“Di Glauber” (publicado originalmente em 12/9/2007)
“Agora, o pintor do Catete é apenas uma rua na Barra”. Esta é a frase de entreatos do rebuscado e muito autoral documentário “Di Glauber” (1977). É uma fita praticamente inédita entre os quatro e tantos outros cantos varonis, mas tive acesso a ela recentemente. Ávido fã incondicional de Glauber Rocha que sou, não perdi a oportunidade de reverenciá-lo novamente. De certo, o curta-metragem de apenas 16 minutos chama-se, denominado pelo próprio Glauber, “Ninguém assistirá ao enterro da tua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera, foi sua companheira inseparável”. O filme está “proibido” no Brasil desde meados de 1979, devido a reclamações da família do pintor de mulatas. O cineasta e ele haviam feito um tratado macabro: quem morresse primeiro, faria do seu talento a prova da amizade. Se o diretor baiano fosse antes de Di, este iria ao velório e pintaria Glauber para, assim, o eternizar em sua homenagem. Como o mestre da tinta se foi antes, coube ao gênio do cinema seguir os movimentos fúnebres do amigo amestrando seu principal objeto de trabalho: a câmera filmadora.
A frase inicial do parágrafo anterior foi publicada em um jornal captado pelos olhos de Glauber Rocha. “Di Glauber” é cheio de poemas otimamente lidos pelo diretor. Como sua característica, a fita dá-se a impressão de ser feita bastante às pressas, com cortes mal-feitos e figuras um tanto confusas em meio ao filme, como o ator Antônio Pitanga (pai da Camila) dançando em frente a telas de Di. A música não pára um segundo, tal qual a fala de Glauber. O som varia de “O teu cabelo não nega”, a valsas de Villa-Lobos, a outra com tom de cemitério, a cada vez que a sala do velório de Di surge na tela. É uma consagração da colagem de imagens. Esta sucessão de cores levou, em 1977, na França, o prêmio especial do Júri, presidido por Roberto Rosselini, amigo de Di e Glauber. Na fita, Glauber conta muitas histórias. Surpreende pelo pouco tempo que tem. Ele não cala a boca, literalmente. Tece opiniões políticas, mistura rebeldias contra a família de Di com a biografia do pintor. Enquanto isso, Antônio Pitanga fantasmagoricamente pula em frente à câmera, balançando de maneira frenética...
Em “Di Glauber”, o fundador do movimento ‘Cinema Novo’ lê os textos de Vinícius de Morais (‘Balada de Di Cavalcanti’), Augusto dos Anjos (‘Versos Íntimos’), Frederico de Moraes (trecho de artigo sobre Di Cavalcanti) e Edison Brenner (o anúncio da morte de Di). Vai direto ao soco na boca do estômago ao filmar o rosto apagado de Di. Como ele mesmo relata, na locução: ‘Barba por fazer, calça de brim azul marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons...!’ Isto, antes de serrar algumas veias: ‘Corta! Agora, dá um close na cara dele!’ Sem dó. Os dentes de Di são o toque perfumado dos espantos – estão saltados. As narinas, tapadas secamente com algodões. Tudo no cenário glauberiano. O espasmo tem seu devido valor. Nunca se sabe em qual estágio de nossa vã loucura estamos. De repente, Glauber grita: ‘Vagabundo!! Vagabundo!’ Nada demais. Somente mais um poema registrado pela voz do ‘homem sem claquete’, como disse Arnaldo Jabor sobre Glauber, o labirinto do Brasil. Glauber segue lendo recortes de jornal, contando como conheceu Di Cavalcanti...
É estranho ver os trabalhos de Glauber. São cheios de indicações, como papéis pregados soltos nas paredes, com recados ao léu. Têm o desespero como ingrediente sine qua non. São, não poderia deixar de ser, o espelho do que era a vida dele. Silvio Tendler repetiu o gesto de Glauber em 1981. A data, 22 de agosto, marcou a despedida do ‘pai da modernidade’, ‘crítico ferrenho da Embrafilme’. A morte de Glauber foi completamente catalogada. Igual a “Di Glauber”, a mãe do diretor de “Terra em Transe” (1967), Lúcia Rocha, impediu a exibição do longa “Glauber – Labirinto do Brasil”, lançado 23 anos depois da edição final. Semelhante à obra de 1977, a de S. Tendler possui, com a exatidão de uma calculadora de engenharia, peças ímpares. Mostra como foi passo a passo o transporte daquele corpo gelado, cabelos desarrumados, camisa xadrez, algodões nas narinas. Nada apropriado ao filme de 30 anos atrás. Contestadores, ambos. Mas “Di Glauber” tem a pitada glauberiana. O caos instalado no velório. ‘Não enche o saco!’, berra, quando é mostrada a entrada do caixão de Di no carro preto.