Zé do Caixão e Durkheim

"Ah, um último favor! Se passares pelo céu, mande lembranças. Mas se teu fim for o inferno, dá o meu endereço ao Diabo!"*

Muito interessante que o maior cineasta de terror do Brasil, José Mojica Marins, nascido em São Paulo em 1936, tenha com seu personagem "Zé do Caixão" encontrado o ponto certo de como mobilizar os elementos típicos do terror brasileiro.

Seu personagem incrédulo, intelectualmente superior, debochando da religião, de Deus e dos bons costumes por si mesmo é algo que até hoje assustaria os brasileiros. A primeira aparição de Zé do Caixão, no filme "Esta Noite levarei tua Alma" (1963), já mostra o elemento estranho vestido de preto, cético e zombador dos medos, credos e dos padrões.

Este personagem, que não invoca nenhuma força sobrenatural como demônios ou magia, causa medo por si mesmo. Não pelo seu sadismo, mas em nome daquilo pelo qual pratica o mal. Relativiza o que chamamos de bondade e se esforça em mostrar como hipocrisia e ignorância o que chamamos de bom senso ou bondade.

Tão seguro se encontra do que em nós chama de superstição e ignorância que zomba sem piedade e seguro da crítica que faz. Seu ar arrogante e superior nos mostra o nosso lugar: o de alguém que não alcançou como ele a elevação do espírito.

"O povo continua o mesmo: ignorante, supersticioso, inferior. Mas a verdade será aceita. Ainda que para isto seja necessário fazer seus olhos verterem lágrimas de sangue!"*

A cidade pequena, interiorana, é o cenário de contraponto do personagem. Símbolo da religiosidade e tradicionalismos mais arraigados. É onde a figura cética, ateia e blasfemadora poderia provocar maior assombro. Da mesma forma na sequência "Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver"(1967).

Zé do Caixão já começa o filme nos avisando de sua filosofia do sangue. Não há nada além da vida, a morte é o fim da vida, a vida é sangue e reprodução é uma forma de eternidade. Busca a eternidade através de um filho perfeito de um ventre de uma mulher inteligente, cética e indiferente à morte.

Reduz a nossa existência a de tantos outros animais, como ele mesmo diz, somos tão bichos como qualquer outros. O sentido da vida é a reprodução e não os seres invisíveis aos quais os seres humanos comuns dedicam sua existência e temores.

Zé do Caixão encarna o medo do brasileiro médio. O medo de uma vida sem um sentido além da sua carne. O medo do isolamento social que a crítica contumaz faz à hipocrisia e pequenez do cotidiano pode nos causar. Medo de admitir seus podres, sua violência e seus desejos que a vida comunitária não permite sem ser dela expulso e estigmatizado.

Zé do Caixão desafia Deus constantemente, come carne na Sexta-feira da Paixão, sai de casa a noite no dia dos Finados e desafia assombrações e demônios em cemitérios a noite. Ele faz o terror com elementos típicos da nossa cultura, mas sem fazer disto bandeira de algum nacionalismo cinematográfico, tudo se insere espontaneamente sem levantar bandeira de coisa alguma.

Como dono de uma funerária, Josefel Zanatas, vulgo Zé do Caixão, se insere naquela sociedade interiorana fazendo o que ela mais teme e ele o que menos teme que é lidar com a única certeza que é a morte. Ao mesmo tempo ele cativa o público, pois é um personagem autêntico, conhecemos suas motivações e entendemos seus propósitos. Tememos o que ele poderá fazer e o que poderá sofrer por suas ideias.

Zé do Caixão é nosso sadismo e descrença que não podemos dar vazão, pois estamos presos a compromissos, valores e fidelidades. Ele não se encontra preso a isto, é um homem isolado e indiferente ao social. Não há nada que possa detê-lo, sabendo disto tudo o que ele faz se torna natural e por isto assustador.

A caixinha de música que ele aciona enquanto sua vítimas agonizam, tocando "Tico Tico no fubá" contrasta com a música de fundo fúnebre, realçando a indiferença diante da dor e da inocência. E mesmo mostrando sua impaciência com a cena que não lhe causa nenhum remorso.

O personagem se tornou muito carismático entre as pessoas. A empatia com sua figura ocorre pela familiaridade, lida com medos e valores muito conhecidos por nós. E fundamentalmente nos o perdoamos de antemão, pois ele não destrói a sociabilidade ele a despreza. É um ser independente de laços e a trajetória de um ser destes não deixa de nos causar certo assombro e admiração, pois não temos este poder.

Encantados e assustados com seu poder, vemos onde isto vai parar. Quando ele desafia Deus e os demônios, temos medo e pena. Quando nossos temores se realizam para ele também, temos pena, algo que "sabíamos que ia dar nisto".

Zé do Caixão se mostra entre o ceticismo que lhe confere poder e arrogância e crises de consciência que o atormentam severamente. Seus crimes acabam sendo punidos pela sua consciência e pelos delírios que tem com fantasmas e assombrações.

Uma velha bruxa o avisa dos perigos de seus abusos e da punição que haverá de ocorrer, ela nos fala o que sempre ouvimos: cuidado com a descrença, com a dúvida e com o desrespeito com as coisas sagradas e misteriosas.

Zé do Caixão de alguma forma nos engana, tenta nos convencer da legitimidade do mal que pratica e da descrença que prega aos quatro ventos. Não deveríamos nem estar ali ouvindo isto. Mas damos corda, queremos saber até onde vai isto e se acontecerá alguma punição divina.

Até que nos vemos junto com ele. O filme não deixa claro se há alguma força realmente divina ou se é fruto de algum delírio do personagem. Ele acaba sendo punido de uma forma ou de outra, mas pela sua descrença ou pela ação sobrenatural? Não importa a fonte, ele é punido pela consciência pesada que se materializa nas visões da Procissão dos Mortos e de assombrações daqueles que ele matou.

Podemos pensar até que ponto o indivíduo pode se emancipar da sociedade sem se ver atormentado pelos laços que rompeu com a mesma? Afinal, ele mata a esposa, o amigo e é responsável indiretamente pelo suicídio da mulher que escolheu como progenitora de seu filho. Rompe necessariamente com os laços com os quais estabeleceu maior profundidade.

Zé do Caixão acaba nos ensinando, que tirando as convenções e hipocrisias, que podemos romper com autonomia intelectual e reflexão, aqueles laços mais íntimos se tornam tão parte de nós que é impossível rompe-los sem romper com algo dentro de nós. Sem sofrermos a tormenta de uma existência que não pode ser puramente individual sem desestruturar nosso próprio "eu" que se constitui por estes laços.

Se estava certo o que disse o fundador da sociologia Emile Durkheim, de que a sociedade é o império dos mortos sobre os vivos, no sentido dos valores, crenças e formas de vida que deles herdamos, Zé do Caixão confirma a seu modo isto.

Em sua obra mais importante, O Suicídio, Durkheim procura demonstrar como algo aparentemente individual ou psicológico que é o suicídio tem seus fundamentos na forma como o indivíduo esta ligado a sociedade.

O seu "eu" se constitui das relações sociais que aprende e assimila na vida social, se esta muda diante de uma crise econômica ou mesmo um divórcio, as chances do indivíduo não se reintegrar nas novas condições aumentam as chances de que a vida para ele perca o sentido - suas expectativas, valores e modos de ser se projetam para um nada, para algo que já não existe mais.

Chamava este tipo de suicídio de anômico, pois derivava de uma ausência de normas internalizadas desta nova sociedade ou novas relações que se estabeleciam. As situações de crise e mudanças repentinas criam situações de incertezas e indefinições responsáveis pelo vazio, ansiedade e desespero diante da nova situação.

Aquele indivíduo que se afasta da sociedade, desprezando as relações sociais, não encontrando nela algum valor ou propósito, pode igualmente ser vítima de suicídio. Este tipo que o autor chama de egoísta, pois a medida em que se distancia da sociedade principalmente internamente, suas ações e pensamentos perdem sentido.

Isto ocorre pelo fato do outro ao qual projetar suas preocupações e expectativas se tornar cada vez mais ausente e distante. Não há quem possa entender ou a quem interessa compreender, perde-se o sentido da vida e de tudo que se sabe e pode ser feito.

O Zé do Caixão não foi um suicida e nem Mojica pretendeu dar uma aula de sociologia com seu filme. O filme foi mais rico do que isto, pois explorou o terror mobilizando a dependência dos laços sociais, dos mais formais aos mais íntimos.

Os Fatos Sociais se constituem, o objeto de estudo da sociologia segundo Durkheim, se constitui de um caráter coletivo, coercitivo e geral em uma sociedade. É coletivo por não ser obra de um indivíduo, mas produto de gerações de homens e diversos homens vivendo em sociedade. É geral por que só tem seu valor enquanto algo que se aplica a qualquer situação e não algo concreto. É coercitivo por exercer de diversas formas uma pressão para que as pessoas ajam conforme seus preceitos e normas.

O personagem individualista e criminoso não consegue escapar da punição, pois os laços sociais são eles próprios Fatos Sociais que constituem nossa personalidade. Quando nos perguntamos sobre o que somos e o que queremos é sempre um Outro contextualizado que temos em mente nos avaliar, convencer ou compartilhar nossas expectativas.

Zé do Caixão morre. Porém da forma a diversos mitos, como explicações que formulamos sobre coisas importantes da nossa sociabilidade. Os mitos aparentam tratar sobre deuses e mundos fantásticos, mas antes constituem e operam estas figuras com intuito de interpretar e fundamentar nossos valores, medos e formas de ser.

Não sem motivos também foi na década de 90 recepcionado em outros países onde é conhecido por "Joe Coffin" e ainda referenciado por especialistas em cinema do gênero.

*A Meia Noite Encarnarei no seu Cadáver" (1967)

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 21/12/2018
Reeditado em 31/12/2018
Código do texto: T6532748
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