A ESTRUTURA METAFÍSICA DO ESPAÇO

     Assim escreveu Pascal:

     
De igual modo, por maior que seja um número, pode-se conceber um maior e ainda que outro ultrapasse o último; e assim até o infinito, sem jamais chegar a um que não possa ser aumentado. E, ao contrário, por menor que seja um número, como a centésima ou a décima milésima parte, pode-se conceber um menor e sempre até o infinito, sem chegar ao zero ou ao nada.
     Do mesmo modo, por maior que seja um espaço, pode-se conceber um maior ainda e mais um que o seja ainda mais; e assim até o infinito, sem jamais chegar a um que não possa mais ser aumentado. E, ao contrário, por menor que seja um espaço, pode-se ainda considerar um menor e sempre até o infinito, sem jamais chegar a um indivisível que não tenha mais nenhuma extensão.
     Ocorre o mesmo com o tempo. Pode-se sempre conceber um maior, sempre um último e um menor, sem chegar jamais a um instante e a um puro nada de duração.
     Numa palavra, isso quer dizer que por maior que seja o movimento, o número, o espaço, o tempo, sempre há um maior e um menor, de modo que todos eles se sustentam entre o nada e o infinito, estando sempre infinitamente distantes dessas extremidades.
Todas estas verdades não podem ser demonstradas e, no entanto, são os fundamentos e os princípios da geometria. Mas como a causa que os torna impossíveis de demonstração não é sua obscuridade, mas, pelo contrário, sua extrema evidência, essa falta de prova não é um defeito, mas antes uma perfeição.
(PASCAL, 2006, p. 24,25).

     Partindo dessas considerações de Pascal, cabe questionar se o espaço é infinito ou não. Para Aristóteles, o infinito só poderia existir como potencial e nunca como ato, pois um infinito atual deixaria de ser infinito e teria um limite, algo do qual Leibniz discordou diretamente: “... é bem falso que um infinito atual seja impossível.” (LEIBNIZ, 2017, p. 79). Pela noção aristotélica de infinito, o espaço teria que estar sempre avançando, caso contrário, já não seria mais infinito, mas teria termo, conforme nos explica Giovanni Reale e Dario Antiseri :

     
Aristóteles nega que exista um infinito em ato. Quando fala de infinito, entende sobretudo “corpo” infinito. E os argumentos que apresenta contra a existência de infinito em ato são precisamente contra a existência de um corpo infinito. O infinito só existe como potência ou em potência. Infinito em potência, por exemplo, é o número, porque é possível acrescentar a qualquer número sempre outro número sem chegar ao limite extremo, além do qual não se possa mais andar. Também o espaço é infinito em potência, porque é divisível ao infinito, e o resultado da divisão é sempre uma grandeza que, como tal, é ulteriormente divisível. Por fim, o tempo também é infinito potencial, pois ele não pode existir todo junto ao mesmo tempo, mas se desenvolve e aumenta sem fim. Aristóteles, nem mesmo longinquamente, entreviu a ideia de que o infinito pudesse ser o imaterial, precisamente porque ele relacionava o infinito com a categoria da “quantidade”, que só vale para o sensível. E isso explica também por que ele acabou por referendar definitivamente a ideia pitagórica de que o finito é perfeito e o infinito é imperfeito. (REALE e ANTISERI, 2003, p. 209).

     Mas se o espaço está avançando, ou, em termos aristotélicos, tem a potência de avanço, o que deve estar para além dele carrega a propriedade de ser ocupado ou preenchido pelo espaço que se aproxima e ao mesmo tempo não pode ser já um espaço em si mesmo.
     Os filósofos pré-socráticos não tinham uma palavra para expressar o conceito de espaço, não tinham o espaço como uma categoria do conhecimento, o que faziam era opor o vazio ao cheio, cabendo ontologicamente ao vazio o não-ser, o que equivale ao nada. (SANTOS, 2018, p. 69). Mas mesmo um espaço vazio continua sendo um espaço, mais ainda, um espaço vazio nem de longe pode ser equivalente ao nada.
     Nem mesmo essa suposta região para onde o espaço potencial aristotélico avançaria pode ser efetivamente um nada, pois o nada não só não pode ter localização (topos) como também não pode ter existência, haja vista que o nada é a negação do ser, o nada não tem qualquer resquício ontológico em si mesmo, a tal ponto que sequer pode ser concebido pelo intelecto humano, conforme lemos em Mário Ferreira dos Santos :

     
Falamos tanto no nada e o representamos como a ausência de alguma coisa, por isso o seu conceito é vazio, porque não podemos ter dele uma representação, mas apenas a representação da ausência de alguma coisa.
     Podemos suprimir uma coisa, este quarto, por exemplo; aceitamos como nada este quarto, mas aceitamos esta casa. Prossigamos suprimindo a casa, nosso país, este planeta, o mundo solar, o nosso universo, até aqui podemos representar essas ausências, mas, quando quisermos suprimir tudo ,tudo, para não restar nada, então sentimos que dentro de nós algo se rebela. Algo em nós aceita esse nada como impossibilidade. Não é só nosso espírito que não o concebe, mas é nosso próprio ser que opõe. Nós temos a patiência da existência. Tanto nosso espírito se detém como se detém nosso ser. Não podemos aceitar o nada absoluto. Ele é para nós uma impossibilidade. Mas sentimos também que nosso raciocínio nele não pode penetrar; é o nada algo que para nós escapa como conceito. [...] Dizia Kant que nos “é impossível representar que não há espaço, embora possamos muito bem conceber que não há objetos nele”.
(SANTOS, 2018, p. 250, 251).

     O que seria, então, esse algo que está para além do espaço e que sustentaria o infinito potencial do espaço, mesmo sem ser, ele mesmo, o próprio espaço, e que, estando também para além do espaço, não seria, por isso, passível de localização espacial? Ora, tal coisa é absurda e não existe, um limite para o espaço teria que ser outra coisa diversa do espaço; se fosse parte do espaço, não seria outra coisa, mas ainda espaço. Mais ainda, o limite do espaço teria uma localização, um topos, e uma vez ubiquado, teria, então, uma localização espacial. Admitida a infinitude do espaço, tem-se que ele não possui limites nem internos nem externos, ideia que se aproxima em muito do á-peiron de Anaximandro:


     O termo usado por Anaximandro é á-peiron, que significa aquilo que está privado de limites, tanto externos (ou seja, aquilo que é espacialmente e, portanto, quantitativamente infinito), como internos (ou seja, aquilo que é qualitativamente indeterminado). Precisamente por ser quantitativa e qualitativamente i-limitado, o princípio á-peiron pode dar origem a todas as coisas, de-limitando-se de vários modos. Esse princípio abarca e circunda, governa e sustenta tudo, justamente porque, como de-limitação e de-terminação dele, todas as coisas geram-se a partir dele, nele consistem e nele existem. (REALE e ANTISERI, 2003, p. 19, 20).

     Fazendo uma analogia com o tempo, não encontramos dificuldade em concebê-lo na esfera do infinito, pois ao negar a fluidez temporal, nos deparamos frontalmente com o conceito de eternidade. Dito de outro modo, podemos facilmente conceber a transcendência do tempo como sendo a eternidade. Segundo Boécio, “a eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”. (BOÉCIO, 2012, p. 150). Mário Ferreira dos Santos (2018, p. 212), lembrando Kant, dizia que a eternidade é a negação do tempo, não um presente sem fim, o que, por sua vez, vem a ser eviternidade e não eternidade. “Muitos consideram o tempo uma parte da eternidade, como se a eternidade fosse um tempo sem fim. Não; a eternidade é oposição do tempo, é negação do tempo.” (SANTOS, 2018, p. 211). O filósofo brasileiro considera ainda que a eternidade é a atribuição conferida ao tempo dos atributos pertencentes ao espaço, ou seja, como no espaço as formas materiais existem simultaneamente e no tempo há uma fluidez que impede a existência simultânea dos momentos, especializar o tempo seria conferir a ele uma “tridimensionalidade”, dar a ele a posse de uma existência simultânea de todos os momentos.

    
 Entre o passado e o futuro, temos o presente. Cada instante que passa substitui o instante passado. É essa a característica que distingue o tempo do espaço, porque, no espaço, há acumulação, coexistência. No tempo, um instante não coexiste com o outro; um instante substitui o outro. Não podemos reverter o tempo, tornar o passado para o presente e este para o futuro. No espaço, ao contrário, podemos medir um corpo, vê-lo, apreciá-lo de um lado para outro, porque há simultaneidade e reversibilidade. Pois bem, a eternidade seria um presente constante, um presente coexistente em todas as suas faces: um tempo em que os instantes coexistem, são simultâneos. A razão, para compreender o tempo, precisou espacializá-lo, e assim medi-lo. [...]
     Para negar o tempo, que é mutável, corredio, fluente, a razão construiu o conceito de eternidade, como a espacialização absoluta do tempo.
(SANTOS, 2018, p. 211, 212).

     Assim, é possível ao entendimento dar esse salto qualitativo e conceber uma estrutura que transcende o tempo conforme o experienciamos, embora tenhamos ainda alguma dificuldade em assimilar como a eternidade contém ações e eventos que acontecem em uma sucessão de momentos dentro dela ao mesmo tempo em que transcende a duração temporal. Ou seja, os modos do tempo, conforme Kant expôs em sua Crítica da Razão Pura, a simultaneidade e a permanência, também se encontram na eternidade. Mas essa dificuldade de articulação do pensamento é superada quando inserimos o tempo, tal qual o experienciamos, também na eternidade. Ora, o que transcende abrange, e o que abrange contém. Dessa forma, nos colocamos como partícipes da eternidade e enxergamos a ela não como algo que está para além da nossa experiência, mas que também está nela. Em termos escolásticos, ela não é só transcendente, mas é também imanente. Logo, ainda que estejamos vivendo na eternidade, ela se coloca para além de nossa experiência no justo ponto em que transcende as escalas de duração, passado, presente e futuro, e toma para si não só a negação dessa escala perceptiva, mas também a posse simultânea de todos os momentos.
     O que proponho é que as mesmas propriedades, imanentes e transcendentes, sejam aplicadas à investigação acerca da natureza do espaço. Em primeiro lugar, cabe ratificar uma ideia anterior que tive sobre o espaço, ideia que concordava com Kant quando este disse que, embora possamos conceber a negação do tempo como sendo a eternidade, não podemos conceber a negação do espaço, pois isso seria o nada, e o nada não pode ser concebido, donde cheguei à conclusão de que o espaço tem de ser necessariamente infinito, não havendo nunca um não-espaço, o qual, na filosofia Kantiana, seria o nada.
     Mantendo a ideia de que o espaço é infinito (em ato e não em potência), é justamente a negação do espaço que pretendo revisitar e propor o abandono da ideia de que ela seria um nada, e ao mesmo tempo propor que essa negação é, assim como acontece com o tempo, algo que transcende o espaço e ao mesmo tempo o abarca. Quando se fala do tempo, há a ideia de eternidade para transcendê-lo, mas quando se trata do espaço, ainda não existe termo para fazer referência ao que seria o que pudemos chamar oportunamente de supraespaço. Analogamente à eternidade em relação ao tempo, o supraespaço seria a transcendência de todas as escalas espaciais e ao mesmo tempo a posse simultânea de todas essas escalas. Uma intuição nesse sentido tive quando lia o livro Alice no País das Maravilhas, onde a personagem ora encolhia para se espremer e passar por buracos pequenos e apertados, ora aumentava de tamanho, de acordo com aquilo que comia. Depois de algumas páginas, e de a personagem ter encolhido algumas vezes e aumentado algumas outras, logo perdi o senso da escala normal de tamanho e já não sabia se o tamanho em que Alice se encontrava era pequeno ou grande em relação ao seu tamanho original. Mas a principal pista me veio das teorias relativísticas de Albert Einstein, que coloca o espaço como uma amálgama do tempo, de forma que o acontece a um se reflete no outro. Segundo a relatividade, um buraco negro deforma o tecido do espaço a tal ponto que o tempo também é afetado, de forma que quem viajasse por sua borda veria o tempo passar mais devagar em relação a quem está afastado. Justamente em função de o espaço estar amarrado ao tempo, formando uma quarta dimensão física, é que me pus a investigar se também não ocorre com o espaço a mesma transcendência que ocorre com o tempo quando ele é alçado à modalidade da eternidade.


     Com efeito, não podemos “desimaginar” o espaço ou afugentá-lo do pensamento. Podemos imaginar ou pensar que qualquer objeto desapareça do espaço; não podemos imaginar o desaparecimento do próprio espaço. O espaço é o pressuposto necessário de nossa cogitação sobre a existência ou inexistência de qualquer coisa. (KOYRÉ, 1979, P. 145).

     Mesmo se eu dissesse agora que cheguei ao que na Teologia é tratado como sendo o mundo espiritual, minha ideia poderia cair em desprezo. Mas o conceito de eternidade não é também algo que aponta para o espiritual, para o mundo divino ou, em termos filosóficos, para a metafísica? Acaso essa noção não é compartilhada com a Teologia sem embaraço algum? Não era, por acaso, a metafísica que Aristóteles investigava uma espécie de Teologia? Chegamos, então, ao espaço metafísico, ao supraespaço, àquilo que mais do que transcender o espaço, o sustenta e permite a sua infinitude.
     Do mesmo modo como a eternidade não está só para além do tempo, mas também está nele, o espaço metafísico não está para além do espaço como um invólucro que o contém, mas também entremeia a realidade espacial tal qual experienciamos, em outras palavras, o espaço metafísico é o tear onde o espaço físico é tecido.
     Assim como para um tardígrado — ser que possui uma ínfima extensão e habita aos milhares em uma única gota d’água —, o ambiente no qual vive pode representar um universo inteiro com dimensões extraordinárias, em nossa escala de tamanho, os confins do universo podem explodir nosso senso de grandeza. Um grupo de quasares recentemente descoberto chega às medidas de 4 bilhões de anos-luz de extensão. Considerando que a luz viaja à cerca de 300 mil quilômetros por segundo, seriam necessários 4 bilhões de anos viajando nessa velocidade para ir de uma extremidade à outra desse objeto. A descoberta foi tão desconcertante que chegou a confundir o que o os cientistas tinham por princípio cosmológico. As nossas escalas de experiência comparadas com as dimensões desse objeto nos transformam em míseros grãos de poeira, assim como os tardígrados são por nós considerados. Mas como fica a relação entre um conjunto de quasares de 4 bilhões de anos-luz de extensão e um tardígrado que mede 0,1 milímetros de comprimento? Na prática, é impossível que um saiba da existência do outro, ou pelo menos que a conceba em suas escalas. Deve-se levar em conta, ainda, que um aglomerado de quasares é o maior objeto conhecido até então, havendo a possibilidade bem real da existência de outros objetos no universo que podem transformar esses aglomerados gigantescos em verdadeiros tardígrados cósmicos, assim como podem ser descobertas partículas no reino quântico que transformariam os tardígrados em verdadeiros quasares.
     É interessante frisar que a experiência que cada ser tem em sua escala de tamanho é restrita a essa escala, nenhum ser pode diminuir seu tamanho a uma escala quântica nem agigantar-se a ponto de segurar nas mãos uma galáxia. Mesmo quando uma partícula quântica de um ser ou até mesmo de um objeto está sendo analisada, não há tal salto escalar. A mudança de escala implica necessariamente uma mudança ontológica, ou seja, o ser tem sua forma em determinada escala, quando ele é analisado em escalas quânticas, não é mais o ser que está sendo analisado, mas uma partícula quântica. E uma partícula quântica, por sua vez, se difere ontologicamente do ser ou do objeto do qual ela faz parte. Mesmo pertencendo a um objeto ou a um ser diverso, a partícula quântica não é o próprio objeto em si, isso acontece porque o todo tem primazia sobre as partes, é o todo que confere existência às partes e não o contrário.
     Quando Zenão de Eleia propôs seus paradoxos, como o paradoxo da flecha e o de Aquiles e a tartaruga, ele tratou o espaço como sendo infinitamente divisível. De fato, tal aspecto, embora não limite nossos movimentos, parece ser bem real, pois o espaço pode sim ser sempre dividido por dois sem nunca alcançar uma escala zero, um nada absoluto, assim como pode também ser aumentado, conforme lemos no texto de Pascal na abertura deste pré-projeto. Mas, como já considerado anteriormente, o espaço não pode aumentar em si mesmo, uma vez que não há uma região que seja já um espaço latente em si esperando para ser preenchida pelo avanço do espaço. O que ocorre quando se fala que o espaço pode ser sempre dividido ou multiplicado por dois é uma operação lógica, uma matematização, uma abstração do espaço, porque o espaço em si mesmo não pode ser dividido nem aumentado, como se fosse um objeto extenso que admite fatiamento e ampliação. Zenão estava tratando o espaço como um objeto material e aplicando a ele uma infinitude quantitativa, e é justamente buscando solução para os paradoxos dos eleáticos que Aristóteles iria, mais tarde, diferenciar o infinito potencial do infinito em ato, dizendo que o infinito em ato ou o infinito real não existem, mas só o infinito potencial. Daí, Aristóteles tratar o espaço como infinito potencial, na mesma linha de Zenão, materializando o espaço como um corpo e tratando a sua infinitude como sendo restritivamente quantitativa e não qualitativa. Assim, fica estabelecida a solução aristotélica para o paradoxo do movimento de Zenão, nasce na tradição filosófica uma explicação do por que o movimento de Aquiles permite que ele ultrapasse a tartaruga: a infinitude do espaço seria apenas potencial, não real, e o movimento de Aquiles se dá em um espaço existente em ato, não em potência.
     No entanto, o espaço já contém em sua estrutura a infinitude em todos os polos de escala, independentemente de operações matemáticas ou de potencialidade, ou seja, ele não é só quantitativamente, mas também qualitativamente infinito. É justamente por isso que o paradoxo de Zenão não se verifica na realidade: quando nos movimentamos, não percorremos distâncias infinitamente pequenas, mas o fazemos sempre em nossos domínios escalares. E nem por isso o infinitamente pequeno e o infinitamente grande deixam de existir, ou passam a existir somente em potência, o que acontece é que a experiência de cada ser se desenrola em sua estrita escala espacial, ou seja, para darmos um passo, não partimos da escala quântica até atingirmos nossa escala de experiência, mas sempre partimos e terminamos nossos movimentos em nossos domínios escalares, pois o espaço é também, e principalmente, qualitativamente infinito. A respeito da independência do espaço frente às matematizações arbitrárias do pensamento, assim escreveu Alexandre Koyré, citando as cartas de Samuel Clarke a Leibniz, quando ambos discutiam sobre a natureza do espaço:


     O espaço ocupado por um Corpo não é a extensão daquele corpo, mas o corpo extenso existe nesse espaço.
     Não existe espaço limitado; mas nossa imaginação considera no espaço, que não possui limites nem pode tê-los, a parte ou a quantidade que ela julga conveniente considerar.
     O espaço não é uma Qualidade de um ou de diversos corpos, nem de qualquer ser limitado; não passa de um Sujeito para outro; mas é sempre e sem variação a Imensidão de um Ser imenso, que jamais deixa de ser o mesmo.
     Os espaços limitados não são propriedades de Substâncias limitadas; são apenas partes do Espaço infinito em que existem as Substâncias limitadas.
(CLARKE, 1715, p. 301 apud KOYRÉ, 1979, p. 251).

     As respostas para entender a realidade têm sido procuradas em extremos escalares do espaço: a cosmologia lança seu olhar para os confins do universo; a física quântica para o que há de menor tamanho na realidade, pelo menos para o que de menor pode se percebido pelos métodos e aparelhos disponíveis. Ora, se o supraespaço for mesmo uma analogia da eternidade, onde há a posse simultânea de todos os momentos, haveria nesse supraespaço não só a posse simultânea de todas as dimensões escalares, mas principalmente, haveria um transcender dessas escalas, de tal forma que as escalas seriam efetivamente desprezadas. Assim, se as escalas podem mesmo ser desprezadas na busca por respostas quanto à natureza do espaço e da realidade onde se desenvolve nossa experiência, então as respostas estão, também, na nossa própria escala de experiência. Assim como experienciamos a eternidade por estarmos contidos nela vivendo no tempo fluídico, também experienciamos o supraespaço vivendo nesta exata escala de tamanho espacial. O mesmo sustentáculo metafísico que há no macro e no micro há também em nossa escala. Se o espaço é infinito para maior e para menor, sem nunca tocar em seus extremos, não podemos nem dizer que estamos na escala absoluta, ou no meio do caminho, mas somente podemos dizer que algo é pequeno ou grande em relação ao nosso tamanho, ou que há mais ou menos espaço em relação ao nosso tamanho, ou que há mais ou menos espaço em relação a nossas escalas espaciais. De acordo com o que escreveu Alexandre Koyré, citando Joseph Raphson:

     
O ilustre Guericke escreveu com toda razão em suas Experiências de Magdeburgo, p. 65: Se nessa dimensão (que não tem começo, meio nem fim) alguém caminhasse por um [tempo] infinitamente longo, e percorresse inumeráveis milhares de milhas, continuaria, em relação a essa imensidade, no mesmo lugar; e se repetisse sua ação e chegasse a dez infinitos mais longe, estaria, entretanto, presente nessa imensidão da mesma maneira e no mesmo lugar, e não estaria um só passo mais próximo do fim ou da realização de sua intenção, porque no Incomensurável (Immensum) não há nenhuma relação. Nele todas as relações são concebidas em referência a nós próprios ou alguma outra coisa criada. Com efeito, esse imenso locus está verdadeiramente em toda parte; e tudo quanto possui seu “onde?” finito (como se diz habitualmente dos espíritos) não o possui senão como uma relação com alguma outra [coisa] finita; mas em relação à Imensidão, está, verdadeiramente, em parte alguma. (RAPHSON, 1702, p. 91apud KOYRÉ, 1979, p. 191, 192).

     Teologicamente falando, é interessante notar que mesmo Deus, que transcende todo o espaço se fez homem e viveu entre nós, em nossa escala espacial, e uma vez aqui, não fazia esforço para tentar alcançar uma realidade para além da nossa, mas, todo milagre que operava, o fazia de olhos bem abertos e dentro da escala de tamanho em que se encontrava. Sendo o espaço metafísico mesmo a teia da nossa realidade, não é ao longe que se deve ir para acessá-lo. Ficam dispensadas as meditações, as viagens astrais e as “buscas” espirituais. O que buscamos longe pode estar bem aqui, diante de nós. Ainda citando as cartas de Samuel Clarke a Leibniz, assim escreveu Alexandre Koyré:

     
O Espaço não é o Lugar de Todas as Coisas, pois não é o Lugar de Deus. De outra forma, haveria uma coisa coeterna com Deus e independente dele; melhor dizendo, ele próprio dependeria do Espaço, se tivesse necessidade de Lugar.
     Se a realidade do Espaço e do Tempo for necessária para a Imensidão e a Eternidade de Deus, se Deus tem necessidade de estar no Espaço, se estar no Espaço é uma propriedade [atributo] de Deus, ele dependerá, em alguma medida, do Tempo e do Espaço e terá necessidade deles. Pois eu já evitei aquele Subterfúgio, o de que o Espaço e o Tempo sejam propriedades de Deus.
(CLARKE, 1715, p. 235 apud KOYRÉ, 1979, p. 248).

     O que podemos concluir até aqui é que o supraespaço não é uma região para além do espaço e tampouco tem uma localização espacial tal qual os corpos materiais têm. O supraespaço teria seu domínio, portanto, em uma dimensão imanente (e não só transcendente) ao espaço físico, como se o espaço físico estivesse dentro dele de forma amalgamada, como um bordado está em um tecido. Essa é uma noção que se aproxima do que Carl Sagan ensinava como sendo uma outra dimensão espacial. Segundo ele, se ela realmente existisse, não estaria nem para os lados, nem para baixo, nem para cima, mas para dentro das três dimensões espaciais que experienciamos. É o que ele ensinava enquanto segurava um tesserato nas mãos. Não parece mesmo que nossa realidade parece um queijo suíço quando constatamos milagres e fenômenos metafísicos que parecem não ter vindo de parte alguma, mas de dentro daquilo que consideramos como realidade?

     
O infinito não é uma coisa, uma esfera, cujo centro está em toda parte e cujos limites não se encontram em parte alguma. O infinito será alguma coisa cujo centro também não está em parte alguma, uma coisa com relação à qual não se pode faze a pergunta “onde”?, uma vez que em relação a ela “em toda parte” é o mesmo que “em parte alguma”, nullibi. (KOYRÉ, 1979, p. 191).

     No mundo espiritual, a escala de tamanho é desprezada, ao mesmo tempo em que se tem a posse simultânea de todas elas, vai-se do infinitamente pequeno ao infinitamente grande instantaneamente. Mais ainda, tudo pode se desenrolar tanto no mínimo quanto no máximo, posto que essas noções de escalas espaciais são desprezadas. Nesse espaço metafísico não só não há gravidade que limite o movimento, mas também não há limitações espaciais que limitem a localização. Ou seja, pode-se sair da escala de uma partícula quântica direto para a escala de um quasar, sem que para isso seja preciso percorrer um espaço quantitativo.
     Pensando noologicamente, qual seria a extensão de um pensamento ou de uma lembrança? Tais aspectos do espírito simplesmente são imateriais, são inespaciais e, assim sendo, trata-se de um reino onde as escalas de tamanho são desprezadas e absolutamente não existem. Eis mais uma razão para a total ausência de qualquer ente físico não coincidir com o nada. O logos, a razão universal, os entes matemáticos, as possibilidades universais, as ideias, as formas, as essências, as leis que regem a realidade e o infinito que a sustenta não são entes físicos ou materiais, e por isso não ocupam nenhum lugar no espaço. O mundo noológico e metafísico não é um mundo especializado, não é ubiquado aqui ou ali, lá ou acolá, mas habita em uma dimensão que transcende o espaço tal qual o conhecemos. No instante mesmo em que um ser humano pensa a forma pura de um triângulo, embora esse pensamento se desenrole por meio de um discurso no tempo, o próprio pensamento em si não ocupa nenhum lugar no espaço. Ainda que se contradiga que o pensamento sempre coincide como lugar onde está o sujeito pensante, e pontualmente em função do seu cérebro, nenhuma incisão no órgão responsável pelo raciocínio humano jamais conseguiu localizar algo que se assemelhasse a um pensamento ou mesmo a uma consciência. Tanto a essência quanto a forma inteligível de um ser não coincidem com os componentes físicos que constituem um corpo. É o aspecto metafísico, essencial, que fundamenta a existência da matéria corruptível e não o contrário. Tal ideia já se encontrava em Platão, especificamente na teoria do Mundo das Ideias, o qual não tem uma localização física, mas habita um lugar Hiperurânio.

     
O conjunto das Ideias, com as características acima mencionadas, passou para a história sob a denominação de “Hiperurânio”, termo usado no Fedro, que se tornou célebre, embora nem sempre entendido de forma correta.
     Note-se que “lugar Hiperurânio” significa “lugar acima do céu” ou “acima do cosmo físico” e, portanto, constitui representação mítica e imagem que, entendida corretamente, indica um lugar que não é absolutamente um lugar. Na verdade, as Ideias são descritas como dotadas de características tais que impossibilitam qualquer relação com um lugar físico (não possuem figura nem cor, são intangíveis, etc.). Logo, O Hiperurânio é a imagem do mundo aespacial do inteligível (do gênero do ser suprafísico).
     Finalmente, podemos concluir que, com a teoria das Ideias, Platão pretendeu sustentar o seguinte: o sensível só se explica mediante o recurso ao suprassensível, o relativo com o absoluto, o móvel com o imóvel, o corruptível com o eterno.
(REALE e ANTISERI, 2003, p. 141).

     Diante desses aspectos, cabe perguntar como seria a forma de Deus, ou qual seria o seu tamanho, mais ainda, em qual escala de tamanho Ele existiria. Sendo Deus um ser onipresente e infinito, ele se relaciona tanto com a escala quântica quanto com a escala cósmica. Para ele, um quasar não é tão grande assim, nem um tardígrado é tão pequeno quanto nos parece. Na dimensão do espírito, as escalas são desprezadas, pois no infinito, os opostos coincidem. A referida coincidência dos opostos no infinito foi uma ideia formulada por Nicolau de Cusa de forma original, e sobre ela assim escreveu Alexandre Koyré :

     
As concepções metafísicas e epistemológicas de Nicolau de Cusa, sua ideia da coincidência dos opostos no absoluto que os transcende bem como o conceito correlato da douta ignorância como o ato intelectual que apreende esse relacionamento que transcende o pensamento discursivo, racional, seguem e desenvolvem o modelo dos paradoxos matemáticos envolvidos na infinitização de certas relações válidas para objetos finitos. Assim, por exemplo, não há nada mais oposto na geometria que o “reto” e “curvo”; no entanto, no círculo infinitamente grande a circunferência coincide com a tangente, e no infinitamente pequeno, com o diâmetro. Em ambos os casos, ademais, o centro perde sua posição única, determinada; coincide com a circunferência; não está em parte alguma, está em toda parte. Mas “grande” e “pequeno” constituem um par de conceitos opostos que só são válidos e significativos no reino da quantidade finita, no reino do ser relativo, onde não existem objetos “grandes” ou “pequenos”, mas somente “maiores” e “menores”, e onde, portanto, não existe “o maior” nem “o menor”. Comparado com o infinito, não há nada que seja maior ou menor do que qualquer outra coisa. O máximo absoluto, infinito, não pertence, não mais do que no mínimo absoluto, infinito, à série do grande e do pequeno. Estão fora dela, e portanto, como Nicolau de Cusa conclui corajosamente, coincidem.
     Outro exemplo pode ser fornecido pela cinemática. Realmente, não há coisa mais oposta do que o movimento e o repouso. Um corpo em movimento nunca está no mesmo lugar; um corpo em repouso nunca está em outro lugar. No entanto, um corpo que se move em velocidade infinita ao longo de uma rota circular estará sempre no lugar de partida, e ao mesmo tempo estará sempre em outra parte, uma boa prova de que o movimento é um conceito relativo, que compreende as oposições “veloz” e “lento”. Segue-se então que, tanto quanto na esfera da quantidade puramente geométrica, não existe movimento mínimo ou máximo, movimento que seja o mais lento ou o mais rápido, e que no máximo absoluto da velocidade (velocidade infinita), bem como seu mínimo absoluto (lentidão infinita ou repouso) se encontram fora do conceito de movimento e, como vimos, coincidem.
     Assim, a trama do mundo (machina mundi) quase terá seu centro em toda parte e sua circunferência em parte alguma, porque a circunferência e o centro são Deus, que está em toda parte e em parte alguma.
(KOIRÉ, 1979, p. 20, 21, 27).

     Se nos apropriássemos dos atributos da eternidade, tendo a posse simultânea de todos os momentos, realizaríamos, então, a tão sonhada viagem no tempo, claro que analogamente, posto que o passado e o futuro seriam a mesma coisa que o presente. Por sua vez, se nos apropriássemos dos atributos do supraespaço, tendo a posse simultânea de todas as escalas espaciais, realizaríamos, então, o teletransporte, e isso também analogamente, uma vez que não só as escalas seriam desprezadas, mas também porque em posse de todos os domínios escalares já não caberiam motivos nem sentido para se ir de um lugar a outro, uma falta de fundamentos que também se aplica à viagem no tempo. Ter a posse, ou pelo menos conhecer e poder interagir com esses dois domínios são verdadeiros sonhos da Física moderna. Quanto à transcendência do tempo, a Física tem buscado realizar esse ideal se debruçando em pesquisas e investigações em torno dos buracos negros e brancos. Já quanto à transcendência do espaço, é em torno dos teóricos buracos de minhoca que essa busca tem sido empreendida. A relatividade especial de Albert Einstein propõe que o espaço se curva e se dobra, de tal forma que tais propriedades do espaço sustentam a hipótese dos buracos de minhoca, onde uma distorção no emaranhado do espaço-tempo torna possível ir de um ponto do espaço a outro extremamente distante simplesmente atravessando por essas estruturas hipotéticas, o que de certa forma, em função justamente da imbricação espaço-tempo, acaba sendo não só uma forma de teletransporte, mas também uma forma de viajar no tempo. As implicações físicas do espaço e do tempo se dão de forma coesa justamente porque, como o próprio Einstein demonstrou, o espaço-tempo é uma estrutura unívoca, é uma quarta dimensão física da nossa realidade, onde o que acontece com o tempo reflete-se inelutavelmente no espaço, e vice-versa.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
 
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Beatriz S. S. Cunha. Jandira: Principis, 2019.
 
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Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 05/05/2021
Reeditado em 05/05/2021
Código do texto: T7248647
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