Dúvidas e acertos (publicado originalmente em 25/2/2014)
Ao ver ‘Gravidade’ (2013) pensei: é o melhor filme da temporada. Então, dias atrás vi ‘Ela’. E agora estou em dúvida. Afirmar ser a fita a obra-cabeça é um erro. Spike Jonze, o diretor, rodou dois destes em sequência há alguns anos: ‘Quero Ser John Malkovich’ (1999) e ‘Adaptação’ (2002). ‘Onde Vivem os Monstros’ (2009), outro trabalho seu, também é nesta linha, mas nem tanto. Este ‘Ela’, que Jonze inclusive roteirizou, pode-se dizer ser uma divisão no tema. Há, claro, as histórias dos futuros, com sistemas revolucionários, carros voadores... ‘Metrópolis’ (1927), de Fritz Lang, tem este sal, e de certo modo igualmente angariou discussões, perturbações, rixas, debates. Apavorei-me ao ver ‘Ela’. A trama é perfeitamente palpável. Os fatos exibidos ali acontecerão mais dia, menos dia, se é que já não acontecem. Seremos todos Theodore, personagem espantosamente bem feito por Joaquin Phoenix?
O Theodore em questão tem emprego similar ao de Dora -Fernanda Montenegro-em ‘Central do Brasil’ (1998): é escrevedor de cartas. Isto, todavia, nas últimas décadas do século 21. Totalmente digitalizado, o sistema das epístolas funciona pela voz e agrega sentimentos às mensagens, a maioria delas de amor. Seu trabalho é nada estafante, porém, solitário –na vida pessoal, está se separando da esposa Catherine (a atriz Rooney Mara, irreconhecível na pele de ‘mulher normal’ após ‘Os Homens que não Amavam as Mulheres’, 2011). De repente, o moço vai a um lançamento: sistema operacional praticamente humano. Adquire-o. Logo no primeiro contato entre ambos, a simpatia do computador o seduz: a voz é de ninguém menos do que Scarlett Johansson e tem nome, Samantha. Passo a passo, Samantha e Theodore começam a se relacionar. A paixão do século 21 posta à prova. À nossa prova. Existe ainda Amy (Amy Adams), a melhor amiga do protagonista. Eles se gostam, mas são distantes.
‘Ela’ discute a tecnologia a (des) serviço do homem moderno. Até que ponto ela atrapalha ou ajuda? Os limites da independência do homem estão ameaçados por conta dos computadores? Estas e outras questões são distribuídas aos espectadores e eles, o público, decide qual caminho trilhar. As páginas do script deixam claro a opção de Jonze: escolha a informática, porém, faça dela sua parceira e não sua dona. Isto pode soar um enorme clichê e é. Entretanto, o diretor nos espanta do modo que nos mostra a resposta. Phoenix está soberbo em cena. Assim como Tom Hanks em ‘Capitão Phillips’ (2013), sua indicação ao Oscar de ator era obrigatória e foi por terra. Injusto. Comparo o trabalho de Phoenix e dois outros seus: o fotógrafo com distúrbios Freddie, de ‘O Mestre’ (2012) e Johnny Cash, de ‘Johnny & June’ (05). Um pouco atrás está o maníaco Commodus, de ‘Gladiador’ (2000). Depois de se aventurar em filmes discutíveis, como ‘Sinais’ (2002) e ‘A Vila’ (2004), ele parece ter se achado.
Theodore se comunica com Samantha por meio de um ponto eletrônico. A ‘moça’ o auxilia e organiza agenda, por exemplo. Leva-a a passeios com amigos. Num momento impactante do longa, Samantha sugere ao parceiro uma relação sexual. A tanto, contata uma mulher pra ir ao apartamento dele, e ela, mulher real, não pode falar, demonstrar nada (também guiada pelo sistema operacional). Mais um ponto positivo é o cenário. O lugar onde Theodore mora é repleto de amplas janelas, vidros grandes e deles se vê a cidade imensa. Há espaço e a movimentação dos personagens é facilitada pela ‘solidão’ da ausência de móveis. A película, além de filme, roteiro original, foi finalista nas categorias trilha sonora, canção original (‘O Som da Lua’, cantada por Scarlett Johansson e Joaquin Phoenix) e a direção de arte. A sua maior chance está exatamente nas partes musicais, e sobretudo na de canção.
‘Ela’ é o ‘1984’ do século 21. Nós somos condenados a eternamente tentarmos nos esconder e nunca conseguir. Interatividade à flor da pele, vide o jogo de videogame de Theodore: o boneco fala e se comunica com o dono toda vez, e lhe dá broncas homéricas. Xinga-o. O protagonista ri. No fim, de fato, quem rirá por último? A dúvida de Jonze é imposta a todos nós, seres humanos, computadores.