os “ segredos” da Serra das Mesas e Malcata, para, numa correria misturada entre apertadas gargantas e espraiamentos tantas vezes aproveitados para lazer, vislumbrar as serras da Estrela, de Aldeia Velha, , São Cornélio e Frágoas, Marofa, a Terra Quente do Douro
A região Cudana ou Trancudana muito deve da sua riqueza e beleza a este rio único, onde apascentam rebanhos de cabras e ovelhas, manadas de bois, alguns dos quais de raça Jarmelista, em perigo de extinção.
No passado do Rupestre, saltitavam nos barrocos e pastavam nos vales cabras, cavalos, veados, auroques, recolhia-se peixe, enquanto que mãos rudes talvez arrancavam das lascas pontas de seta em sílex, raspadores, machados, moinhos improvisados de pedra.
Tudo está retratado nos painéis singulares e também místicos de um Côa rio que se revela um livro ainda por conhecer na sua totalidade, qual pergaminho que faz das terras raianas um autêntico museu vivo, casado com um património que desde a Pré-História, passando pelos períodos celta, lusitano, romano, muçulmano, medieval ao contemporâneo, testemunha em calçadas, pontes, solares, castelos e palácios, ruínas e fontes verdejantes, conventos e oradas, povoados e cidades, uma identidade única de ser Beirão e Raiano.
José Domingos
(Jornalista-Portugal)