A cadeira vazia “sem compromisso de retorno”
Um belo dia você acorda e não acha beleza em nada. O céu está azul, o sol reluzente, mas a única coisa que você tem vontade é ficar trancada no seu quarto, em baixo do seu edredom. Você não quer atender o celular, não quer ligar a televisão. Por uma questão orgânica você até faz o desjejum, porém, a geléia de framboesa não é capaz de te dar energia suficiente para “tocar a vida”. O regresso à cama é inevitável. O pranto correndo na tez nem faz sentido, mas você não consegue contê-lo. As pessoas perguntam o por quê de você está apática e você não consegue responder, até se irrita com tanta pressão para que você fique bem, fique feliz. A tristeza não passa, dia após dia a dor aumenta. Um vazio te consome e a vontade de sumir não passa. Qual foi o gatilho que levou a essa situação? Uma briga com o namorado? Uma crise financeira? O peso de morar sozinha? Bulling na escola? Assédio moral no trabalho?
Há inúmeras situações que podem contribuir para instalação de um quadro depressivo (pode ser genético, pode ser um trauma, algum evento doloroso e ainda pode ser como você vê a vida, como lida com as frustações), a causa e o sintoma são importantes para diferenciar subtipos de depressão e também para saber qual melhor tipo de tratamento. Mas o foco deste texto não é depressão em si, mas um dos seus fins: o suicídio.
O tema suicídio ainda é um tabu, porém a série “13 Reasons why” (Os 13 porquês) da Netflix e o jogo Baleia Azul, que teve início na Rússia e atingiu vários países – que incita o suicídio de crianças e adolescentes trouxe o tema para destaque. Quanto a série houve diversas críticas se as crianças e adolescente ou qualquer outra pessoa com transtornos e tendências suicidas deveriam ou não assistir. A série tem seus momentos tensos, mas o suicídio é um tema tão latente e carente de diálogos que a série já pode ser considerada um ponto positivo por trazer visibilidade sobre o tema.
Historicamente podemos perceber o suicídio presente em vários países e com determinados fins. Do século XII ao XIX a prática do seppuku (cortar o ventre) era um ritual suicida que acontecia no Japão pelos guerreiros - destaque para os samurais. Dentre as razões para tal atentado contra a própria vida estão: demonstração de coragem, autocontrole, desonra e rejeitar cair nas mãos do inimigo.
Algumas comunidades hindus praticavam o sati (verdadeira), que consistia na viúva se jogar na pira funerária do marido morto. Atentando contra a própria vida em demonstração de honra, de moral e de mulher honesta.
No século XX temos casos de suicídio como forma de protesto, tática militar e ferramenta de guerra - vide os homens bombas. Não podemos esquecer a prática de suicídio medicamente assistido – eutanásia (boa morte) para os enfermos em estado terminal ou com doença incurável. O suicídio-assistido ocorre em poucos países e carece de mais debates sobre questões éticas, mas também sobre o ator/protagonista da própria vida.
Saindo da visão histórica, romântica e pontual do suicídio, vamos nos ater a autoimolação na atualidade. Como mencionei no começo do texto a depressão pode ser um dos distúrbios da saúde mental que pode induzir ao suicídio, e há vários fatores e situações do cotidiano que podem contribuir para ampliação das amarguras da vida.
A existência no mundo contemporâneo tem sido pesada demais. As cobranças, os grupos, os modos de vida muitas vezes nos conduzem ao isolamento, ao “ostracismo”. Como cantou Renato Russo: Digam o que disserem, o mal do século é a solidão. Não uma solidão do querer estar só, mas uma solidão do “tanto fez, tanto faz”, uma vida niilista, sem perspectivas...sem respostas, sem retornos.
A vida de qualquer ser humano é povoada de problemas, é a justamente nossa capacidade de resolvê-los, de dar respostas, trazer soluções que nos motiva a continuar a jornada. Vou exemplificar com o texto “Carta de adeus” em que o suicida passional (término de relacionamento está em 4º lugar na listagem de causas de suicídio), começa a falar sobre sua dor, sua falta de desejo pela vida. Ele elenca vários problemas que não consegue superar. Vejamos:
Carta de Adeus
Meu caro amigo,
Sinto informar que não anseio mais pela vida, hoje suspiro pela morte e ela por mim. O tormento vem me consumindo dia após dia. Sinto minhas mãos frias e meu coração bate lentamente. Se é dia, se é noite... já não me importa. A amargura na boca virou uma constante. Não tenho mais motivo para habitar esse mundo.
Amei aquela mulher! Amei tanto que hoje sou migalha de mim mesmo.
Ela me deixou no chão, pisou sobre minha cabeça, como São Jorge pisou no Dragão. Não sei viver sem ela. Sem o cheiro dela, sem o corpo... sem a voz.Tormento! Tormento!
Nem mesmo sei como tenho forças para lhe escrever. Mas já que ainda suspiro - divido contigo essa minha dor e meus pedidos que espero que faça depois de minha partida.
Provavelmente, quando esta carta chegar em suas mãos, não estarei mais aqui para poder dar-te o último abraço. Mas desde já, saiba que neste momento mais lamurioso de minha vida, o que eu mais gostaria de fazer era dar-te um abraço forte, mas ao mesmo tempo singelo.
Minhas mãos estão fracas, frias e como não me alimento há dias já não tenho tido bom reflexo nem mesmo para escrita, mas convenhamos, essa é minha carta de adeus, que seja mal escrita, como foi a história da minha vida.
Pensei em algo mais trágico, tipo cortar os pulsos. Mas tu bem sabes que não sou chegado a dor, ver meu sangue gotejando seria cruel demais. Cogitei a ponte. Você deve pensar: Ele iria parar todo o trânsito da Rio-Niterói e não ia se jogar. Pois está certo, não iria mesmo. Só de parar o carro no acostamento me deu nauseas. Até tomei alguns calmantes, para tentar morrer dormindo, mas você acredita que o máximo que consegui foi dormir um dia inteiro?
Pensei tanto num suícidio banal, que esqueci que o pior suícidio é aquele do dia-a-dia, aquele que morremos aos poucos, aquele que alguns chamam de depressão, de solidão. Aquela vida que deixamos escorrer pelas mãos a cada dia.
Pois bem, não nutri meu corpo por convardia, mas sim por falta de desejo de viver. Assim a vida foi me escorrendo pelas mãos como quando brincávamos na praia de tentar segurar aquela água toda em nossas mãos. Ah! Como a minha infância foi bonita. Boniteza que me alegra até neste triste penar.
Meu caro, não te deixo heranças, aliais como sempre, lhe deixo problemas, mas conforta-te, pois deixo-te os melhores problemas que já tive, aliais os únicos problemas que consegui responder, pois a resposta era tão lógica que não teve jeito. Acertei-cuidei.
Vou começar pelo problema que tem solução. Laura e Maverick agora são teus. Alegra-te homem! Não fique tenso, nem tenha um ataque de fúria. A solução deste problema é amor. Ame-os como eu, ao menos tente. Fale todos os dias que eles são a perfeição. Não esqueça que Maverick gosta de carinho com o pé, mas que Laura tem horror que lhe toquem com os pés. Não deixe minha pequenina bruxa perto de gente, sabes bem que ela odeia esse tipo de mortal. Converse com ela toda vez que voltar de alguma viagem, diga como foi o passeio e ela ficará as boas contigo, depois de alguns dias, é claro. Procure sempre colocá-la embaixo dos cobertores, pode cobrir a cabeça dela, pois ela gosta. Quanto a Maverick, tenha muito cuidado, pois este gosta tanto de gente que pode acabar sofrendo em contato com esse tipo de mortal. Tenho medo que o machuquem ou que ele acabe se perdendo, pois ele confia demais nos humanos. Não deixe de brincar de pique-esconde com ele, mas deixe que ele também corra atrás de você. Ele sabe muito bem, que o prazer tem que ser para ambos. Quando ele ficar miando demais, resmungando, é porque você precisa parar e conversar com ele. Se não fizer ele vai ficar miando até você dialogar com ele, então polpe tempo e logo que ele começar a resmungar dê atenção.
Dio santo! Poderia ficar a noite toda aqui, te relatando como agir com meus companheiros de uma vida. Mas pensando bem, venha me visitar com urgência. Desisti de morrer, vou comer um bom miojo. Não estou preparado para deixar meus gatos e muito menos eles estão preparados para viver sem a minha pessoa por perto.
Estou te aguardando.
S.W.
Podemos observar em “Carta de Adeus” que apesar dos problemas, o possível suicida consegue se agarrar em algo que lhe motiva a viver: o cuidar de seus gatos. Estimular pessoas com pessamentos suicídas a se comprometer com algo que depende delas é muito importante. Muitas vezes não adianta dizer que todos a amam, que estão ali para ajudar. É preciso dar significado a vida da pessoa que não vê mais sentido nas relações afetivas, no trabalho, nos estudos, enfim na vida.
Ao acompanhar grupos de apoio on line para suicidas, pude perceber que muitas pessoas falavam que o que as mantinham vivas eram: filhos pequenos, uma mãe doente que precisa de ajuda ou um ente que precisa de cuidados. Quando S.W. percebe que as consequências da sua autoimolação vão esbarrar nos seres que tanto ama e cuida, ele muda de ideia e pede apoio. E o apoio é peça chave para ajudar pessoas com tendências suícidas. Por falta de conhecimento, muita gente encara a pessoa deprimida como alguém que quer aparecer, que não tem motivos para se isolar. Mas cada um lida de uma forma com as dores do mundo.
A falta de tolerância as frustações da vida é um dos gatilhos que levam a depressão. Em “13 Reasons why” o personagem Hannah Baker tenta ao máximo se enquadra com os grupos da escola. Ela vai a festas, participa de grupinhos seleto, ajuda os pais na farmácia da família, trabalho num cinema etc. Isso foi uma grande sacada dos autores de não trazer o personagem esteriotipado de suicida. Hannah tem seus momentos de crises/tristeza, mas não se isola literalmente. Ela consegue interagir até mesmo com seus “carrascos”.
O personagem Clay Jensen (Capacete) ao longo da temporada demonstra traços de apátia, de isolamento e falta de enquadramento no grupo escolar, assim como a personagem Skye que demonstra os mesmos traços. Provavelmente, seriam encarados como alunos-problema que necessitam de acompanhamento. Ele fazendo a linha mais “certinho-isolado”, e ela “rebelde-isolada”. Note que esses dois personagens tem muito a nos desmistificar sobre os esteriótipos criados em torno desse tema.
Voltemos a Hannah. Sua necessidade de ser aceita, sua preocupação com o que os outros pensam sobre ela, sua constante buscar por amizades marca um momento de mudança tanto física quanto psicológica. E quando as coisas não saem do jeito que ela sonhou, planejou... Vem a frustação. Isso já é destacado no primeiro episódio da série quando o primeiro beijo acontece com Foley numa praça e não foi como ela idealizou. Também podemos perceber sua frustação quando Alex Standall e Jessica Davis começam a namorar, ela não soube lidar com o relacionamento dos seus melhores amigos. Os problemas vão surgindo e Hannah demonstra muita dificuldade em lidar com eles, não vê solução. Ela não se percebe projetando em demasia nas pessoas e situações.
As juventudes contemporâneas tendem a projetar e idealizar, não lidam bem quando as coisas acontecem de forma diferente do que previam. A falta de um “plano B” e o ideal de perfeição tendem a aumentar os impactos ao lidar com os problemas cotidianos. A geração que nasceu no final do século XX e começo do XXI, já nasceu num mundo em que os avanços tecnológicos voltados para informação e comunicação fazem parte da vida humana. Um mundo onde a exposição faz parte do dia-a-dia. E não é facil ser adolescente e jovem num mundo cibernético; as cobranças nefastas das redes sociais pode desencandear em vários transtornos.
Hannah apresenta indícios de transtornos psiquiátricos de depressão, paranóia e também apresenta sintomas disfuncionais. No entanto, dois pontos foram cruciais para que ela desse cabo da própria vida. O 1º foi estupro sofrido durante uma festa. O coito forçado é uma agressão capaz de devastar o psicológico de uma mulher, que dirá de uma adolescente. No mundo inteiro há relatos e até filmagens de meninas que fizeram autoimolação por conta de estupros - estes muitas vezes causados por familiares ou amigos da família. O 2º e talvez o gatilho principal do suicídio de Hannah B., e que não está na lista dos 13 porquês, mas o qual, julgo ser o motivo que a levou a não querer nenhum retorno, a não deslumbrar nenhuma solução, foi a perda do dinheiro dos pais quando foi realizar uma operação bancária.
Quando Hannah perde o dinheiro do aluguel da loja da família (única fonte de renda deles), prontamente não está mais na ésfera dos seus “carrascos”. Era um fato ao qual ela estava causando mal para outros. A sensação de culpa é tão grande que lhe consome até levá-la a autoimolação.
A Cadeira Vazia
Imagino o cenário...
Ela estava na beira da cadeira
Debruçada sobre a mesa, lamentando manso
Um choro que não explode, nem acomoda,
Ela estava abancada na beira da cadeira,
A contemplar o vazio, um olhar perdido
Sobre a mesa um artefato metalizado e alguns livros
Espoliados livros folheados ao acaso como se as letras que moram neles
não fizessem para ela nenhum sentido
Ao seu lado havia uma garrafa de água, meio cheia, meio vazia
Tal qual seu coração – “tanto faz, tanto fez”
Suas mãos titubeantes, seus olhos rasos
demonstravam tamanha tristeza
Sua tez macia, suas unhas vermelhas...
Uma bela dama!
Despertou desejos e sonhos maliciosos
Mas naquele dia o brilho esvaneceu.
E assentada na beira da cadeira, transbordava amargura
Ela levantou!
Ergueu seus olhos melancólicos, suspirou bravamente,
Por um segundo sentiu-se inteira, redentora do seu maior pecado: amar.
Ela abriu seus lábios e começou a falar, como quem fala com o próprio inimigo
Seu olhar rude, como de um pai que nunca bateu no filho
Isso me arrepia.
A cadeira vazia, a espera de alguém para sentar
A mulher na janela vendo o mundo girar
Inertes num mundo ligeiro...
Inertes...sem sentido
As mulheres e as cadeiras, com suas pernas abertas se assemelham.
Será este o pensamento dela? Tão ferida, tão sentida.
Ela voltou para cadeira.
Cobriu seus olhos com mãos, com as unhas vermelhas
Depois toucou seus lábios espalhando o batom raivosamente
(Posso vê-la chorar)
Lamúrias incessantes,
Olhos vermelhos,
Coração latejando,
Livro fechado,
Telefone desligado,
Um engodo na garganta,
a garrafa no chão,
(Não!)
O punhal.
As roupas cintilando rubro,
Os olhos fundos,
A garganta seca,
A cadeira vazia...
O suicídio não é um ato de coragem ou de covardia. É a finalização de uma história que poderia ter outro tipo de final. Como disse o escrito e produtor de cinema Phil Donahue: Suicídio é uma solução permanente para um problema temporário.