Análise do livro “Essa Gente” de Chico Buarque

“Essa Gente somos todos nós", é como escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues finaliza sua apresentação do livro de Chico Buarque “Essa Gente”, lançado em 2019. O autor faz com que nós nos sintamos brasileiros, mesmo que através das angústias de seu protagonista.

Quando lemos os romances de Machado de Assis, hoje, conseguimos “assistir” a um retrato vivo e detalhado do que era a sociedade carioca no final do século XIX. Em “Essa Gente”, Chico nos presenteia com essa mesma sensação.

Para nós é um romance contemporâneo que retrata acontecimentos – mensagens enviadas e recebidas entre dezembro de 2016 e setembro de 2019 -, em que o autor mescla a vida de seu protagonista com os acontecimentos sócio-políticos que ocorreram durante o período, no país.

Mas e daqui há 20, 30, 50, 100 anos? O que este livro irá retratar?

A história das solidões, medos e angústias de um povo, o relato de um Brasil rachado por vãos ideológicos e diferenças sociais gritantes, em um romance que nos faz enxergar nossa própria realidade e, mais do que isso, nos transforma em “Essa Gente”.

Neste cenário, temos como personagem principal Manuel Duarte, autor de um romance histórico, O Eunuco do Paço Real. O protagonista, está decadente e endividado; passa por problemas com o filho adolescente, que entre outras coisas, sofre bullying na escola, por conta de seu pai ser militante de esquerda; além de ter duas ex-mulheres e lembranças dolorosas de sua infância e juventude.

Há, também, outros personagens secundários, através dos quais o autor consegue evidenciar a realidade social com detalhes, como um pastor evangélico da Igreja da Bem-Aventurança, ligado a um maestro italiano, que castra jovens pobres para abastecer o mercado internacional de canto lírico; um mendigo que apanha de um sócio do Country Club; um empresário corrupto, uma jovem gringa apaixonada por um mulato da favela. Personagens comuns do cotidiano brasileiro.

Vinculado a suas mazelas pessoais, temos, como plano de fundo, um Rio de Janeiro empobrecido, violento, mas que conserva suas belezas naturais e que ainda encanta o escrito/protagonista, Manuel Duarte. Assim passeamos pelos morros; nos amedrontamos com as narrativas de violência na cidade maravilhosa e nos encantamos com os passeios pela praia do Leblon ao entardecer.

De uma forma lírica, Chico nos faz transitar por esses personagens e situações, como se fossemos nós de fato os receptores de seus e-mails. Torcemos por Manuel Duarte, nos entristecemos com suas angústias, nos revoltamos com injustiças que ele narra, e desejamos que ele consiga encontrar um caminho e saia daquela solidão que lhe dilacera.

Nosso protagonista, no entanto, se deixa sucumbir pela dor e pela solidão. Como curiosidade, percebemos que o período de troca de mensagens deu-se exatamente entre a queda da presidenta Dilma e o início do mandato do presidente Bolsonaro, como se ele quisesse expressar seu descontentamento e, principalmente, sua falta de forças para lutar contra aquilo que não aceitava. Esse seria um dos motivos que, com certeza, o levaria a um final trágico.

A grande literatura tem o poder de externar os sentimentos humanos com intensidade, de maneira atemporal. Em “Essa Gente”, Chico, nos expõe, às vezes, de maneira intensa e sufocante, a essas emoções e sensações:

“Há manhãs em que desço as persianas para não ver a cidade, tal como outrora recusava encarar minha mãe doente. Sei que às vezes o mar acorda manchado de preto ou de um marrom espumoso, umas sombras que se alastram do pé da montanha até a praia. Sei dos meninos da favela que mergulham e se esbaldam no esgoto do canal que liga o mar à lagoa. Sei que na lagoa os peixes morrem asfixiados e seus miasmas penetram nos clubes exclusivos, nos palácios suspensos e nas narinas do prefeito. Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar. Apesar de tudo, assim como venero a mulher incauta que me deu à luz, estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci”. (BUARQUE, 2019, p.48).

Assim, a narrativa, com essas nuances inteligentes, que se alternam entre o delicado, o cômico e o trágico relata um Brasil de gente simples: amante da natureza, apaixonada pela cidade natal, preocupado com as questões sociais, querendo ser feliz. O Brasil da gente, “Essa Gente”, nós.

“Essa Gente” é uma leitura indispensável que, com certeza, será, no futuro, uma reprodução literária do Brasil de hoje.

Rosa Cristina Camara
Enviado por Rosa Cristina Camara em 17/06/2020
Reeditado em 25/09/2020
Código do texto: T6980222
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.