Josué e Ernesto: filhos do mesmo pai (publicado originalmente em 15/5/2004)

Era uma vez, dois meninos, cada qual com seu próprio sonho. Um, desejava erigir todos, e reger o mundo sob a paz edificante. O outro, órfão de mãe antes dos 15 anos de idade, queria apenas ir ao Nordeste (morava no Rio de Janeiro), onde nascera, para conhecer o pai. Histórias distintas, mas com união consolidada por uma pessoa: Walter Salles Júnior. “Diários de Motocicleta” (2004) tem roteiro baseado na bela viagem de Ernesto Guevara de la Serna (o mitificado Che Guevara) e Alberto Granado, amigo pessoal. Che contava 23 anos e viajou praticamente sem rumo e perambulou de galho em galho. Este é o transformador do universo. Já Josué, personagem hóspede das xenodoquias espalhadas neste imenso Brasil, domina “Central do Brasil” (1998). Perde a mãe, que morre atropelada, e, com ajuda de uma “escrevedora de cartas”, Dora, parte rumo ao recôndito. Quer abraçar o pai.

Para aqueles que assistiram “Central do Brasil”, sabem o fim melancólico e quase desleal (à criança, interpretada por Vinícius de Oliveira) do coitado Josué. “Diários de Motocicleta” é mais ou menos igual. Conhecemos o desfecho do enredo: Che, 13 anos depois de patinar por aí, morre fuzilado pelo exército boliviano. A película mais recente de Salles expõe todos os nossos delírios de um planeta sem desavenças e execuções sumárias. Na garupa de uma cândida e reles moto, nos sentimos fortes o suficiente para ajeitar rapidamente qualquer problema que nos surja de uma hora para outra. Em dezembro de 1951, data do início do périplo aventureiro, Ernesto, nascido na Argentina, estava sem barba. Descendente da classe média, junto com Granado pega o veículo de duas rodas e começa o quilômetro infinito. Pouco tempo após darem a partida, a moto quebra e a dupla segue a pé ou, quando encontram boas almas nas estradas, de carona.

Guevara e Alberto são encarnados pelos atores Gael Garcia Bernal e Rodrigo de la Serna, respectivamente. Tal como os intérpretes da fita de 1998, dão show. Os dois deparam-se com situações revoltantes e tentam acalentar as pessoas de vida paupérrima dos locais, como colônia de leprosos na Amazônia peruana. Enfrentam esse arfar dramático e prosseguem vendo muitas realidades. Enquanto isso, o boquirroto Josué atormenta sem trégua a vetusta e venerável Dora. Vão de ônibus e sobem o Brasil. Encaram um motorista de caminhão estranho, trapalhadas da amiga de Dora (Marília Pêra) e sorumbáticas teimosias do insistente menino. Em determinado momento, por favor, eles saem da água para dar uma respirada e sobrevivem amistosamente. O retorno às favas não demora a ocorrer. O pai de Josué, difícil de ser achado, se esconde a cada aproximação. Não propositalmente. São coincidências. A trilha vasta rechaça com o marasmo.

As passadas largas de Che e Alberto acabam em setembro de 1952. Viram a vida face a face. Os estudos predominam daí em diante e o argentino se forma em medicina. Radicado no México em 1955, Ernesto conhece Fidel Castro. Meses depois, embarcam em um iate a Cuba, onde no dia dois de janeiro de 1959 instauram a ditadura que permanece até hoje. Superior aos demais quanto à inteligência e perspicácia, Guevara enxerga a covardia em outros pontos do mapa e vai para o Congo tentar derrubar o presidente, mas fracassa. Respira seus dias finais. Tem consciência disso. Essa ode à trajetória trágica de Che Guevara balança, porém não cai, no “Diários de Motocicleta”. A foto das milhares de camisetas espalhadas pelos quatro cantos da Terra não importa mais. As idéias e pensamentos, sim. O reverso do sentimento de revolta não nos escapa das mãos como água. Aspiramos um “happy end”, sabendo que este não acontecerá.

“Central do Brasil” teve repercussão internacional alta, estupenda. Arrebatou o prêmio de melhor atriz (para Fernanda Montenegro) no Festival de Berlim. Concorreu em duas categorias no Oscar: também na atriz e em filme estrangeiro. Acabou atropelado pela avalanche “A Vida é Bela” (1998), dirigido pelo espevitado e inquieto Roberto Benigni, e Gywneth Paltrow (novata, por “Shakespeare Apaixonado”, do mesmo ano). Iguais possibilidades possui “Diários...”. Até nisso eles são semelhantes. Contudo, não é uma produção autenticamente verde e amarela. Tem suporte do ator e produtor Robert Redford e elenco estrangeiro, algo parecido com “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), comandado por Hector Babenco e ganhador do Oscar de melhor ator com William Hurt (tinha ainda no “cast” Raul Julia e Sônia Braga). No próximo dia 23, poderá levar troféus no Festival de Cannes, França. A famosa Palma de Ouro é aguardada com versos.

“Diários de Motocicleta” é uma co-produção entre ingleses e franceses e as falas são em espanhol. A fita não termina em nove de outubro de 1967, fatídico dia da morte de Che. Longe disso. Causas não faltam: direção respeitada, prestígio internacional e possibilidade verdadeira de abocanhar algum presentinho. Com “Central do Brasil” sucedeu o mesmo. Todavia, Vinícius de Oliveira não emplacou novos bons projetos. Caiu no esquecimento e atualmente, perto dos 20 anos, aparece esporadicamente em peças de teatro de pouca valia. Com Gael Garcia Bernal os fatos são mudados. Ele está, como se diz, na “crista da onda”. Percorreu caminhos diversos e chegou, enfim, ao galarim tão esperado.

No fim dos contos de fadas dos dois garotos, filhos do mesmo pai, o diretor Walter Salles Júnior, a conclusão imperfeita crava-se no chão, imobilizada. A felicidade é gerada na barriga, como os fetos. Os sonhos (carentes ou não) não devem passar de uma noite... Ou viram indigestos pesadelos. As histórias de Cuba e Brasil provam isso.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 16/05/2009
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