A degeneração do Jus Puniendi estatal : populismo penal, sentimento vingativo humano e a volta da vingança privada
Allify Oliveira Siqueira*
Sumário: I. Introdução. II. Abordagem histórica. III. Jus Puniendi, populismo penal, vingança privada e o sentimento de vingança. IV. Riscos de excesso na aplicação da pena e o populismo penal.1. Violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. 2. Caso Isabella Nardoni : O estado aplicou uma pena "justa" ou uma vingança? V. Conclusão.
I. INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje percebemos que o direito penal passa por um processo de populismo e "midiatização", ou seja, as decisões do juiz na aplicação da pena estão sofrendo fortes influências da mídia e da população. Antes da aplicação da sentença condenatória já encontramos um resultado para os crimes, criado pelo pré julgamento da sociedade. Há uma explícita violação dos princípios constitucionais e penais que garantem os direitos do réu, como o devido processo legal, a dignidade humana , a proporcionalidade, e a individualização da pena. Presenciamos a população com uma mentalidade preenchida de pré-concepções danosas à conservação do estado democrático e do próprio direito. Nosso estado caminha para a construção de um direito penal simbólico, repleto de políticas de implementação de legislações criminais severas, que atingem em média a população menos favorecida, podendo-se citar o caso de políticas de contenção aplicadas nos morros do Rio de Janeiro ( UPP`s) , onde se presencia a violação de garantias constitucionais dos moradores, como violação de domicílio, abusos de autoridade, etc.
Vivemos numa sociedade rodeada pelo medo, insegurança, criminalidade e violência urbana, fatores estes propícios ao desenvolvimento de um sentimento de vingança disfarçado com um capuz de "justiça". É a vingaça desenvolvida no imaginário popular em razão do descontentamento com a realidade urbana violenta, um sentimento que desperta no cérebro áreas ativadas em atividades prazeirosas, explicando-se o por que da população se animar e querer que "os malvados homicidas", apresentados pela tv, sejam punidos da pior forma possível. Carnelluti (1995, p.22) já afirmava em sua obra a situação que se encontra o direito penal em frente a mídia, formadora de opiniões, e a população, com sede de "justiça" :
"A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tomou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos oficiais de policia e aos juizes instrutores; e, o que é pior, ai faz o trabalho deles.
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* Graduando do curso de direito da Urca-Ce, allify_oliveira@yahoo.com.br
É essa vingança, que ganha o nome de justiça, fator de corrosão do Jus Puniendi estatal moderno. As pessoas acreditam quererem justiça para aquela atrocidade noticiada nos jornais, porém o que sentem internamente é um desejo vingativo, a vontade de fazer o outro sofrer, sentimento contido com elementos de ódio, raiva e vergonha. E repito, é pelo medo, insegurança , violência urbana, e principalmente, pelo processo de "midiatização" da justiça que nos encontramos nessa situação de criação de uma sentença penal não pautada no direito, mas na conviccão popular ( senso comum) do que seja justo.
Diante dessa nossa realidade surgem casos e mais casos que vem produzindo a literatura jurídica da nova fase do jus puniendi, caracterizada pelo direito penal simbólico, criador de uma legislação penal hipertrofiante e pouco eficaz, pela midiatização do processo penal, onde o judiciário se torna um ser secundário no julgamento e a vontade repressiva da mídia passa a ter função primária na decisão da sentença condenatória, e pela prevalência da justiça vingativa, embutida de revolta popular devido violência urbana e ineficácia estatal na resolução dos problemas do excesso de criminalidade. Por essa nova tendência que o direito penal segue hoje no Brasil podemos citar diversos casos da moderna forma de punir, como o caso do mensalão , o caso Isabella Nardoni, dentre outros.
II. ABORDAGEM HISTÓRICA
Os pesquisadores costumam dividir a história do direito penal em três fases: fase primitiva ( vingaça privada, divina e pública), fase humanitária e fase científica contemporânea.
Nas sociedades primitivas havia um grande relação da punição com a desobediência às divindades, era a chamada vingança divina. Inicialmente punia-se de forma desproporcional com intuito de revidar à agressão sofrida pela coletividade, sem nenhuma intenção de alcançar uma justiça. Nessa época havia um direito penal teocrático, religioso e sacerdotal, de penas cruéis, desumanas e degradantes , com finalidades de intimidação e de purificação da alma. Tais princípios eram adotados no código de Manu e no Código de Hamurábi, por exemplo.
Com o decorrer do tempo evoluiu-se para a vingança privada, onde o direito de aplicar a punição era do ofendido, ou alguém de sua família, tribo ou clã do grupo social. A obrigação de se aplicar a pena e reparar o dano era dos indivíduos daquela sociedade. Contudo, anotou-se nessa época que essa forma de punição acabava dizimando famílias inteiras e até mesmo tribos, mostrando o caráter desproporcional da vingaça. Com a evolução das tribos para sociedades mais organizadas cria-se a lei de talião, determinando a proporcionalidade da ação praticada contra o mal cometido - era o conhecido olho por olho, dente por dente, objetivando-se assim evitar futuros desastres sociais por dizimações, sendo considerado por muitos autores como uma das primeiras tentativas de humanização da sanção criminal. No entanto, apesar da lei de talião reduzir as mortes na sociedade, os crimes continuaram ocorrendo e grande parte da população acabava ficando mutilada pelos castigos, diante desses fatos surge-se o instituto da compositio, que possibilita ao criminoso a substituição da pena corpórea pela pena pecuniária. BITENCOURT (2013, p.74) conceitua a composição em sua obra da seguinte forma:
sistema através do qual o infrator comprava a sua liberdade, livrando-se do castigo. A composição, que foi largamente aceita, na sua época, constitui um dos antecedentes da moderna reparação do Direito Civil e das penas pecuniárias do Direito Penal.
A partir da melhor organização social surge a vingança pública, com a finalidade de garantir a segurança dos monarcas no exercício do poder, mantendo características de crueldade e da severidade, visando à intimidação. Nessa época ainda havia um estrito laço da punição com o caráter divino, e a religião ainda atuava intensamente no estado. Eram acolhedores desse tipo de vingança as civilizações grega e romana.
Diante dessa evolução da vingança percebe-se uma progressão nas penas, buscando de certa forma atingir um caráter mais proporcional e humanitário. Nota-se que a expulsão da comunidade é substituída pela pena de morte, mutilação, banimento temporário ou a perda dos bens. Através dos institutos do talião e da composição a penas passam a possuir um caráter menos cruel do que as aplicadas incialmente na vingança divina. No entanto, (BITENCOURT, p.74) afirma que faltaram muitas mudanças ainda na punição : "Em nenhuma dessas fases de vingança houve a liberação total do caráter místico ou religioso da sanção penal individual, que somente a partir das conquistas do iluminismo passou a integrar os mandamentos mais caros do Direito Penal".
Vale ressaltar também as contribuições do direito penal romano, através da Lei da XII tábuas, sendo o primeiro código escrito, a distinção entre os crimes públicos e privados ius publicum e ius civile, as leis corneliae e juliae, criadoras de uma tipologia criminal e que deram origem ao princípio da reserva legal, o desenvolvimento dos institutos do dolo e culpa, e por último e essencial, o jus puniendi, em que o estado passa agora a ter controle no julgamento dos litígios e ilícitos jurídicos, e assume a titularidade do direito de punir, sendo o único responsável pela aplicação de punição aos criminosos. É através da monopolização do direito de punir nas mãos do estado que aos poucos a vingança pública se extingue, dando lugar a um direito penal baseado na reserva legal.
O direito penal canônico também introduziu uma contribuição considerável na aplicação das penas, pelo surgimento da prisão moderna e a reforma do delinqüente. Do vocábulo "penitência" surgiram as palavras "penitenciário" e "penitenciária". As ideias de fraternidade, redenção e caridade da Igreja foram transferidas ao direito punitivo, procurando a correção e a reabilitação do delinqüente, ideias estas germinadoras dos modernos princípios da humanidade e dignidade da pessoa humana.
Com o advento da fase humanitária passa-se a valorar mais o ser humano e sua dignidade, começando-se agora a pensar na prevenção dos crimes, e diante de leis que inspiravam ideias de crueldade e penas capitais surge um movimento de correntes iluministas e humanitárias que critica esses tipos de excessos, propondo penas com um caráter mais ameno e proporcional ao crime, devendo-se levar em consideração alguns fatores do indivíduo, como suas circunstâncias pessoais, seu grau de malícia, e produzir a impressão de ser eficaz sobre o espírito dos homens ( teoria relativa - caráter preventivo dos crimes). Foi no iluminismo que se atingiu o apogeu do movimento, defendendo a proteção da liberdade individual contra o arbítrio judiciário, a abolição da tortura, da pena de morte, o afastamento de exigências penais de caráter puramente morais da igreja e da aplicação de penas com finalidade retribuitiva.
A partir dessas ideias surge o movimento codificador, com o Código de Toscana de Leopoldo II de 1786, o Allgimeines Landrecht de Frederico, o Grande da Prússia 1794, o Código Penal Francês de Bavieira de 1813, os Códigos Penais Franceses de 1791 e 1810. A codificação dava certeza e lógica ao direito, onde sistematizavam-se princípios esparsos, facilitando a pesquisa, interpretação e aplicação da norma jurídica.
É interessante destacar a importância de um dos marcos do movimento humanitário, o Marquês de Beccaria, sistematizador das principais ideias filosóficas da época, o contratualismo e o utilitarismo. A partir de sua análise constroi-se um sistema criminal que substitui o desumano e abusivo sistema anterior vigente, destroçando muitos costumes e tradições da sociedade do século XVIII. Com sua visão utilitarista prega uma pena de caráter preventivo, proporcional e humano, afastando a vingança do ius puniendi. Em sua filosofia define os seguintes princípios:
1. os cidadãos, por viverem em sociedade cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Por esta razão, não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontecem nos casos da pena de morte e das sanções cruéis. 2. só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente. 3. as leis devem ser conhecidas pelo povo, redigida com clareza para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidadãos. 4. a prisão preventiva só se justifica diante de prova da existência do crime e da sua autoria. 5. devem ser admitidas em juízo todas as provas, inclusive a palavra dos condenados ( mortos civis ). 6. não se justifica as penas de confisco, que atingem os herdeiros do condenado, e as infamantes, que recaem sobre toda a família do criminoso. 7. não se deve permitir o testemunho secreto, a tortura para interrogatório e aos juízos de Deus, que não levam a descoberta da verdade. 8. a pena deve ser utilizada como profilaxia social, não só para intimidar o cidadão mas também para recuperar o delinqüente.
Outro revolucionário que podemos citar é John Howard, indivíduo que ressaltou a importância de se analisar os problemas penitenciários. E foi pelas suas ideias humanitárias que se criaram debates e questões acerca das penitenciárias e do cumprimento de pena, insistindo na necessidade de se construir estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, com assistência alimentícia, higiênica e médica capazes de suprir as necessidades fundamentais do ser humano. Discutia-se também a questão dos regimes especiais, diferenciadores de homens , mulheres, jovens, e de pessoas de menor potencial ofensivo, e ressaltou a necessidade de fiscalização por magistrados da vida carcerária, dando linhas fundamentais para a criação da figura do juiz de execução penal.
Logo após desenvolve-se a fase contemporânea científica, marcada pela escola positivista, caracterizada pelo notável entusiasmo pela ciência, o início da preocupação com o homem que delinquia, as razões pelo qual delinquia, o estudo de sua personalidade, abandonando a visão de um tipo abstrato ( "a justiça deve conhecer o homem"), e a abordagem da filosofia determinista, afirmando que sempre haveriam razões para determinar o crime, sendo ele um resultado da vida em sociedade e sujeito às suas variações, em diversos aspectos, influenciando fatores biológicos, físicos e psíquicos. As principais contribuições vieram de Cesare Lombroso - fatores psíquicos e físicos explicam a razão das ações do criminoso ( fase antropológica) , Enrico Ferri - o crime passa a ser explicado como um fenômeno social ( fase sociológica) e Rafael Garofalo - Dá o suporte legal a aplicação das penas, tendo a prevenção especial como sua finalidade, deixando de lado o caráter reabilitador.( Fase jurídica).
Temos adiante o surgimento da escola crítica , conciliadora das ideias da escola clássica e a positiva; a escola moderna Alemã, tendo Von Liszt como principal representante, pregando a ideia da pena e a medida de segurança como duplo meio de luta contra o delito, e o caráter defensivo da pena ( finalística); a escola humanista, pregando a extrema moralidade no direito, considerando que qualquer conduta imoral se torna um crime, e que o caráter da pena deve ser educativo; a escola técnico-jurídica, de caráter positivista , com intuito maior da criação de uma ciência penal "pura", afastada de outras ciências, com objeto e métodos próprios; a escola correlacionista, tendo por fundamento a correção do delinqüente, através de um tratamento adequado. Nessa escola cria-se a ideia de uma pena indeterminada, sem prévia fixação do tempo de sua duração, e a função penal deve ser vista como preventiva e de tutela social; e por último a Defesa Social, de cunho humanista, objetivando a proteção do ser humano e de seus direitos civis. Nessa última escola há a revalorização das ciências humanas, no intuito de se construir uma ciência penal interdisciplinar que tenha uma real efetividade no estudo e combate da criminalidade.
Vimos até aqui a evolução da vingança, de caráter desumano e cruel, para as penas que conhecemos hoje, de caráter ressocializador e preventivo, teoricamente. Entretanto pode-se destacar algo muito interessante em todo o progresso penal: a participação popular nessa evolução. O povo teve consciência que a pena a se aplicar aos crimes não era mais uma vingança e sim uma forma de punição do estado para prevenir delitos? Será que o estado, inicialmente controlado por monarcas e a nobreza, toma o Jus Puniendi para si no intuito de prevenir algo, ressocializar e extinguir a vingança? A resposta é, infelizmente, não. O estado inicialmente visava o interesse dos monarcas, e restringindo a vingança pela Jus Puniendi , torna a aplicação de pena aos crimes um dever re/strito dele, não com a intenção de por fim na vingança privada e o sentimento de vingança humano, mas negar as pessoas a possibilidade de se vingar, através da reserva legal, tornando a punição das agressões aos principais bens da sociedade um dever somente da lei, e a partir disso, criar e realizar a manutenção de condições que favoreçam a vida pacífica em coletividade.
Diante disso compreende-se que o sentimento de vingança nunca foi extinto do direito penal, sendo este uma das suas principais raízes. O que se ocorreu realmente foi o revestimento desse sentimento humano em norma jurídica, assegurada pela legalidade, e a sua possibilidade de aplicação restrita ao estado, desenvolvendo com o decorrer da história um caráter mais humano e proporcional.
Para o estado a vingança acaba se transformando no direito de punir os crimes que violam a sua ordem, através da lei, protetora da liberdade individual, que assegura aos cidadãos a liberdade de se fazer tudo o que nela não se proíba , tipificando a partir dai condutas que violam a integridade das pessoas, de seus bens e da sociedade. Já para o povo a vingança se torna um sentimento oprimido pela poder estatal, negando sua concretização através da lei, proibindo-os de praticá-la, porém não de desejá-la internamente. E é diante dessas duas faces da sociedade ( povo/estado) que surge o conflito de punir.
Quando o estado deixa de cumprir seus deveres na aplicação da pena, não ressocializando indivíduos que delinqüem nem ao menos conseguindo obter êxito na prevenção de futuros crimes a sociedade acaba formando seres violentos, e consequentemente, aumenta-se a insegurança e a criminalidade. Diante desse cenário de aparente "falha" estatal, as pessoas instintivamente voltam a ter o desejo de vingança para os delitos onde o a máquina estatal parece não aplicar a "devida" pena, surgindo as conhecidas discussões atuais, como a aplicação da pena de morte, os linchamentos, a revolta popular e o total repúdio pelo delinqüente, o rotulando assim até depois de cumprir sua pena perante a justiça estatal. Com essa degradação do poder punitivo do estado o povo se perde no conceito de justiça e confunde com vingança, desejando um mal desproporcional ao delito, que pode até resolver o problema específico em questão, porém não contribui de forma alguma na redução de crimes na sociedade.
III. JUS PUNIENDI, POPULISMO PENAL, VINGANÇA PRIVADA E O SENTIMENTO DE VINGANÇA.
O movimento penal que observamos em nossa sociedade é de degradação da função estatal de proteção dos bens jurídicos mais relevantes, e de sua competência punitiva, ou seja, seu Jus Puniendi. O estado falhou em suas promessas de zelar pela integridade da sociedade e de seus componentes, deixando a violência,a insegurança,o medo e ódio se espalharem pelas ruas, abalando a integridade física e psicológica das pessoas, que muitas vezes andam temerosas, expostas à criminalidade. Com a falta de eficácia da lei de execução penal, boa parte do caráter ressocializador e preventivo da pena acaba se esvaindo em teorias acadêmicas, deixando de ser posto em prática, e, consequentemente, promovendo a não reintegração dos indivíduos delinquentes e um maior afastamento dessas pessoas de uma vida digna em sociedade. Toda essa exclusão que se promove hoje pelo direito penal gera algumas consequências prejudiciais a vida social como: a formação de criminosos mais perigosos, a revolta popular com o aumento da violência, a descrença na proteção estatal, e o crescimento desenfreado do sentimento de vingança punitiva, com a volta do velho instituto "olho-por-olho, dente-por-dente" na mentalidade popular.
Diante de um novo quadro social de insatisfação com estado, com a insegurança e a violência a população se apega a desejos internos de querer um mal para a pessoa proporcional ao delito praticado. Dessa forma surge o populismo midiático no direito penal, aproveitando-se das emoções (repúdio, ódio) geradas pela demanda do crime, do medo produzido pelo delito, e do senso comum popular para se obter apoio da população para a aprovação de leis que produzam mais repressão e violência penal, no intuito de se resolver o problema da criminalidade e da insegurança gerada na sociedade. Esse "hiperpunitivismo" almejado pela mídia influencia diretamente na opinião do povo, que enxerga o criminoso com uma visão arcaica, como o "pobre mal caráter e bandido",e o "negro violento e ladrão". Luiz Flávio Gomes ( 2013, p.19) em seu livro sobre o populismo penal midiático conceitua essa nova influencia no direito penal moderno:
No campo penal a expressão populismo vem sendo utilizada para designar uma específica forma de exercício e de expansão do poder punitivo, caracterizada pela instrumentalização ou exploração do senso comum, da vulgaridade e da vontade popular. Populismo penal, portanto, não pode se equiparar simplesmente ao punitivismo, sim, é sinônimo de hiperpunitivismo de uma "economia penal excessiva" ou grotesca, desnecessária, abusiva, que escamoteia a vontade popular passando-lhe a ilusão da solução de um problema extremamente complexo.
Flávio Gomes (2013, p.18) também explica razões internas do ser humano para aceitar de forma branda a explosão de ideias da mídia para a implementação de um direito penal mais rigoroso e desumano:
Trata-se de um discurso político do inconsciente coletivo, que descansa sobre uma criminologia arcaica do homem criminoso, o "outro estranho", como fundamento para a adoção de mais medidas punitivas, facilitadas pelas representações sociais do infrator, ou seja, não é só a lei que estabelece o que é o crime, também as imagens que lhes são atribuídas socialmente.
O detalhe mais danoso a sociedade que se cria com o populismo é a rotulação humana do criminoso. É a volta da escola antropológica na definição do ser infrator, traçando-o pelas suas características físicas. Esse desenfreado exercício de revolta da situação social está sendo movido pela mídia a um determinado grupo de pessoas, as que mais sofrem com mazelas na vida pela falta de políticas efetivas no governo, a população carente. São os negros, mendigos e menores de rua que levam o descrédito popular nessa situação de repúdio a violência. Serão esses indivíduos os protagonistas da novela social da violência, que, muitas vezes, se envolvem na prática de crimes e tem sua imagem exposta à mídia, como possíveis "doenças" que prejudicam uma convivência pacífica na sociedade, seres que acabam sendo excluídos de forma total antes mesmo de serem condenados a uma pena, sendo privados de oportunidades pela criação de uma mentalidade popular preconceituosa.
Com essa exploração do senso comum e da vontade popular pelo populismo midiático observamos a desconstrução do estado de bem estar em diversos aspectos, como o psicológico, o penal, o humano, e o social. Pelo aspecto psicológico vemos o desenvolvimento desenfreado do sentimento interno vingativo na população, caracterizando à volta da vingança privada, revoltada com o excesso de violência, gerando uma vontade de se punir o crime com as próprias mãos (linchamentos), ou que o mesmo seja condenado com a maior pena possível, no desejo de que aquele indivíduo infrator seja excluído da sociedade por um longo tempo, esquecido na escuridão das celas penitenciárias. Pelo lado penal observamos um movimento na sociedade que está impulsionando o legislativo na criação de um direito penal mais repressivo e "eficaz", na mentalidade popular. É o chamado hiperpunitivismo, a aplicação de penas maiores no intuito de que o criminoso cumpra a maior parte da pena numa penitenciária, com a crença de que os problemas da criminalidade serão resolvido pondo boa parte dos infratores na "cadeia", ideia essa ultrapassada há décadas quando se mostrou que a criminalidade não se combate com a prisão, mas com políticas públicas voltadas a inclusão social, que extinguem as diferenças e a miséria (promotoras do crime) pelo fornecimento de uma saúde, educação, moradia, e trabalho de qualidade para quem necessita. Pelo aspecto humano vemos o desrespeito a direitos essências do indivíduo, como sua dignidade, sua intimidade, imagem, integridade física e moral. O criminoso tem suas garantias positivadas na constituição federal, como a integridade psicológica e física. Porém o que observamos é uma extrema violação a direitos mínimos que esse cidadão infrator possui. Podemos citar primeiramente a violação de sua intimidade e imagem no momento de sua apreensão, sendo exibido pela mídia à população como uma das piores mazelas de uma sociedade, um ser inescrupuloso, e desmerecedor de novas oportunidades e piedade. Já sua integridade física e moral são esquecidas no primeiro momento que o mesmo leva a voz de prisão , agredido, humilhado e tratado como um verme, e logo após na penitenciária, tem o resto de sua dignidade usurpada, tendo que conviver em celas superlotadas ao lado de indivíduos que cometeram crimes piores que o seu, expondo ainda mais o seu psicológico a situação de grande perigo. No aspecto social vemos a exclusão, a criação de uma mentalidade popular de preconceitos, e o inchaço do sentimento de medo e insegurança. Primeiramente a exclusão é aumentada, pois aquele indivíduo que delinquiu além de ser taxado com o um potencial risco à ordem social é rotulado pelas pessoas como um eterno infrator, que mesmo apesar de cumprir sua pena, nunca deixará de ser um criminoso, e , devido a isso, não poderá mais ter uma segunda chance para voltar a viver dignamente na sociedade. Logo adiante gera-se os preconceitos, rotulando mais ainda quem pratica o crime , e pior, cria-se analogias para a definição de um criminoso, desenvolvendo um raciocínio da seguinte forma: se um negro, um pobre , ou um mendigo cometem um delito, logo, todo negro, pobre, ou mendigo são potenciais criminosos, merecedores de repúdio ódio. Por último, temos o medo e a insegurança , sentimentos que proporcionam o aumento de todos os outros citados anteriormente. Esse medo e insegurança criam mecanismos de autodefesa no ser humano, com a separação social, o preconceito e a vontade de se realizar a vingança privada, disfarçado no imaginário humano como um tipo de justiça. Podemos observar a segregação social quando vemos aqueles gigantes complexos de moradia, apartamentos rodeados por grandes muros e cercas elétricas, semelhantes a fortalezas medievais. As pessoas que desejam a própria segurança muitas vezes proporcionam uma maior separação, se isolando em seus prédios e se deixando levar pelo medo e a opinião da mídia sobe essa situação de violência. Diante desse inchaço do medo humano e da exploração da vontade popular pelo populismo midiático, visando o apoio da maioria para influenciar o legislativo na implementação de penas mais "duras", reduzimos nossa capacidade de pensar e refletir, desenvolvendo o ódio pelo crime , e o desejo de que se extermine suas raízes, sem critério algum de proporcionalidade. Diante de todo esse quadro social vemos o ressurgimento de um direito penal arcaico na mentalidade popular, a vingança privada.
Toda essa alienação popular impulsiona a aplicação da pena rumo a um direito penal simbólico, ao desenvolvimento do sentimento popular de impunidade, e um maior desejo vingativo no interior humano. O simbolismo no direito penal é caracterizado pela função hipertrofiante do legislador na criação de leis penais, dando ênfase a um aumento excessivo das penas, violando garantias individuais e alterando a finalidade de aplicação de pena pelo estado, a ressocialização. Essa função legislativa violadora da proporcionalidade penal acaba promovendo um direito penal vingativo, remontando os tempos antigos da vingança privada. Quando juntamos a pressão midiática sobre o Jus Puniendi estatal com a vontade popular de leis mais severas para se proporcionar a tão almejada "justiça", e a emanação interna do sentimento de impunidade pela aplicação de penas "injustas" criamos um direito penal de cunho degenerativo, promotor não mais de uma justiça que visa a ressocialização e posterior inclusão daqueles indivíduos infratores na sociedade, mas de um direito vingativo, baseado num sentimento alimentado por uma sociedade amedrontada pela insegurança, criminalidade e violência urbana.
Kant já afirmara a relação existente entre a vingança e o direito, sendo esta um modo de funcionamento das paixões, degeneradora dos ideais de razão e respeito aos direitos do sujeito ofensor.
A vingança manifesta, por sua vez, ser um excelente exemplo do modo de funcionamento das paixões, que abrigam uma terrível mistura entre as obscuridades do desejo e a força da razão, pois tem como fundamento uma Ideia racional, que, porém, o sujeito interpreta de modo egoísta, “tornando o apetite do direito com respeito ao ofensor em uma paixão de retribuição”, cuja veemência não poupa renúncias, custos, excessos, elementos todos que contribuem para produzir a mais completa destruição do sujeito passional. Essa ideia racional pervertida, que Kant identifica com o ponto focal da noção de vingança, transmite-se até entre os povos, que acreditam no fato de o sangue não vingado clamar por uma compensação, às vezes até ao preço do sacrifício de descendentes que não tem culpa nenhuma nos crimes dos seus antepassados. ( MADRID, p.6).
IV. RISCOS DE EXCESSO NA APLICAÇÃO DA PENA E O POPULISMO PENAL
Nosso estado tem-se demostrado falho na tutela de seus bens, tendo a violência se tornado um dos principais fatores dessa insuficiência. Diante de uma sociedade repleta de riscos à integridade humana o sentimento de revolta popular se desenvolve, gerando uma inconformação social pela ineficiência dos serviços de segurança, pelo mal funcionamento do sistema de justiça pública, caindo em descrédito na mentalidade da população, e pelo excesso de crimes e criminosos na sociedade, impossibilitando uma vida pacífica. Em meio a essa realidade as pessoas acabam facilmente aderindo a ideias de uma mudança radical no sistema penal, capaz de proporcionar uma verdadeira "justiça". E , consequentemente, aproveitando-se da vulnerabilidade emocional e do senso comum popular a mídia utiliza-se de seus meios para a difusão de suas ideias hiperpunitivistas, pregando a mudança legislativa penal em prol de uma maior repressão aos delinqüentes, como único meio de se resolver os problemas da criminalidade. Esse populismo penal acaba trazendo sérios riscos ao direito, levantando a possibilidade da criação de penas excessivas para os crimes, sem levar em consideração princípios fundamentais na aplicação da pena, como a proporcionalidade, a individualização, a humanidade e a dignidade da pessoa humana.
A revolta popular com a situação degradante da sociedade, entregue a violência e a insegurança, e o "injusto" sistema penal, que, no imaginário comum, não prende mais os "potenciais criminosos", deixando-os livre para continuar a pratica de atos ilícitos, contribui para a implementação da ideia de que a solução dos problemas da insegurança social seja através de uma justiça violenta e repressiva, aberta a possíveis arbítrios contra os direitos do infrator, ou de uma justiça extralegal, com a participação popular, repleta de vingança, através da retribuição do crime, de linchamentos e até mesmo da pena de morte. É nesse cenário que o populismo penal midiático se desenvolve e é capaz de influenciar o legislativo na criação de leis com penas voluptuosas, promotoras de uma política criminal direcionada a "prender à todos", num sistema penitenciário superlotado, incapaz de atender a essa nova demanda de infratores.
Tudo isso reflete a crise dos valores tradicionais de justiça com os valores fundamentais do estado punitivo, baseado num direito penal de caráter ressocializador e preventivo. Com a falta de eficácia na concretização desse direito humanitário, criador de promessas de contenção da violência e da criminalidade social, as crenças conservadoras de uma justiça popular eclodem, proporcionando um campo favorável a cultura da vingança na aplicação das penas, baseada nos sentimento de raiva e ódio pelo ser delinqüente, desconsiderando a proporcionalidade da pena ao crime cometido.
Diante desse contexto, presenciamos atualmente diversos casos relativos ao excesso na aplicação da pena e o desenvolvimento do populismo penal. Casos como o Eloá Pimentel, onde o acusado foi condenado a noventa e oito anos e dez meses, o caso Isabella Nardoni, trinta e um anos para o réu principal, e a recente ação penal número 470 , o "mensalão", com penas demasiadamente desproporcionais, visando um julgamento político, influenciado pelo populismo midiático,deixando de lado a aplicação de um julgamento pautado nos princípios estatais do direito penal. Os julgamentos respectivos não são mais tomados como uma simples ação penal, mas como um espetáculo de tv, noticiado e assistido pela maioria da população , revoltada com a violência, a insegurança, corrupção e a impunidade, ambiente propício para a criação de pré-julgamentos, não mais baseados no direito, na moral, e no respeito as garantias constitucionais do réu, mas na vontade punitiva popular, baseada na raiva e no desejo de aplicação de punições mais severas, no intuito de compensar o mal gerado na sociedade e na consciência das pessoas. É nesse rumo de degeneração social e punitiva que o nosso direito penal caminha nos dias de hoje, com julgamentos feitos pela mídia, lotados de excessos e arbítrios.
1. Violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena.
Diante de alguns fatos mostrados anteriormente, como o caso Eloá Pimentel e o caso Isabella Nardoni podemos constatar a violação a pilares fundamentais que assentam o direito penal, a proporcionalidade e a individualização da pena. Nesses crimes foram aplicadas penas de 98 anos e 10 meses (Eloá) e 31 anos (Alexandre Nardoni). Ai vem a questão, foi correto aplicar penas tão altas a esses dois crimes? Na fixação da pena o juiz aplicou os preceitos do art.59 do CP, levando em consideração a personalidade, os antecedentes e a vida pregressa dos agentes? Foram observados também os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena aplicando punições tão gravosas? Foi analisado o caráter ressocializador e preventivo da pena ou foi aplicada uma mera retribuição do mal cometido? São essas questões que iremos discutir na avaliação das possíveis violações ocorridas nessas situações.
De acordo com o artigo 59 do código penal o magistrado tem de seguir algumas orientações na aplicação da pena:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Como visto no artigo acima o juiz tem de analisar o grau de culpabilidade , os antecedentes, à conduta social, e principalmente, estabelecer as penas, sua quantidade, o regime inicial e a substituição por um regime mais brando conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Quando o legislador fala em necessidade e suficiência ele deixa claro que qualquer pena aplicada pelo direito tem de seguir o princípio da proporcionalidade e da proibição de excessos, não podendo o magistrado aplicar penas de caráter perpétuo ou desproporcional ao crime cometido. Quer dizer que, deve haver uma ponderação entre a gravidade do injusto e a pena aplicada, no intuito de evitar que indivíduos que cometeram crimes de menor potencial ofensivo tenham um mesmo tratamento que infratores com um maior grau de culpabilidade, representantes da violência e do aumento de criminalidade na sociedade.
Por essa teoria se um indivíduo comete um crime pela primeira vez ( sem antecedentes), tem um boa comportamento na sociedade, não possui uma personalidade voltada ao crime o juiz tem o dever de aplicar uma pena de caráter mínimo ou razoável, pois o mesmo não se caracteriza como um potencial homicida que pode gerar futuros riscos à sociedade e aumentar a criminalidade urbana. Porém, o que observamos nesses casos citados anteriormente é uma total inversão de princípios usados na aplicação da pena. A pena aplicada a Lindeberg Alves ( caso Eloá) foi uma das mais altas possíveis pelo direito, 98 anos e 10 meses de reclusão. A partir dai surge a questão: o magistrado levou em consideração o proporcionalidade e a proibição de excesso nessa sentença? Segundo o professor Julio Medeiros há uma desproporcionalidade escancarada e uma grande influência do populismo penal nessa sentença:
Todavia, “nem tanto a terra, nem tanto ao mar”. Com o devido respeito, a juíza exagerou na aplicação da sanctio juris, pois aplicar a pena máxima para todos os crimes, sem o reconhecimento da continuidade delitiva pelo menos entre os crimes de cárcere privado e os disparos de arma de fogo, apresenta-se como algo totalmente desproporcional (vedação ao excesso).
Na verdade, percebe-se que a juíza foi nitidamente comovida pelo populismo penal e insuflada pela voracidade da mídia que igualmente permeou o caso Nardoni. Disse a magistrada que “a sociedade, atualmente, espera que o juiz se liberte do fetichismo da pena mínima” e, logo após, justificou a aplicação da pena no máximo legal, para cada crime, alegando, em síntese, que “os crimes praticados atingiram o grau máximo de censurabilidade que a violação da lei penal pode atingir”.
Nesse caso foi evidente a influência do populismo penal midiático na aplicação da pena ao condenado, que pela pressão da mídia e da população se definiu a opinião da juíza, acabando cedendo à vontade popular e prejudicando o réu severamente, violando o princípio da proporcionalidade, promovendo um julgamento desproporcional ao crime cometido pelo indivíduo.
Ainda podemos citar o princípio da individualização da pena. De acordo com sua definição, deve-se ajustar a pena cominada, considerando os dados objetivos e subjetivos da infração penal e do condenado, no momento da aplicação e da execução. Ou seja, diante dos preceitos a serem seguidos pelo art.59 do CP o julgador deve individualizar a pena de acordo com o grau de culpabilidade, conduta e antecedentes no intuito de se produzir uma pena determinada para o caso específico do infrator. Segundo Mirabete (1990, p.60-61 citado por GRECO, 2013, p.71): "Individualizar a pena, na execução, consiste em dar a cada preso as oportunidades e os elementos necessários para lograr a sua reinserção social." Na execução penal deve-se ainda considerar os critérios de ordem objetiva (o preso tiver cumprido ao menos 1/6 da pena no regime anterior) e os de ordem subjetiva (mérito do condenado - bom comportamento carcerário) para a progressão de regime, ou seja, o direito do preso de cumprir sua pena fora da penitenciária, em colônias agrícolas, estabelecimentos industrias e casa de albergado.
Com a individualização o condenado tem direito a uma pena determinada de acordo com sua situação (culpabilidade, vida pregressa) e o crime que cometeu. Ainda há o direito de progressão de regime, no qual o condenado que trabalha, estuda e tem um bom comportamento na prisão tem sua pena reduzida pelo instituto da remição, e, consequentemente, pode ter seu regime mudado, saindo do fechado para o semi-aberto ou aberto. Entretanto, no caso Eloá vemos um tratamento do condenado de uma forma bem diferente da qual deveria ser segundo o princípio da individualização. O professor Julio Medeiros explica a deturpação ocorrente na possível progressão do regime devido ao excesso de pena aplicada ao crime:
Outra questão interessante: o réu foi condenado a 98 anos e 10 meses de prisão, mas quanto efetivamente ele irá cumprir? Em síntese, a progressão de regime para crimes hediondos (no caso, homicídio qualificado, tentado ou consumado) ocorre com 2/5 da pena cumprida, para crimes comuns (porte ilegal de arma e cárcere privado, no caso) essa progressão ocorre com 1/6 da pena cumprida; o que significa, em conclusão, que Lindemberg teria de cumprir mais de 30 anos no regime fechado, para só depois ter direito à progressão de regime.
Destarte, considerando que o limite temporal máximo em nosso país é de 30 anos conforme o art.75 do Código Penal, pela pena imposta na sentença o réu simplesmente teria de cumprir tudo em regime fechado, o que na prática configuraria pena de prisão perpétua, sobretudo se considerada as condições do cárcere em nosso país.
Podemos concluir que devido ao excesso de pena aplicada ao réu seus direitos de progressão foram basicamente extintos, e que o caráter ressocializador da pena nesse caso não pode ser observado, porém o lado retribuitivo é bem demostrado, no intuito de proporcionar um mal quase igual ao que o indivíduo promoveu à suas vítimas. É mais uma vez o populismo penal influenciando os julgamentos e degenerando os princípios fundamentais do direito penal. Por essa direção que o direito segue não há benefícios, havendo somente prejuízos pelo abuso de direitos, violação de princípios, e o desenvolvimento de mais ódio e repúdio na sociedade.
2. Caso Isabella Nardoni: o estado aplicou uma pena "justa" ou uma vingança?
O crime hediondo que chocou a população brasileira no ano de 2008 foi um dos mais discutido pela mídia e pelos estudiosos do direito. Isabella Nardoni, morta ao ser jogada do sexto andar do prédio onde seu pai e sua madrasta moravam. Acusados de terem cometido o fato, seu pai e sua madrasta, Alexandre e Ana Carolina Nardoni, foram condenados a 31 e 29 anos, respectivamente. Diante dos fatos apresentados surge a questão: qual o motivo da punição? prevenir futuros delitos que o casal pudesse praticar na sociedade? ressocializar indivíduos que cometeram um crime por um possível momento de raiva ou desentendimento? Ou , por fim, Alimentar o desejo de uma esperada "justiça"que a sociedade e a mídia cobravam como cães frenéticos? Qual terá sido a real finalidade dessa sentença? Seria uma legitimação do poder estatal de punir ou apenas uma concretização do voraz desejo de vingança da sociedade pelo tremendo mal cometido ao instituto familiar?
Pelas condições favoráveis do art.59 aos acusados e as perícias pouco nítidas a pena aplicada não deveria ser tão grave, ou até mesmo não deveria ter sido aplicado uma pena, pelo simples princípio, "in dúbio pro reo - na dúvida absolva o réu". O casal possuía bons antecedentes, residência fixa, boa conduta e família constituída. Aplicar uma pena tão intensa diante dessas circunstâncias não promoveria uma possível ressocialização, pois os condenados não possuíam uma personalidade voltada ao crime. Não seria também uma forma de prevenção de futuros delitos semelhantes, pois os pais não saem por ai matando seus filhos sem motivo algum, pelo contrário, eles defendem suas crias até com a própria vida. Tal delito nunca seria tido como referência por outros pais para a prática de atos semelhantes. Não há que se falar também em punição como forma de evitar possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias ( linchamentos), pois é dever do estado de se prevenir tais atos de vingança.
Se todas as teorias finalísticas (prevenção, ressocialização) das penas não se enquadram ao caso, então, qual foi a finalidade do estado na aplicação dessa punição? Para entendermos o real motivo em se aplicar uma pena de forma tão abstrata e gravosa temos que analisar os fatores sociais que afetam atualmente nosso direito penal, e que influenciam na decisão dos magistrados.
Nosso direito hoje sofre fortes influências de uma mídia manipuladora de ideias, de uma sociedade revoltada e traumatizada com a violência, a insegurança e a criminalidade, que permeiam as ruas, e por último, há uma grande descrença na máquina estatal, se mostrando ineficaz em diversos casos, não solucionando os conflitos sociais e os problemas gerados pela violência urbana. Vivemos influenciados por um movimento chamado populismo penal midiático, que se aproveita do senso comum popular e da revolta social para influenciar a opinião pública, promovendo o questionamento da eficácia das penas aplicadas no combate à crimes. Com altos índices de criminalidade facilmente se convence a maioria a acreditar que nosso direito penal precisa de mudanças rigorosas, e que os criminosos devem pagar altas penas em cárcere privado. Diante de tanta insegurança a população não mais se preocupa em entender o real significado de justiça, modelada pelos direitos e garantias fundamentais, apenas deixa seus instintos primitivos de autodefesa florescerem e serem influenciados pelo populismo penal, gerando pré julgamentos baseados em ódio e repúdio aos que delinqüem.
O pré julgamento é um dos principais males que assolam nossa sociedade e o direito penal, pois são baseados em raiva, ódio e desejo de retribuição do crime cometido pelo outro. Se pensarmos bem, dessa forma não criamos justiça, apenas inchamos mais ainda nosso sentimento interno de vingança, destruidor de laços de fraternidade e convivência em coletividade. É o desenvolvimento desse sentimento na mentalidade popular que está moldando as penas no direito penal moderno, deturpando intensamente o Jus Puniendi estatal, e mostrando que o mesmo se torna incapaz de fazer julgamentos "justos", pois a nova justiça social agora possui outro fundamento, a vingança privada.
É essa degeneração do Jus Puniendi que mostra a nova face da sociedade, com julgamentos que violam princípios, direitos e garantias fundamentais, fatores essenciais para a manutenção do estado democrático de direito. Para mostramos a gravidade da situação que vivemos podemos citar a decisão do juiz do caso Nardoni, que manteve as prisões provisórias, negando Habeas Corpus aos réus:
Portanto, diante da hediondez do crime atribuído aos acusados, pelo fato de envolver membros de uma mesma família de boa condição social, tal situação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido também um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santana durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra necessária para a preservação da credibilidade e da respeitabilidade do Poder Judiciário, as quais ficariam extremamente abaladas caso, agora, quando já existe decisão formal condenando os acusados pela prática deste crime, conceder-lhes o benefício de liberdade provisória, uma vez que permaneceram encarcerados durante toda a fase de instrução.
Aqui se mostra nitidamente a degeneração do Jus Puniendi e a descrença da população com o poder judiciário, que justifica suas decisões de acordo com a pressão da mídia e de uma população alienada e revoltada com as barbáries sociais. A população, os jornalistas e até mesmo o estado clamavam por uma verdadeira "justiça", por que não dizer, por uma efetiva vingança, capaz de retribuir todo o mal cometido através de uma pena desproporcional. É diante disso que pode-se afirmar com convicção que o estado não aplicou uma pena justa ao caso Nardoni, mas uma vingança "justa".
V. CONCLUSÃO
A degeneração que ocorre no Jus Puniendi estatal não é um movimento novo, nem ao menos restrito ao direito brasileiro. A descrença na instituição judiciária ocorre em vários países onde há notáveis divergências sociais e a criminalidade se encontra em progressão. A insegurança, o medo e o excesso de violência são fatores que corrompem o estado punitivo e o tornam uma máquina ineficaz na mentalidade popular.
Com a ineficácia do estado para a solução dos problemas sociais a população acaba trazendo de volta à vida a justiça primitiva, fundamentada na vingança, destruidora de valores essenciais para uma convivência pacífica em sociedade. Dessa maneira, caminhamos para um estado de violência social, alimentado pela raiva do homem contra o ser delinquente.
Diante desse retrocesso na aplicação de penas pelo magistrado e da regressão da mentalidade popular observamos também um dos fatores que mais influenciam na formação de pré-julgamentos, a mídia e seu populismo penal, capaz de manipular as notícias sobre a criminalidade para criar pontos de vista semelhantes ao seus. Esse processo populista e hiperpunitivista explora o saber popular e o medo das pessoas gerado pelos delitos para conquistar o apoio da população na imposição de mais rigor penal como uma "solução"da criminalidade. Porém o que a mídia pode gerar através de seu populismo é um direito penal simbólico, caracterizado pelo função hipertrofiante do legislativo na criação de leis, produzindo um excesso de normas que se mostram pouco eficazes na redução da violência e da criminalidade, e que em alguns casos, violam os direitos e garantias de um parte da população.
A partir dessa realidade que vivemos podemos concluir que o direito penal moderno passa por uma corrosão social e sofre influências que acabam alterando sua finalidade constitucional de garantir a conservação dos bens jurídicos e proporcionar penas de acordo com a culpabilidade do crime, pautadas nos princípios da proporcionalidade, da individualização e da humanização. O populismo mídiático penal, a produção de um direito penal simbólico e a revolta popular com a insegurança e a violência social corrompem o Jus Puniendi e formam um direito penal não mais monopolizado pelo estado, mas pela vontade popular, através de um sentimento de justiça repressivo e voraz, tratado no direito primitivo como vingança.
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