Rio Corrente Sta. Ma. da Vitória BA (Foto Flamarion)

Gente quimera (I)

Transporto você, leitor, para o sertão do Além São Francisco, precisamente em 1952 e mais diretamente ainda para a cidade de Correntina,  Bahia, para que a gente se deleite com um pedacinho do levantamento sócio-antropológico de uma equipe de estudiosos, comandada pelo professor pesquisador norte-americano chamado Donald Pierson. Esse trabalho rendeu três importantes tomos de um livro denominado O Homem no Vale do São Francisco. Os trechos que veremos foram feitos pelo pesquisador Levy Cruz, trabalho que está disponibilizado hoje para os estudiosos, por meio eletrônico, pela dedicação, doação e disposição do professor doutor Altair Sales Barbosa, diretor do Instituto do Trópico Subúmido da PUC-GO.
 
Encomendadeiras

As Encomendadeiras de Almas saíam em uma procissão fúnebre na Sexta-Feira Santa. Chicona, a “dona” da encomendação não queria fazer este ano.” Nos últimos anos, a rapaziada vem atentando muito”; no ano passado até pedra atiraram nas penitentes. “Não quero fazer por causa dos vadio”. Prometeram falar com o delegado a respeito  dos “capadócios”. Finalmente,  já Segunda-feira da Semana Santa, (antes a encomendação começava “Sair” na quaresma), Chicona mandou avisar que iam sair, porém mais tarde. Por volta das dez horas da noite ouvimos, de fato, a matraca. Dirigimo-nos para o cemitério, a primeira estação. Vimos o grupo das Encomendadeiras na porta do cemitério. Aproximamos. Já estavam cantando. Da cabeça aos pés inteiramente cobertas com um lençol branco amarrado na cintura com um cordão, juntas umas às outras, em pé, voltadas para o portão do cemitério, formavam uma mancha luminosa contra as ruínas do velho muro. No silêncio da noite,  suas vozes, desafinadas, se erguiam em preces cheias de contrição: “Perdoai, Senhor nóis pecadores. Piedade das almas do Purgató”, frases soltas assim, foi tudo o que consegui entender daquele cantochão estropiado.
 

             Encomendadeiras: Grupo folclorico Roberto Araújo (Flamarion)

Arvoredo de São João

O Arvoredo era um dos festejos de São João. Os moradores levantavam uma árvore, previamente retirada do mato, enchiam-na de prendas, levantavam-na e colocavam uma fogueira na base dela. À noite, a fogueira era acesa, queimava o pé do Arvoredo. Quando ele caía, as pessoas avançavam para pegar as prendas.
 
22 de junho, 1952

Pela manhã Maninho estava em sua casa mexendo com frutas e outras coisas. Contou que ia preparar o Arvoredo de São João. “Vou por umas 60 laranjas, cachaça, rapadura, batatas, um bocado de coisas”. (Contei: 60 laranjas, 5 chapéus de palha, 1 rapadura, 3 batatas-doce, 1 garrafa de cachaça, 2 pencas de banana maçã, bandeirolas, 3 rodas de peta). (À tarde). “Estou aqui arranjando o arvoredo. Eu tenho influência (gosto) por essa festa”. (É o dia de aniversário dele, 24 de junho). (Pergunto ao Maninho quanto custa o arvoredo. Ele faz os cálculos, murmurando e atribuindo preços a cada artigo: “Tudo por 50 cruzeiros. Menos o arvoredo. Esse eu vô tirar”. (cortar no mato). “Eles cobram dez cruzeiros para tirar o arvoredo. Tiro o arvoredo hoje e deixo aí na rua. (Rita, sua esposa: “Eles róbam”). Maninho: “Eles costumam roubar. Eu ponho aí no quintal, amanhã eu levanto”.


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Homenageando o autor
Jornalista e Poeta correntinense Hélverton Baiano