Bonjour tristesse (Françoise Sagan)
 

Observação:
O objetivo maior desta análise é registrar a experiência que tive ao ler o romance em francês, idioma no qual ainda não tenho fluência de leitura.
Que sirva de incentivo aos estudantes que, como eu, estejam iniciando os primeiros contatos com a literatura francesa em textos originais. (ItamarBC)
       
Obra: Bonjour Tristesse
Autora: Françoise Sagan
Primeira edição em 1954 – França
Volume analisado: Edição Pocket, Julliard, 2015
 
Contexto histórico
Françoise Quoirez (1935-2004), que usava o pseudônimo de Françoise Sagan, publicou Bonjour Tristesse quando tinha 18 anos,  pouco tempo após a Segunda Guerra Mundial. A biografia da autora registra que ela pertencia a uma família rica. Como método de estudo e aperfeiçoamento intelectual buscava estar em contato direto com as obras e os escritores de sua época:

De famille aisée, elle a préféré aux études traditionnelles la lecture des écrivains en vogue et les caves ‘existentialistes’.
(XXe Siècle, Collection Littéraire Lagarde et Michard, 2015)

A Collection Littéraire (antologia e história literária), citada anteriormente, classifica F. Sagan entre os escritores que se destacaram, após 1940, no romance, pela análise psicológica.
O livro causou escândalo na época e a agitada vida social da autora foi considerada, por alguns, como um mau exemplo para a juventude.

O título Bonjour Tristesse foi inspirado em um poema de Paul Éluard (transcrito no início do volume).
 
Resumo
 
É um romance de 160 páginas (li a edição Pocket, Julliard, de 2015). Tem por tema conflitos existenciais e amorosos, com bons momentos de análise psicológica.

Publicado em 1954, o livro foi sucesso de vendas. Traduzido e publicado em muitos países, proibido em outros.

Narrado na primeira pessoa. Cécile começa a contar sua história a partir dos 17 anos. Ela é órfã de mãe. Sua adolescência foi marcada por um sentimento novo e complexo, sentimento que ela tenta decifrar e é por ela chamado de "tristeza".

O primeiro parágrafo do livro é poético e cativante. A personagem se descreve psicologicamente. E é, talvez com ironia, que no último parágrafo do romance, Cécile, relembrando tudo que se passou em sua vida, fecha os olhos e diz: « Bonjour Tristesse ».

 
Raymond é o pai de Cécile. Homem rico, aluga uma casa de praia, e para lá vai com a filha passar férias. Convida uma amante para ir também (Elsa). A situação se torna constrangedora com a chegada de Anne (madrinha de Cécile e que tem o desejo íntimo de se casar com Raymond). Os conflitos se sucedem criando um clima de tensão crescente.

Elsa: uma jovem sem pretensões sérias de casamento, descrita como uma pessoa gentil e de hábitos simples.
 
Anne: 42 anos, 13 anos mais velha que Elsa, viúva, culta, hábitos refinados, sarcástica, quer se casar com Raymond e conduzi-lo a ter uma vida menos "vulgar" (segundo ela) e a ter melhores amigos. Também pretende ser uma boa madrasta, controlando a vida de Cécile (namoro e dedicação aos estudos escolares).

O clima fica mais complicado ainda porque Cécile começa a namorar Cyril, um jovem estudante que conheceu na praia. Anne, considerando-se a futura madrasta de Cécile, se opõe ao namoro.

O cenário é perfeito para conflitos: um homem com duas mulheres ciumentas na mesma casa. As duas rivais travam uma guerra quase civilizada de ironias, maldades contidas, angústias camufladas, dor e sofrimento. Afirma Cécile:
Nous avions tous les éléments d’un drame : un séducteur, une demi-mondaine et une femme de tête. (p. 36)

Raymond parece não perceber a gravidade do momento. Tampouco se preocupa se está ou não traindo alguém. Não vê necessidade de se preocupar com as implicações e complicações do amor (noções estéreis e arbitrárias, na sua opinião). Cécile assim o define:
 
Tard dans la nuit, nous parlâmes de l’amour, de ses complications. Aux yeux de mon père, elles étaient imaginaires. Il refusait systématiquement les notions de fidélité, de gravité, d’engagement. Il m’expliquait qu’elles étaient arbitraires, stériles.

É importante também que se diga que Cécile é egoísta, manipuladora de pessoas, e capaz de arquitetar planos maquiavélicos. Tanto assim que inicia um jogo de intrigas, teatral e infantil, com a finalidade de impedir o casamento do pai com Anne, e acaba perdendo o controle da situação. O suspense termina em tragédia.
 
Minha experiência ao ler Bonjour Tristesse
O título me impressionou, causando-me curiosidade e estranhamento. Meu interesse pela leitura dessa obra aumentou ao analisar a biografia da autora. Há na internet fotos e vídeos que nos permitem reconstituir e compreender o momento cultural e social em que ela viveu. Defesa da liberdade total, o charme dos carros velozes, uma vida social intensa e boêmia. Some-se a isso a influência das correntes filosóficas da época.

Sintetizando, é um romance de leitura agradável, linguagem direta, sem floreios literários. E o vocabulário exige poucas idas ao dicionário, considerando um leitor que, não tendo o Francês como língua nativa, esteja iniciando o nível intermediário em um curso do idioma.

A dificuldade maior é com a linguagem familiar. Exemplos:

maquereau (termo usado ironicamente no texto, com duplo sentido, "peixe" e "gigolô")

loupé (erro) (exame escolar « Bien loupé »)

salopard (sacana)

godelureau (mauricinho)

toquade (paixonite, gosto passageiro)

salaud...

Aqui cabe uma pausa para reflexão sobre o emprego de ”salaud” (sacana). Um termo de uso (muito) familiar, injurioso. É usado duas vezes no livro:

 
« Je serais le dernier des salauds, ... »
Frase de Cyril (p. 32)
« Salaud, salaud ! »
Grita Cécile a seu pai (traição de Raymond) (p. 145)

Em minha opinião nesses dois casos o termo « salaud » tem aquele significado muito específico consagrado pelo escritor Jean-Paul Sartre. Não podemos esquecer da influência existencialista em Sagan.
 
salaud – spécialement : (chez Sartre) Personne qui agit avec bonne conscience de manière immorale.
(in Le Robert Ilustré, Nouvelle édition millésime, 2017)

Sartre utiliza essa palavra no seu livro « La Nausée ». A versão em português, dessa obra, não se contentou em só traduzir a palavra, acrescentou a seguinte nota:

‘safados’ – No original, ‘salauds’. ‘Salaud’, nome violentamente injurioso, aplicado por Sartre aos indivíduos que, segundo ele, pretendem escapar à angústia de serem totalmente livres, adotando uma atitude mentirosa em relação a outrem e a si próprios.
 
(nota do tradutor, no fim do livro "A Náusea", de Jean-Paul Sartre – Tradução de Antônio Coimbra Martins - Coleção Século XX – Publicações Europa-América – 3a. Ed.).

Uma outra referência à filosofia sartriana, encontra-se logo no primeiro parágrafo do livro:
 
(...) Aujourd’hui, quelque chose se replie sur moi comme une soie, énervante et douce, et me sépare des autres.

Algo a separa dos outros. Essa observação sobre o "eu" e os "outros", não uma observação ao acaso. O parágrafo seguinte reforça esta interpretação. Cécile cita as pessoas mais próximas, informando quem são os "outros", naquele momento:
 
Les « autres » étaient mon père et Elsa, sa maîtresse.

Cabe observar que « autres » está entre aspas, para informar ao leitor o uso especial do termo. E quem não se lembra de Sartre ao ler essa referência? « L’enfer, c’est les autres », frase que deve ser entendida conforme a definição de Sartre. Sentido amplo, perante todas as pessoas, e não somente com referência ao pai e a Elsa.

Ainda no âmbito da linguagem familiar, há o caso interessante de uma referência só explicável no contexto social da época (a referência filosófica é compreensível universalmente, mas a economia de palavras para fazê-la é regional, familiar). Cécile diz:

 
"Aidez-moi, Elsa. Je vous le dis pour vous, pour mon pére et pour votre amour à tous deux."
J’achevai in petto : "... et pour les petits Chinois.’" (p. 81)

In petto significa em caráter sigiloso, secreto, confidencial. Mas, que chinesinhos são esses?

Recorrendo ao Google, pude compreender: trata-se de um argumento a ser posto diante de uma atitude egoísta. A frase completa seria: "Coma sua sopa. Pense nas criancinhas chinesas que morrem de fome..." (Expressão antiga, do tempo em que a China ainda não dominava o mundo...). No livro, em contexto afetivo e sentido irônico.

 
Conclusão

Gostei do livro e recomendo sua leitura, mas faço as ressalvas que se seguem.

São temas importantes desse romance a solidão e o vazio existencial, bem como a liberdade e suas implicações filosóficas. Françoise Sagan captou muito bem o que havia de central e polêmico no existencialismo francês, mais especialmente no existencialismo niilista de Jean-Paul Sartre, e sobre essa base criou os dois personagens centrais do romance: Cécile e Raymond. 

Para gostar de "Bonjour Tristesse" é preciso compreender a solidão e o vago sentimento de tristeza de Cécile, um sentimento novo, mistura de dor, egoísmo, remorso, ciúme pelo pai, apego à vida confortável e tranquila, medo de enfrentar o mundo adulto, falta de uma referência familiar bem-sucedida. E essa solidão é muito bem descrita, sem ser piegas.

Além disso, cabe ressaltar a interessante e irônica (às vezes amarga) descrição psicológica de cada personagem.

Mesmo os momentos mais pueris de Cécile são interessantes, por exemplo, quando ela decide impedir o casamento do pai: arquiteta uma quase comédia que passa a drama e termina em tragédia.

Quem não tiver tudo isso em boa consideração talvez se decepcione com a leitura.

A Cécile do romance me faz lembrar o poema Sou composta por urgências, de Clarice Lispector. Última estrofe:
Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir,
de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.

 
Itamar BC
Enviado por Itamar BC em 16/03/2021
Código do texto: T7208530
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