A TEOLOGIA SOCIAL- Pobres e excluídos na visão da Bíblia (SERMO C)
A TEOLOGIA SOCIAL
Pobres e excluídos na visão da Bíblia
Feliz quem tem piedade e ajuda o oprimido;
seus negócios serão conduzidos com retidão;
mas a ambição dos injustos, no final resultará em fracasso
(Sl 112, 5. 10).
A Bíblia é um livro social, religioso e político, que conta a história de um povo e o amor que Deus tem por esse povo. Ainda pode surgir uma questão: Por que temas sociais em um trabalho teológico? Por que não apenas temas místicos? A mística, na verdade, consiste em adorar o mistério, que é Deus, cuja grandeza intrínseca e constituinte é o amor. Deus é amor (cf. 1Jo 4, 8.16). Ora, amor de Deus por mim equivale a amor de Deus por todos. Não parece lógico.
O objetivo do biblista é sempre atualizar a mensagem bíblica, a partir de uma leitura do passado, ligando-o com as necessidades da vida atual do povo. As opções de solidariedade começaram com o homem oprimido. Desde que o primeiro oprimido, Abel, sofreu violência, Deus colocou-se a seu lado, denunciando o opressor e condenando o mal cometido.
Como nação nova, Israel não possuía um sistema social e econômico estável. Para enriquecer ou adquirir algum poder ou status, as pessoas recorriam à corrupção, à venalidade, às trocas de favores escusos e, não raro, à violência e à desapropriação pela força ou pelo embuste. Igualmente a crença religiosa sofreu sérios problemas. O apiru (grupo de semi-nômades que perambulava pelo deserto) trouxe do Egito uma ponderável carga politeísta de um deísmo extremamente liberal. Lá eles aprenderam a adorar ídolos circunstanciais.
No aspecto econômico, o povo que saiu pobre do Egito, empobreceu ainda mais nos quarenta anos de andanças pelo deserto, não conquistou as melhores terras palestinas, foi explorado pelos chefes e serviu de mão de obra barata nos tempos do exílio. Esse mesmo povo, biblicamente chamado de resto, chega ao século VI a.C. na mais negra das penúrias, extremamente enfraquecido em sua cidadania, debilitado como nação, sem direitos ou propriedades. Toda a cristologia, baseada no amor preferencial pelos excluídos, traz consigo uma forte carga de solidariedade, despertada a partir do drama dos oprimidos de Israel. É a respeito deles que vai girar toda a nossa reflexão.
1. A POBREZA
Uma vez sedentarizada, a emergente sociedade israelita começa a acusar diferenças socioeconômicas oriundas de diversos fatores: a) práticas pré-capitalistas de exploração; b) violência para coonestar a ganância; c) origens pobres (no Egito e no êxodo); d) defraudação da boa fé; e) o êxodo sacrificou os fracos e os mais pobres; f) fenômenos diversos (secas, frustrações de colheitas, assaltos de bandidos, doenças, etc.). As Escrituras se referem aos pobres de Javé através de algumas expressões características:
 rãs - indigente
 dål - desnutrido, magro (de fome)
 ebyon - mendigo
 anaw - empobrecido (plural, anawin )
Às vezes, a expressão pobres de Javé, não é bem recebida em alguns círculos, sob a alegação de exclusão. A grande e insofismável verdade é que Javé ama os pobres, não somente pelo fato de serem pobres, mas sua contingência de exclusão. Ao mesmo tempo em que acolhe os anawim ele volta as costas aos opressores e despede os gananciosos de mãos vazias.
O Antigo Testamento é rico nesses ensinamentos, a partir das práticas sócio-fraternas que demonstram que a obediência à lei de Deus traz bênçãos (cf. Gn 22, 18). Nessa perspectiva, escolhemos alguns textos que deixam clara a afirmação do amor de Deus pelos empobrecidos:
Não explore o imigrante nem o oprima; lembre-se que você foi imigrante no Egito (Ex 22, 20).
[...] a terra não será vendida para sempre, pois ela é minha e vocês são meus posseiros (Lv 25, 23).
Em sua região não haverá mendigos porque o Senhor vai abençoar a terra (Dt 15, 4).
A pobreza levanta uma série de questões sociológicas capazes de nos inquietar: Por que há pobreza? Quais as suas raízes? Como podemos classificar suas conseqüências? As respostas a estas questões podem ser enunciadas a partir das tantas verdades contidas nas Sagradas Escrituras. Ora, se Deus criou tudo para todos, quando se observar o desnível a que foram jogados os pobres, pode-se concluir que a aliança foi quebrada. A imagem e semelhança foi desrespeitada e alguém vai pagar por isso: nesta ou na outra vida.
O excluído é aquele que já não tem mais nada para ser explorado. Se viver ou se morrer, tanto faz. Assim era na sociedade monárquica de Israel, assim ocorre no sistema neoliberal de idolatria de mercado de hoje. O excluído está, econômica e socialmente, um (ou mais) degrau abaixo do pobre. Há pobres porque há quem os explore e empobreça; há pobres porque a lei de Deus não é respeitada. Há ricos, cada vez mais ricos, a custa de pobres cada vez mais pobres.
O pagamento de impostos se converteu, desde o início, em uma rica fonte de recursos dos governos e um pesadelo para a população, em especial dos pobres, em vista da não-proporcionalidade dos tributos: o pagamento era per capita, independente de rendas e propriedades. Em alguns casos, autoridades, militares e sacerdotes eram isentados de contribuição. Em seu célebre perfil do opressor, Jeremias traça as características de alguns daqueles responsáveis pelo empobrecimento do povo:
Há ímpios no meio do povo; eles estão à espreita, como passarinheiros que se agacham para colocar armadilhas. Esses caçam homens. Como uma gaiola cheia de pássaros, assim suas casas estão cheias de rapina. Por isso progrediram e tornaram-se ricos, ficaram gordos e reluzentes. A maldade deles passa dos limites: não julgam conforme o direito, não exercem justiça para com o órfão nem julgam adequadamente a causa dos indigentes (Jr 5, 26ss).
Embora a situação fosse adquirir contornos de tragédia após as deportações, a bem da verdade é imperioso afirmar que a sedentarização estabeleceu um divisor de águas em algumas classes sociais da Palestina. Após o exílio, instaura-se um tempo de desgraça, profetizado por Amós (cf. 5, 13). As leis gerais, ditadas por Deus ao homem, não se prendiam a um verticalismo na relação Deushomem, mas obrigavam, igualmente, a uma relação horizontal, na solidariedade do homem com seu semelhante. Na espiritualidade judaica, apesar daquele aspecto não ser desprezado, a justiça era (ou pelo menos deveria ser) buscada no sentido de fazer a vontade de Deus:
Busca a justiça e viverás! (Dt 16, 20)
Como decorrência da quebra da aliança e descumprimento da lei divina, começa a surgir a palavra há’tãt, cujo significado é desvio e teologicamente apropriada como ruptura entre o homem e Deus. Há’tãt seria traduzido mais tarde como peccatum (delito) no latim, hamartia (quebra) no grego, e sünde (afastamento) no alemão.
O povo passou fome no deserto. Esse passar fome, no entanto, foi por certo período, em que Deus o fez sentir fome no sentido de uma purificação, para prová-lo e levá-lo a conhecer, pela provação do alimento, a desgraça da vida sem Deus (cf. Dt 8, 1ss). A pedagogia de Deus quis mostrar ao povo sua dependência àquele que o criou e o libertou. O problema é que, saciado de bens, já no período sedentário, uma parte do povo esqueceu a lição do deserto e atribuiu o relativo sucesso a si próprio, vangloriando-se perante Javé (cf. Dt 32, 10-15).
Fome e pobreza são duas tragédias indissociáveis, oriundas de uma mesma vertente: o egoísmo das pessoas e a indiferença da sociedade. E a mesma vertente que traz a fome e a pobreza, leva ao estuário da miséria, da indigência, da revolta e do desespero. Os profetas e os reformadores muito se bateram contra isso. Jesus, na sinagoga de Nazaré, inicia a pregação em cima desse drama.
Colocada propositalmente em primeiro lugar entre os “grandes temas sociais” do Antigo Testamento, a pobreza é a extrema violação do direito humano. Toda pessoa, criada à imagem e semelhança do Pai (alma imortal e coração feito para o amor) tem direito à felicidade. A pobreza e suas conseqüências se tornam violências que mutilam e desfiguram a semelhança da criatura ao Criador.
Esmola, no grego eleémosüne, nos LXX identifica a misericórdia de Deus, ou a ajuda do homem a seu semelhante. A figura da esmola é tão antiga quanto a própria necessidade humana. Todas as culturas, desde as mais antigas, postulam essa prática. A esmola antiga, porém, era uma ajuda substancial e efetiva, capaz de sanar a penúria do necessitado. Diferente de hoje, em que dá-se esmolas de coisas que não queremos mais, ou de valores tão desprezíveis que são até uma afronta ao pedinte. A generosidade para com os pobres, faz parte da essência das celebrações judaicas da Antigüidade (cf. Dt 16, 11; Tb 2, 1s).
Jamais afastes o teu rosto de um pobre, e Deus não afastará o seu de ti... Se tens muito, dá mais; se tens pouco, dá menos, mas não hesites em ajudar teu semelhante. Quando deres esmola, que não haja pesar em teus olhos... (Tb 4, 7-11.16s).
Desde os tempos pré-estatais foi se preparando uma diferenciação das condições de posse e, conseqüentemente, da sociedade. Essa diferença entre ricos e pobres iria levar a um profundo abismo no tempo da monarquia, e assumiria contornos de catástrofe no tempo em torno do exílio. O pequeno lavrador, cujo estado econômico era, quando muito marginal, se achava muitas vezes nas garras de usurários e, à menor calamidade, uma seca, uma perda de colheita, ficava sujeito à execução da hipoteca e à evicção, quando não ao trabalho escravo (cf. Am 4, 6-9) decorrente daí.
Essa evicção (perda dos direitos) era decorrente dos julgamentos feitos em favor dos poderosos e, via de regra, feitos por magistrados, se não totalmente corruptos, pelo menos comprometidos com as elites. Neste aspecto, é bom que se faça um paralelo entre direito e justiça. Por Direito, no Antigo Testamento, era tudo aquilo que estava escrito na lei e em seus regulamentos subalternos. Ora, a lei embora de inspiração divina, tinha sua aplicação nas cortes humanas e, por isso, muitas vezes era tendenciosamente aplicada. Os profetas, por causa das desordens geradas pelo egoísmo e pela cobiça, anunciaram desgraças (cf. Am 5, 7; Is 5, 7.23; Jr 22, 13.15) com a finalidade de que, diante dessas ameaças, os injustos tomassem consciência da dimensão moral das exigências divinas, e corrigissem a ha’tãt (desvio ético).
Já a justiça (mišpat) era encarada – e assim devia ser hoje – como superior à lei (direito positivo) aplicada ou não. A justiça, biblicamente falando, consiste em descobrir as necessidades exatas de cada indivíduo e da comunidade, e os meios que cada pessoa necessita para viver com dignidade. O exercício da justiça é devido a todos, e primeiramente àqueles excluídos: os pobres, os assolados pela indigência (cf. Ex 23, 6; Is 10, 2; Jr 5, 28). O Antigo Testamento está repleto de citações que privilegiam a justiça, acima da lei e do direito:
A lavoura do pobre dá sustento a ele e sua família, mas pode se perder se não houver justiça (Pv 13, 23).
No Antigo Testamento há uma grande dialética – como em todos os tempos – entre a riqueza e a pobreza, a fartura e a fome. A riqueza é muito estimada nas Sagradas Escrituras, como poderosa afirmação de vida, e até de bênção de Deus (cf. Gn 24, 35). Entretanto, no processo histórico de Israel, a riqueza, sinal de bênção divina, deu lugar à avareza, pois passou a resultar em pobreza para os demais e, teologicamente, deixou de ser uma bênção para tornar-se motivo de preocupação e até de perdição:
Não explore o fraco por ser fraco, nem defraude o pobre nos tribunais, porque Javé defenderá a causa deles e tirará a vida de seus opressores (Pv 22, 22ss)
A abundância do rico lhe tira o sono (Eclo 5, 11).
Ao contrário, Javé socorre aqueles que usam de solidariedade para com seu próximo:
Feliz o que se lembra do pobre e do necessitado, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará (Sl 41, 2).
Nos dias de hoje, quando o assunto deriva para a solidariedade, para a ajuda fraterna aos pobres, é comum escutar-se de algumas pessoas a citação bíblica proferida por Jesus
Sempre haverá pobres no meio de vocês (Mt 26, 11)
numa repetição distorcida de Dt 15, 11, como a dizer que a pobreza é inevitável. Na verdade, tal frase não é uma sentença de Jesus à perenidade da pobreza. É, isso sim, uma visão futura, em que o egoísmo e o individualismo crescem cada vez mais. O sentido real da frase seria:
Como vocês serão cada vez mais egoístas, duros de coração e incapazes de se converter, haverá pobres cada vez mais no meio de vocês ...
No Novo Testamento, uma das formas mais privilegiadas de acolhimento e encontro com o Rei-Messias, é através dos pobres (cf. Mt 25, 31-46).
1.1 REFERÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE A POBREZA
É muito grande e significativa a quantidade de textos do Antigo Testamento sobre a pobreza, suas raízes, agentes e conseqüências. Vale relembrar os mais candentes e significativos:
Quem ama o dinheiro nunca se sacia dele. Quem é apegado às riquezas, nunca se farta com a renda. Isso também é vaidade! Quando a riqueza aumenta, cresce também o número daqueles que querem se devorar. Que vantagem tem o proprietário, além de saber que é rico? Coma muito ou coma pouco, o sono do trabalhador é tranqüilo (Eclo 5, 9s).
Não desvies o olhar daquele pobre que te pede alguma coisa, e não dês ocasião para que ele te amaldiçoe, porque se ele, em sua amargura, te amaldiçoar, eu atenderei o pedido dele (Eclo 4, 5s).
Em paralelo, Amós mostra o perfil do opressor e do idólatra, assim como a punição dos seus crimes:
[...] bebem canecões de vinho, usam os mais caros perfumes, sem se importar com a ruína de José! Por isso vocês irão acorrentados à frente dos exilados. Acabou-se a farra dos boas-vidas! (Am 6, 6s).
2. AS VIÚVAS
A viuvez nos dias de hoje é um drama, e principalmente para a mulher. Embora o homem também sofra bastante a perda de sua companheira, a viuvez acarreta para a mulher, além da solidão da separação, a obrigação de assumir muitos compromissos com a família e os filhos, bem como a administração do patrimônio doméstico, coisas geralmente afetas ao marido.
Na verdade, a viúva, yatôn no hebraico e xéra, no grego, era, junto com o órfão, conforme veremos adiante, a classe mais sofrida e abandonada em Israel. Embora protegida pela Torá, essa proteção era mais ou menos retórica, pois os termos da lei (cf. Ex 22, 20-23; Dt 14, 28s’24, 17-22) não eram obedecidos.
Solitária (Ba 4, 12-16), a viúva representa um caso típico de infelicidade (Is 47, 9). Seu traje (Gn 38, 14; Jt 10, 3) exprime um duplo luto: perdeu a esperança da “fecundidade’(ser mãe do Messias) e o abandono da perda do cônjuge” (VTB).
Em Israel, como, aliás, em toda a Palestina e Oriente Antigo, não havia “previdência”, nem “seguro social” e muito menos um direito de sucessão confiável. Como as mulheres não exerciam atividades econômicas, e as heranças não eram juridicamente reguladas e protegidas, as viúvas ficavam, em muitos casos, na miséria, desamparadas e dependentes da caridade pública.
Como a lei não era respeitada, as viúvas eram alvo da cobiça, a partir de seus parentes, o filho mais velho, pais, sogros, cunhados e irmãos, privando-as dos mais elementares direitos. As propriedades do falecido eram saqueadas e divididas entre os parentes mais astutos. A viúva e os filhos menores ficavam praticamente sem nada, apenas oravam a Javé para que as defendesse. As Escrituras dizem que ele escuta seus clamores (cf. Dt 10. 17s; Eclo 35, 14s) e se torna seu defensor, o go’el.
Enquanto na Mesopotâmia, desde o código de Hamurábi, as viúvas tinham direito à herança, em Israel esse direito pertencia à família do marido, de quem a mulher ficava dependente, tornando-se presa fácil dos exploradores, às vezes membros da própria família. Israel era o único lugar onde se verificava essa distorção. O casamento da viúva com o irmão mais novo do marido (às vezes até com crianças ou adolescentes) visava mantê-la sob a dominação do clã.
As viúvas só tinham em Deus, praticamente, sua consolação. Em geral, quando o marido sentia que ia morrer, procurava um lugar para a mulher, às vezes até buscando arranjar-lhe um casamento, para que essa união a livrasse da miséria. No Novo Testamento, vemos Jesus, deixando Maria, sua mãe, viúva e pobre, aos cuidados do amigo João (cf. Jo 19, 26s), que a leva para casa, como coisa sua (eís tá idía).
Compadecido da miséria das viúvas, Deus devolve, por meio do profeta Elias (cf. 1Rs 17, 17-24) a vida do filho da viúva de Sarepta. No Novo Testamento (cf. Lc 7, 11-15) Jesus repetiria o gesto, em Naim. No serviço cotidiano da Igreja nascente, depois de Pentecostes, havia a preocupação em atender às necessidades materiais e espirituais das viúvas (cf. At 6, 1). O homem, mesmo viúvo, não sofria maiores contratempos em condição social e econômica, ao contrário das mulheres, onde tudo mudava; e para pior.
Ele [Javé] faz justiça ao órfão e à viúva, ama o migrante, dando-lhe pão (Dt 10. 18).
3. A MULHER
Em nossos dias, muitas mulheres ainda são oprimidas e sofrem discriminação, por serem mulheres, pela maternidade, por teoricamente mais fracas e, às vezes, por causa da cor, do estado civil, da escolaridade, da pobreza ou da solidão. Se ela é velha e pobre, corre o risco do abandono e da miséria. A condição de Terceiro Mundo da América Latina relegou a mulher, em alguns casos, a objeto de trabalho, mão-de-obra barata e sem voz, instrumento gerador de prole e, não-raro, prostitutas, muitas vezes a mando da família, para ajudar a renda familiar.
A luta da mulher hoje oprimida é como que um secular clamor histórico, que teria começado nas estepes do Oriente Médio. De lá para cá há toda uma caminhada de libertação que parece que ainda não chegou ao fim. No período sedentário, a posição social da mulher (‘iša) revela mudanças insignificantes em relação ao período seminômade. A mulher continuava a ser considerada como alguém que pertence ao homem (Gn 20, 3). O homem é seu senhor, baal e proprietário (Ex 21, 3.22; 2Sm 11, 26). A submissão ao marido situava-se na linha de um dever religioso.
A prática da poligamia, ou concubinato, era permitido ao homem. A mulher era obrigada a tolerar a presença da outra dentro de casa. O direito de divórcio só podia ser exercido pelo homem que, entre outros motivos, tinha a faculdade de pedir a separação em caso de adultério ou esterilidade. As tarefas da mulher na Palestina eram as mais pesadas: cuidar do marido, dos filhos, gerar prole (sinal de bênção divina), cozinhar, fiar, lavar roupa, supervisionar os serviços da casa, zelar pelos animais domésticos (gansos, ovelhas, cabras, etc.). A chamada “literatura sapiencial” chama de mulher virtuosa quem pratica esses trabalhos (cf. Pv 31, 10-31).
O corpo feminino era relacionado tão-somente com a reprodução. Prazer sexual era coisa, normalmente, desconsiderada entre as mulheres da Palestina. Esterilidade, viuvez e até virgindade (na idade mais avançada) eram estados negativos e, às vezes, sinal de maldição divina. O marido, no Oriente Médio tinha para com a mulher, alguns deveres, mínimos, como:
 dar-lhe alimento habitação e vestuário;
 cumprir (se estivesse disposto) os deveres conjugais;
 tentar resgatá-la em caso de rapto;
 zelar por sua saúde e integridade física;
 enterrá-la por ocasião da morte.
A partir da hermenêutica restritiva de Gn 3, 16 (“teu marido te dominará...") todo um regime de submissão quase escravidão estava desencadeado. Há quem acuse a Bíblia de ser demasiadamente machista. O problema, porém, vai mais além do livro em si. Trata-se de uma peculiaridade cultural. A maioria dos códigos, civis e religiosos daquela época traziam consigo essas características. A Bíblia, como um “livro do povo” nada mais fez que relatar fatos culturais que, em princípio, lhe pareciam pertinentes àquela sociedade.
As mulheres egípcias eram tratadas de outra forma. Tinham escravos, eram vaidosas, zelavam por sua aparência, não precisavam encobrir o rosto, tinham economias próprias e – em alguns casos – exerciam a poliandria (possuíam mais de um marido ou amante).
3. 1 REFERÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE A MULHER
Quem poderá encontrar a mulher de virtude? Ela vale muito mais do que pérolas. Seu marido confia nela, e não deixa de encontrar vantagens. Ela traz para ele a felicidade e não a desgraça, todos os dias da sua vida. Ela adquire a lã e o linho e suas mãos fiam com prazer. Ela é como o navio mercante que importa de longe as provisões. Ela se levanta quando ainda é noite para alimentar a família e dar ordens aos empregados... (Pv 31, 10-15).
A mulher antes do casamento devia ser mantida reclusa (cf. 2Mc 3, 19). A menstruação ou qualquer outro mal ginecológico era considerado como uma impureza. Nesse período, a mulher não podia preparar alimentos, nem sentar-se em lugares públicos ou pisar jardins. A impureza feminina, não só a menstrual mas também a referente ao parto, era prescrita em lei religiosa (cf. Lv 12, 1-5; 15, 19-24).
A proibição das mulheres falarem nas assembléias (cf. 1Cor 14, 33ss) é decorrente do domínio (cf. Gn 3, 16) do homem sobre a mulher. Para caracterizar esse aspecto cultural, é interessante notar que todo o Oriente antigo, as mulheres eram proibidas de assistir cultos religiosos. No templo de Jerusalém elas podiam penetrar até o “pátio das mulheres” onde ouviam a pregação. Talvez esteja aí a raiz da resistência da elevação de mulheres ao sacerdócio. No Talmude há duas referências à discriminação contra a mulher:
Aquele que ensina a lei (Torá) à sua filha, ensina-lhe a devassidão (IX/ 2, 9).
Eu te louvo e agradeço, ó Senhor Javé, por não ter nascido infiel, inculto nem escravo ou mulher (XII/4, 12).
Apesar de condenar a opressão contra pobres, viúvas, órfãos, estrangeiros e outros sofridos, a Bíblia, por uma característica cultural, não faz referência, uma linha sequer à opressão da mulher. A segregação histórica da mulher remonta o alvorecer da humanidade, e muita discriminação atual é fruto ou seqüela das antigas culturas. A reforma dessa mentalidade só ocorre a partir da modificação de todo um processo sociocultural.
4. A VELHICE
A literatura bíblica, talmúdica e rabínica, assim como a maioria dos escritos orientais denotam carinho, respeito e preocupação com a velhice:
Cabelos brancos são coroa nobre, quando se encontram no caminho da justiça (Pv 16, 31).
A velhice, no contexto da teologia bíblica, é um símbolo de eternidade. O Eterno aparece a Daniel (7, 9) sob o aspecto de um ancião. No Apocalipse, um grupo de anciãos representa a corte de Deus, a cantar eternamente a sua glória (4, 4; 5, 14). Na antiga Palestina, a velhice era, pelo menos em alguma fase literária, sinônimo de doença e incômodo (cf. Gn 27, 1; 1Rs 1, 1). Sobre os velhos pesava o espectro da doença e da morte. Além da medicina de pouca eficiência, o abandono e a injustiça, agravavam sobremaneira o drama dos idosos. Naquele tempo, a despeito da medicina incipiente, e das guerras, as pessoas duravam mais:
• as condições de vida eram melhores: não havia poluição, estresse, preocupações, doenças funcionais;
• os calendários eram menores (9 meses = 3 estações);
• em alguns casos, “viver 500 anos” não era, de fato, viver tanto tempo assim, mas viver com virtude, honra e sabedoria;
Os hagiógrafos (escritores dos livros sagrados) referiam-se à vida longa como sinal de virtude (cf. Gn 5; Sl 103, 5). As Escrituras têm duas visões da velhice: uma gloriosa e outra sofrida. Na visão gloriosa (idealista), a velhice é sinal de respeito, sabedoria e santidade:
Como é belo para os cabelos brancos saber julgar, e para os anciãos saber dar conselhos! Como fica bem a sabedoria para o ancião e o discernimento para as pessoas honradas. A coroa dos anciãos é uma grande experiência, e o orgulho deles é temer ao Senhor (Eclo 25, 4ss).
Levante-se diante de uma pessoa de cabelos brancos, e honre o ancião: tema seu Deus. Eu sou Javé (Lv 19, 32).
Nessa visão, a velhice é sinônimo de sabedoria, virtude e felicidade (cf. Is 65, 20; Zc 8, 4; Sb 4, 8s). Na visão sofrida e sombria, ser velho é sofrer castigos, ser um estorvo e viver sem esperanças:
• a vista enfraquece (Gn 27, 1; 1Rs 14, 4);
• o corpo perde o calor (1Rs 1, 1);
• aparece o reumatismo (15, 23);
• a alegria vai diminuindo (2Rs 19, 36);
• não há mais condições de gerar filho (Gn 18, 11ss);
• o velho se torna dependente dos outros (Eclo 8, 6).
4.1 REFERÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE A VELHICE
Com o caos político e social de Israel, os velhos sofriam muito. Por isso fazem parte integrante dos chamados “temas sociais”. Sobre o enfoque do sofrimento, a velhice é triste. O idoso manifesta seu temor de tornar-se dependente e vulnerável diante das ameaças de seus inimigos:
Não me rejeites agora, na velhice, quando as forças declinam, não me abandones! Ó Deus, não fiques longe de mim, meu Deus, vem depressa socorrer-me . Eu, entretanto, sempre hei de esperar, multiplicando teus louvores. Minha boca narrará tua justiça e, todo dia, tua salvação, porque não lhes conheço limites. Apresentarei os feitos do Senhor Deus, evocarei tua justiça, que é somente tua. Ó Deus, tu me instruíste desde a juventude, e até hoje proclamei teus prodígios. Agora, na velhice e de cabelos brancos, não me abandones, ó Deus, até eu anunciar aos meus descendentes os feitos de teu braço, e às gerações vindouras teu poder! (Sl 71, 9-18)
Nas Escrituras a pessoa idosa é vista como um sinal de bênção de Deus na família e na sociedade:
Honre seu pai e sua mãe: desse modo você prolongará sua vida, na terra que Javé, seu Deus, dá a você (Ex 20, 12).
Meu filho, cuide de seu pai na velhice, e não o abandones enquanto ele viver (Eclo 3, 12).
O pensamento judaico volta-se em defesa dos idosos, e condena àqueles que os oprimem, pelo fato de o homem velho colocar sua esperança em Javé. O abandono aos velhos é classificado como injustiça:
No dia da aflição, Javé irá socorrer aquele que teve piedade do indigente e do idoso (Sl 41, 2).
Deus quer que o homem entenda a velhice e a doença como uma contingência natural da vida, e não como castigo nem como fato gerador de revoltas. A omissão e a indiferença da sociedade para com os sofrimentos da velhice, são violência perpetradas contra o próprio Deus.
5. OS ÓRFÃOS
Na antiga Palestina judaica, o sofrimento do povo, de origem sociopolítica, tornou-se objeto de esperança de uma salvação religiosa. Isto só foi possível por causa do papel especial das tradições religiosas, tão vivas no judaísmo. Sentenças religiosas serviam para que se desse validade geral ao desejo de libertação social e étnica.
Neste papel, onde sentenças religiosas representaram o discurso social, está o fundamento do elemento coletivo da salvação. Salvação, deste modo, tornou-se direito e desejo dos oprimidos. A figura do órfão (al’manã, no hebraico) é semelhante à da viúva, mas com um agravante: a viúva tinha ainda algumas possibilidades a mais, se fosse jovem e bonita, de interessar a algum irmão do marido falecido, ou ser aceita, de volta na casa de seus pais. O órfão não! Se a viúva casasse ou retornasse à casa paterna, a primeira condição era: deixe seus filhos!
O refrão veterotestamentário constantemente embutido na pregação dos profetas: “façam justiça ao órfão!”, significa, de forma realista e concomitantemente simbólica, que ao mesmo tempo em que os excluídos são membros do povo da Aliança, têm o direito ao reconhecimento de sua dignidade pessoal. De fato, a profecia invectiva àqueles que oprimem os órfãos:
Ai daqueles que iniquamente despojam o órfão; o que farão no dia em que o castigo chegar? (Is 10, 1s).
O órfão, por ser criança, fraco e abandonado, representa quem sabe a síntese do oprimido. Os demais, o pobre, a mulher, a viúva, o idoso, esses podem, de certa forma, sobreviver e lutar. A criança abandonada fica entregue à própria sorte que, via-de-regra, não lhe é favorável. É curioso que até nas modernas enciclopédias bíblicas e teológicas se encontre pouca coisa a respeito de órfãos. Em geral elas passam, sintomaticamente, do verbete oração para orgulho. Pela dignidade de uma vida pobre, mas, solidária para com o filho pobre, duas viúvas são particularmente referidas na Bíblia: trata-se da viúva de Sarepta, no AT (cf. 1Rs 17, 8-16) e da viúva de Naim, no NT (cf. Lc 7, 11-17). Estas mulheres preferiram ficar na indigência a separar-se de seus filhos. A uma o Senhor deu fartura, à outra, restituiu a vida do filho.
Justiça, em hebraico sedaqah, não é uma simples equidade matemática, ou troca de coisas de igual valor. Na perspectiva bíblica, seu horizonte é muito mais vasto, estendendo-se, não só às relações humanas, mas também à existência da humanidade e até à ordem do universo. Pela justiça, a harmonia se expande entre as criaturas de Javé. Pelo julgamento (mišpat) a ordem inicial é restabelecida (cf. Sl 72), a comunhão renovada e a iniquidade banida. Reportando-se a essas injustiças reinantes em sua sociedade (semelhante às nossas, de hoje em dia), Sofonias denuncia as elites:
Seus príncipes são leões que rugem, seus juizes são lobos vorazes que a tudo devoram e nada guardam para a manhã seguinte (3, 3).
Nas culturas agrárias de Canaã, era costume deixar para trás alguns feixes da colheita, como oferta às divindades agrárias. A Torá transforma esse costume pagão em gesto de solidariedade, numa atitude sócio-religiosa: a oferta a Deus é estendida aos pobres.
Quando você estiver ceifando a colheita em seu campo e esquecer atrás um feixe, não volte para pegá-lo; deixe-o para o migrante, o órfão e a viúva. Desse modo, Javé, seu Deus, abençoará você em todo o seu trabalho (Dt 24, 19).
Assim como não havia direito de herança e sucessão em favor das viúvas, também os órfãos não eram favorecidos por nenhuma lei jurídica que pudesse garantir sua propriedade e sobrevivência. Por isso, todos os escritos proféticos estão cheios de sentenças em favor deles:
Não oprimam nem explorem o órfão! (Jr 22, 3).
5. 1 REFERÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE OS ÓRFÃOS
A prática da justiça em favor dos fracos, e em nossa análise específica, dos órfãos, é característica da ação de Javé, e motivo de felicidade para o homem. Ele torna-se o go’el (o verbete go’el tem vários significados: o mais forte, o que ajuda, o irmão mais velho, o que liberta) cujo múnus libertador encontraria, mais tarde, em Jesus Cristo, sua plenitude. Quem pratica a justiça, louva e glorifica o Criador. No saltério há várias referências nesse sentido:
Que ele (Javé) defenda os pobres do povo, salve os órfãos e esmague seus opressores (Sl 72, 4).
Observa-se que a produção literária do Antigo Testamento, seja profética, sapiencial ou legislativa, vem permeada, no que interessa ao presente tópico, pelo cuidado solidário com os órfãos:
Não maltratem (...) o órfão, porque se vocês o maltratarem e ele clamar a mim, eu escutarei o clamor dele e minha ira se inflamará e eu farei vocês perecerem pela espada (Ex 22, 21s).
Ele (Javé) faz justiça ao órfão (...) e ama o migrante, dando-lhe roupa e pão (Dt 10, 18).
Não invada a terra dos órfãos, nem desloque a divisa de seus campos, pois o defensor (go’el) deles é forte e defenderá contra você a causa deles (Pv 23, 10)
6. OS OPRIMIDOS
Se formos considerar a palavra opressão como um ato de violação à dignidade humana, genericamente poderíamos considerar todos os tópicos anteriores, pobreza, fome, abandono às viúvas, órfãos, doentes e idosos, a insalubridade e o descaso social, como práticas opressoras.
Para compreendermos a questão dos oprimidos de Israel, cujo sofrimento dividiremos, de um lado em opressão religiosa, e de outro em opressão sociopolítica, é importante que conheçamos os diversos conceitos modernos sobre opressão, como tema social, relevante e atual, e assim adaptá-los às realidades israelitas, objeto de nosso estudo.
Em Israel a opressão - e os relatos bíblicos, históricos e paralelos no-lo revelam - era uma constante, desde o período da escravidão no Egito até a volta do exílio. A opressão era política, social, econômica e religiosa. Não tendo condições de sobreviver, logo após a sedentarização, as tribos de Issacar, Zabulon e Aser, praticamente renunciaram a suas condições e atividades tribais, para tornarem-se assalariadas nas regiões costeiras. Essa procura de uma melhor condição econômica, longe de trazer bons resultados, gerou pobreza, tutela e uma quase escravidão, a despeito de uma relativa autonomia religiosa e de ir-e-vir.
Enquanto falamos de opressores e oprimidos, achamos que os leitores gostariam de saber quem eram os opressores em Israel. Dentro da metodologia que adotamos, dividimos a opressão em religiosa e sociopolítica. Sob essas duas variáveis, podemos ver o opressor nos seguintes grupos:
• sacerdotes (kohén) → que coonestavam o regime injusto;
• falsos-profetas (nebiim) → os que anunciavam oráculos corrompidos, em favor da situação;
• santos (kadoš) → pessoas que se julgavam espiritualmente superior aos outros desprezando os demais; a expressão “santo” aqui é usada de forma depreciativa;
• governo (peháh) → cobrava impostos e tributos exorbitantes, exercia a corvéia e convocava os homens para a guerra sem pagar salários;
• ricos (nâbal) → a maioria enriquecia por violência ou fraude, avançando nas propriedades dos mais fracos;
• agiotas → emprestavam dinheiro com usura, sob penhor ou hipoteca, cobrando juros impossíveis de serem pagos;
• povos-da-terra (am-aaretz) → os cananeus ricos, por terem dinheiro compravam as terras dos israelitas, a preços vis, deixando-os na miséria e, muitas vezes, subtendo-os ao trabalho assalariado e, não-raro, escravo.
6.1 A OPRESSÃO RELIGIOSA
A volta do exílio da Babilônia desencadeou novas e redobradas tensões sociais e religiosas, entre os que voltavam e os que tinham permanecido na Palestina. Enquanto os primeiros se consideravam vítimas de toda uma situação, os que ficaram se julgavam o povo do país, e se diziam não-contaminados pelas idolatrias mesopotâmicas, às quais os exilados estiveram expostos.
Esse retorno do cativeiro ensejou algumas medidas, como a reconstrução das muralhas de Jerusalém que promulgou a Torá, cuja redação final acabara de ocorrer, como texto religioso e legislativo da comunidade judaica. Estabeleceu-se, a partir daí, uma teocracia mais rigorosa e purista que as anteriores.
Os judeus desprezavam seus compatriotas que não se perfilavam ao modelo teocrático nacional, aqueles que, segundo os puristas, desprezavam a Lei de Deus (a Torá), cometendo atos de apostasia. Eram os maus, os pecadores, os zombadores, com os quais o judeu fiel não deveria se relacionar (cf. Sl 1); são os sem-lei (1Mc 1, 11), os malditos (Eclo 41, 8-10), aos quais deveria ser negada até a caridade mais elementar (cf. Tb 4, 17).
A classe sacerdotal, muitas vezes, por sua incoerência de vida, além de validar processos pecaminosos ou pouco éticos das elites, servia, através de suas más ações, como força opressora contra o povo, dando escândalo por seu comportamento, responsável, muitas vezes pelo afastamento do povo das práticas religiosas.
Foi pelos erros dos profetas e pelos crimes dos sacerdotes que derramaram sangue inocente dentro da cidade (Lm 4, 13).
Um dos motivos, talvez o maior, que levou Jesus à cruz, foi sua disposição de perdoar pecados. Os sacerdotes do templo estavam preocupados com aquele homem que perdoava pecados, pois sua atitude trazia um ponderável prejuízo econômico. Acontece que cada pedido de perdão a Deus era precedido de um sacrifício, onde vítimas, de bois a pombos eram sacrificados para expiação das culpas do pecador. Ora, os sacerdotes mantinham, no recinto do próprio templo, bancas onde vendiam esses animais. Por isso, ser pecador era pertencer a uma classe pobre, pois, não tendo dinheiro para comprar os animais para o sacrifício, a pessoa permanecia atada ao seu pecado, e como tal, considerada pecadora pública e, por isso, discriminada e oprimida. A opressão religiosa, perpetrada pelos sacerdotes e pela classe que gerenciava o templo, funcionava dessa maneira contra os pecadores.
Embora ninguém acuse e ninguém conteste, eu acuso você, sacerdote! Você tropeça de dia, o profeta tropeça com você de noite, e você faz perecer a sua própria mãe. Meu povo está se perdendo por falta de um melhor conhecimento (Os 4, 4-6a).
O povo, conforme se observa claramente pelos escritos antigos, era oprimido pela miséria, por governos injustos e também pelos sistemas religiosos. A opressão religiosa era exercida pelos sacerdotes e pelos falsos profetas. Essa opressão, levada a efeito por sacerdotes e profetas distantes do projeto de Javé, é comparada a um pastoreio irresponsável:
Ai do pastor de coisa nenhuma, que abandona seu rebanho (Zc 11, 17).
Os profetas se rebelaram contra esse testemunho negativo, que de um lado oprimia, e de outro mandava cumprir a lei de Deus. O texto abaixo, do Trito Isaías (58,5s) é profeticamente revelador:
O JEJUM (ato religioso)
QUE EU (Javé) QUERO, É
LIBERTAR (ato político)
OS OPRIMIDOS (ato de justiça reparadora) E
REPARTIR A COMIDA (ato de acolhida social)
COM QUEM TEM FOME (visão sociopolítica).
A piedade que Javé pede, através de seu profeta, é rejeitar o formalismo burocrata da lei, para cumprir de forma solidária, o mandamento da justiça:
Então você clamará e Javé responderá; você pedirá socorro e ele dirá: “Eu estou aqui!” Isso se você banir de seu meio a opressão, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio-dia (Is 55, 9-10).
6.2 A OPRESSÃO SOCIOPOLÍTICA
É importante observar, para aprofundar nosso estudo, que quando o povo hebreu chegou à terra prometida (séc. XIII a.C.), todos eram sem-terra, e todos receberam, de acordo com a distribuição à sua tribo, uma gleba para cultivo. Entretanto, em 701 a.C., cinco séculos depois, na época da invasão assíria, por Senaquerib, já havia, no Reino do Norte, latifundiários e roceiros sem terra, grandes proprietários rurais e escravos, o que ensejou violenta tomada de posição dos profetas:
Ai daqueles que, deitados em suas camas, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam os campos e os roubam; querem uma casa e a tomam. Assim oprimem o homem e sua família, ao proprietário e sua herança (Mq 2, 1s).
Se sem-terra era uma característica do povo do êxodo, igualmente o era após o exílio, quando aconteceu uma grande concentração fundiária nas mãos de poucos que, a despeito de algumas “leis de terras” contidas nas Escrituras, buscavam acumular cada vez mais terra.
Os sistemas econômicos controlados pela elite, oprimiam o roceiro, que cada vez mais era despojado pela agiotagem (hipotecas e penhores). As dívidas constituíam, em Israel, uma das principais causas do empobrecimento do povo. A proibição de empréstimos a juros ocupava importante lugar na legislação de Israel, em favor, principalmente dos pobres e dos estrangeiros:
Emprestarás sem juros a teu irmão... (Dt 23, 20).
Essa lei, no entanto, não era observada pela maioria dos agiotas e exploradores, que comprando e corrompendo príncipes e juizes, enriqueciam cada vez mais. Com a implantação do latifúndio deu-se o declínio econômico da maioria da população. O fenômeno era semelhante ao que ocorre hoje. Usando a pressão do dinheiro, da ameaça e da violência física, os ricos iam aumentando suas terras, e colaborando para o surgimento de bandos de indigentes. Leis contra a usura e penhor de coisas pessoais já não eram obedecidas. Igualmente era proibido tomar em penhor, instrumentos de produção de alimentos, pois quem os penhorasse, estaria penhorando a própria vida do devedor. Esse penhor era uma forma de pressionar os fracos a venderem a propriedade a preços mínimos:
Hoje, no mundo e especialmente na América Latina, não é muito diferente. O povo paga impostos ao governo que sustenta as elites, classes exploradoras, estruturas estatais e dá benesses a multinacionais, favorecendo a impunidade sobre a corrupção de todos os poderes da nação. Este é o retrato da opressão sociopolítica de Israel:
• o governo exercia opressão contra o povo; era rigoroso com ele no tocante a deveres e obrigações fiscais, mas omisso quanto a seus direitos; quem não pagasse impostos e tributos ia preso, perdia seus bens e podia até tornar-se escravo; o rico sempre ganhava uma facilidade: prazo para pagar; poder sonegar;
• os conselhos (Congresso?) tidos como representantes do povo, serviam aos interesses do sistema, desprezando seus representados;
• as forças armadas – tal como hoje – eram omissas ou validadoras do ‘status quo’ e, quando faziam revolução era para impedir reformas;
• a justiça (o Judiciário) era executada por homens pertencentes às elites sociais; por isso, em geral decidia contra os fracos, em favor das classes mais favorecidas; o clamor dos excluídos para eles era ofensa e incômodo; No Novo Testamento, Jesus cita, em uma parábola, a iniqüidade de um desses juizes de Israel (cf. Lc 18, 2-5);
• a classe sacerdotal, comensal dos palácios da burguesia, mantinha-se distante dos problemas sociais, e cega aos sofrimentos do povo; e ainda acusavam os verdadeiros profetas de exercerem atividades contra Deus e contra o estado;
• as classes dominantes (latifúndio, comerciantes, novos capitalistas) eram coesas, corporativistas e mantenedoras das estruturas excludentes; corrompiam e aceitavam corrupção; eram apoiadas pelos sacerdotes;
• o povo, sem voz e vez, trabalhava (muitas vezes de graça), pagando impostos, dando soldados às milícias; se reclamasse de algo, era visto como inimigo do Estado e infiel a Javé;
• um sub-povo (escravos, estrangeiros, doentes, pecadores) vegetavam à margem de uma sociedade, cujos líderes se diziam ungidos e/ou inspirados por Deus.
É incrível como os modernos modelos sociais, em especial no Terceiro Mundo, ainda hoje são mais ou menos assim. Os estóicos falavam nos eternos ciclos da história, em cujo decorrer voltam os mesmos eventos do passado. A esses fenômenos de repetição da história, legítimas leis do eterno retorno, os filósofos davam o nome de palingenesia, que Spengler († 1938) definiu como “ritmo cíclico que caracteriza o devir histórico das civilizações”. Nesse contexto de opressão, como sabemos, ergueram-se as vozes dos profetas, com o destemor de quem conhece sua missão.
Desde o começo, as Escrituras reverenciam Javé como aquele que somêch noflim, “levanta o oprimido do pó” (cf. 1Sm 2, 8). Ao pedir atenção para com o oprimido (cf. Is 1, 17), Javé lembra-se do escravo, do sem-terra e do migrante, além do pobre, do doente, da viúva, do idoso e do órfão. Os oprimidos em Israel eram chamados de am-há’harets, termo característico de gente da terra, ignorantes, sem cultura, pobres, ou, na clareza do nosso português, um zé-povinho. A profecia teve na escravidão um ponto alto de suas denúncias:
Arranque o oprimido das garras do opressor: não seja covarde em fazer justiça! (Eclo 4, 9).
A libertação dos presos, dos escravos e dos oprimidos, é uma pregação constante no AT, que chega ao cristianismo sem perda de sua essência. Jesus revela-se ungido para, entre outras missões, libertar presos, escravos e oprimidos (cf. Lc 4, 18s).
Se você fizer isso (libertar os oprimidos), sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar, a justiça que você pratica irá à sua frente, e a glória de Javé virá acompanhando vocês (Is 58, 8).
A prática messiânica e libertadora de Jesus, qual um Moisés no Egito, rompe o cárcere da escravidão, resgatando o homem, assim como outrora, Javé libertou seu povo da opressão do faraó. A escravidão, desde os albores da história humana, é uma prática cruel que violenta os mais elementares princípios de respeito ao direito do ser humano. O combate à escravidão, seja esta da forma que for, é um dos grandes temas sociais das Antigas Escrituras:
O preso logo sairá livre; não morrerá na cadeia nem lhe faltará o pão (Is 52, 14);
A ganância urbana e fundiária gerava (assim como gera hoje, mais do que nunca), os sem-terra, os sem-teto, os favelados, os que vivem em barracos à beira dos penhascos, as sub-habitações:
Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo com campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitar no meio do país. Javé jurou no meu ouvido: “Suas muitas casas serão arrasadas, seus palácios luxuosos ficarão desabitados; um alqueire de videira dará apenas um barril e dez medidas de semente produzirão uma só (Is 5, 8ss).
Os estrangeiros, ksênos no grego, aí incluídos migrantes, forasteiros, hóspedes e peregrinos, não eram bem recebidos em Israel, por causa da discriminação religiosa. O migrante era uma pessoa arrancada de seu contexto étnico tradicional. Como era sem-terra, não tinha direitos e, por isso, era privado de qualquer forma de representação social. Há diversas formas de definir esses migrantes:
• zãr é toda pessoa estranha à família, ao clã ou ao país;
• nokrí é aquele que se detém temporariamente (viajante ou peregrino);
• gêr (plural gerîm) é o estrangeiro que migrou e se estabeleceu no páis.
Em Israel, o gêr era discriminado ao máximo. Tal temor talvez estivesse ligado à perda do poder. Sendo numerosos e ricos, os estrangeiros poderiam suscitar revoltas que colocariam em risco a nação e a religião judaica. Só podia ser por isso. Mesmo havendo sido gêr no Egito, mesmo assim, e a despeito das palavras da Torá, o estrangeiro não teve melhor acolhida por parte do povo de Israel:
Não explore o imigrante nem o oprima; lembre-se que você foi imigrante no Egito (Ex 22, 20).
Nos salmos encontramos algumas referências à solidariedade devida aos migrantes:
Javé faz justiça aos oprimidos e dá pão aos necessitados. Ele liberta os prisioneiros, abre os olhos dos cegos, endireita os encurvados ama os justos, protege os estrangeiros, sustenta os órfãos e às viúvas, mas transtorna o caminho do opressor (Sl 146, 7ss).
A Torá tem seus estatutos, pouco observados, diga-se de passagem, pelos opressores, em favor dos fracos, conforme podemos ver:
Não explore o assalariado nem o necessitado, seja ele um dos teus irmãos, ou o migrante que vive em tua terra, em tua cidade. Pague-lhe o salário de cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e sua vida depende desse salário. Assim ele não clamará a Javé, e em você não será encontrado pecado (Dt 24, 14s).
Solidário com os oprimidos, o Messias assumiria, desde os primeiros dias de sua vida, a condição de perseguido, pobre, migrante e refugiado, quando, ameaçado por Herodes que queria matá-lo, por considerar que ele era uma ameaça à sua posição, foi, com seus pais, esconder-se no Egito (cf. Mt 2, 13ss). Suas práticas são todas elas de misericórdia:
[...] enviou-me (...) para libertar os oprimidos (Lc 4, 18);
A produção deuteronomista, sapiencial e profética do AT forma a base doutrinária da Igreja. Os trechos antigos, os grandes temas sociais das Antigas Escrituras, somados ao Evangelho, Palavra revelada, formam a base para o moderno Ensino Social da Igreja. O que falaram os profetas com veemência, disse Jesus com autoridade e ensina a Igreja com diligência, sem esmorecimentos:
Convertam-se a Javé! Digam-lhe “Perdoa toda a nossa culpa, aceita o que de bom te oferecemos, O fruto de nossos lábios. Não é a Assíria que nos salvará, pois é em ti que o oprimido encontra compaixão” (Os 14, 3).
Escritor, autor de uma centena de livros, entre eles “O Messias dos Pobres” (Ed. Ave-Maria, 1994), e “A fome e o ensino social da Igreja” (Ed. Santuário, 1999). Biblista e Doutor em Teologia Moral. Resumo de uma aula sobre “Ensinamento Social da Igreja” ministrada em São Sebastião do Caí, Diocese de Montenegro - RS (Par. N. S. da Conceição) em agosto 2010. O tema foi exibido (e está disponível) em “power-point” (40 slides).