“Que país é esse?” É um “Faroeste caboclo”, uma odisseia brasileira
Não tenho a pretensão de fazer uma análise profunda da letra de “Faroeste caboclo”, música composta por Renato Russo em 1979 e lançada no álbum da Legião Urbana “Que país é este” em 1987. A letra da canção é comprida, sem refrões ou repetições, e conta a incrível história de João de Santo Cristo, de uma forma bem interessante.
Minha intenção neste texto é apenas destacar alguns pontos da narrativa desta canção, trechos que ouvi muitas vezes sem prestar atenção - o que é comum em letras de música, já que a melodia costuma tirar a atenção da poesia -, mas que agora me tocam demais, até porque vão além da saga da personagem ao mostrar fatos históricos e que fazem parte da vida de muita gente. É claro que não vou recontar a história toda, o que é desnecessário ao meu propósito e tornaria o texto prolixo e entediante; para quem deseja conhecer a história completa, sugiro ouvir a música e, principalmente, ler o texto, a letra.
A odisseia do título não é à toa: é uma referência direta ao poema épico da Grécia antiga atribuído a Homero, que narra o retorno de Odisseu à sua terra natal e sua amada, Penélope, depois de lutar na guerra de Troia. João de Santo Cristo é nosso Odisseu, cuja saga da vida é contada do início ao fim em “Faroeste cabloco”, com viagens, retornos e um grande amor. É claro que há mil diferenças entre as narrativas de Renato Russo e Homero, mas as duas, na essência, contam em versos a história (ou parte dela) dos protagonistas, e isto muito é fantástico, poético e merece destaque.
Na minha visão, João de Santo Cristo é uma personagem que em sua saga individual mostra o que acontece com muitas pessoas no Brasil, ou seja, é um indivíduo que representa muito bem uma coletividade. Da mesma forma, sua história pessoal, individual, também expõe marcas da História do país.
Pra começar, é importante saber as origens e algumas características essenciais de João de Santo Cristo. E o interessante - e digno de elogio - é que a letra não diz tudo de forma direta, o que deixa espaço pra interpretação e exige uma atenção maior pra perceber certos aspectos, alguns muito relevantes.
A meu ver, se a letra fosse direta e prosaica, descreveria o herói assim: João era negro, sagaz (“até o professor com ele aprendeu”), embrutecido, sensível, nascido numa família pobre (talvez miserável) em alguma cidade do sertão da Bahia, revoltado (com causa), só, forte, corajoso (“temido e destemido”), discriminado por “sua classe e sua cor”, bom e digno (respeitava uma ética bastante lógica dentro do contexto de sua vida), não ligava pra religião institucionalizada (“ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”) e idealista (num sentido meio romântico e de alguém que, apesar de tudo, ainda nutria esperanças).
Dito isto, passo a justificar minha descrição simplificada mencionando trechos canção (alguns eu já coloquei acima, entre aspas).
A letra diz que ele “deixou pra trás todo o marasmo da fazenda” e, em sua primeira viagem, “foi direto a Salvador”, capital do estado situada no litoral, destino mais próximo e barato para aqueles que querem sair do interior do estado pra tentar vida nova. Era forte, porque se virava e seguia em frente, apesar de tudo. Revoltado e embrutecido, pela vida difícil e violências que sofreu, a começar pelo assassinato do pai, ainda na infância, e o reformatório, aos quinze, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”.
Era também sensível, capaz de admirar a beleza de Brasília enfeitada com luzes de natal e de amar Maria Lúcia a ponto de se arrepender “de todos os seus pecados”, prometer a ela o seu coração e voltar a ser carpinteiro, abrindo mão da grana alta dos crimes. Este amor, com promessa de eternidade e desejo formar família, assim como seu desejo de falar pro presidente “pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” mostram seu idealismo, sua esperança e sua bondade. Sua dignidade e ética aparecem em vários de seus atos: mesmo colocando em risco sua vida, João recusa a proposta lucrativa e indecorosa feita por “um senhor de alta classe”; a decisão de não usar sua arma contra Jeremias antes que o desafeto começasse a brigar; não atirar pelas costas; e até sua morte, santificada pelo povo.
E este João, pobre, forte, negro, do sertão do Nordeste, retirante que acaba indo parar numa periferia da capital, sofreu desde cedo e ao longo da vida duros golpes do braço violento, repressor e discriminatório do Estado: o soldado que matou seu pai, suas passagens pelo reformatório e pela prisão, além da omissão da polícia, que nada fez pra impedir o duelo noticiado com antecedência na TV (talvez porque a morte daqueles marginais fosse mesmo desejada pelas autoridades e também um entretenimento para os cidadãos de bem, para as pessoas que não estão à margem). E parece ter se beneficiado muito pouco do braço protetor do Estado (talvez só a escola pública em sua infância). Esta cruel oposição entre abandono e perseguição, omissão e punição, exposta na narrativa da canção, representa a realidade de muitas pessoas no nosso país.
Em sua trajetória individual, o herói conta um pouco da História do Brasil, que foi o último país da América a abolir a escravidão e, quando o fez, largou os ex-escravizados à própria sorte, sem quebrar as velhas e pesadas correntes de racismo, discriminação e pobreza, presentes na vida sofrida de João; que inventou sua Capital e depois a ergueu no planalto central com o suor de retirantes explorados, que foram tentar melhorar de vida em Brasília e acabaram relegados às periferias, ao “Quarto de despejo” (como dizia Maria Carolina de Jesus), às cidades-satélites, como as citadas na letra (Taguatinga e Ceilândia); que foi submetido a uma ditadura militar com apoio da elite, parceria que é exposta no trecho em que Santo Cristo recebe a “proposta indecorosa” do senhor rico que vai até sua casa para tentar encomendar dele um atentado terrorista - colocar bomba em banca de jornal e colégio -, que recusa e ainda diz “não protejo general de dez estrelas/ que fica atrás da mesa com o cu na mão” (documentos oficiais provam que a direita paramilitar ligada à linha dura do regime autoritário cometeu atentados terroristas que, atribuídos erroneamente a grupos armados da esquerda, serviram de pretexto para recrudescer a ditadura).[1]
Há também na canção muitas referências religiosas, sobretudo cristãs, que fazem parte da nossa cultura. João de Santo Cristo tem um nome religioso em todos os termos e sua trajetória - cheia de injustiças, impasses, dores e provações - remete às vidas de sacrifícios dos santos, posto ao qual o herói, no final, é alçado pelo povo. Como José, pai de Jesus, João era carpinteiro; e como Cristo, perdoou seu algoz e sofreu seu martírio, no fim transformado num espetáculo televisionado (reality show de um duelo de faroeste tropical e marginal), sobre o qual ele - “sentindo o sangue na garganta” e após olhar “pras câmeras” - arremata: “se a via crucis virou circo, estou aqui”. Este belo verso - talvez o mais fantástico da letra - tem uma profundidade abismal: expõe a bestificação contraposta à beatificação de João, assim como a profanação televisiva do seu sacrifício sagrado. Este ato, e a interpretação que cada classe social fez dele, revela nossa polarização, bastante clara e nada recente. O povo viu de perto, sentiu e teve tanta fé que o transformou em santo; a elite, à distância, nem acreditou:
“E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV”
“Faroeste caboclo” talvez seja uma resposta à música “Que país é esse?” (ambas lançadas no meu álbum): um país com soldados que matam pais de família; um país com muita desigualdade e pobreza; um país que oferece pouca educação, mas muita punição, especialmente aos mais pobres; um país com muito racismo e discriminação; um país com gente de “alta classe” que tenta - por covardia e medo de meter a mão diretamente no sangue - corromper os mais pobres a praticar atos cruéis em troca de dinheiro.
O curioso e até estranho é que, no campo da política, muitas pessoas de direita (até da extrema) se apropriaram da música “Que paz é esse?” como um hino raivoso contra “tudo isso que está aí”, frase que a partir das manifestações de 2013 e, em seguida, durante a operação Lava Jato (lançada no início de 2014) e o golpe que derrubou a Dilma (instaurado no final de 2015), era proferida contra especialmente contra o PT (tachado por eles de partido corrupto como se fosse o único), e também abrangia um sentido de insatisfação geral com a política, com nuances antipolíticas fascistoides, com ostentação em suas manifestações de alguns cartazes pedindo a volta da ditadura.
Penso que a apropriação de “Que país é esse?” pela direita é estranha e incoerente pelo teor da própria letra da música, para não falar no Renato Russo e no conjunto de sua obra. Tudo - o compositor, o contexto da criação e a letra - contradiz as ideologias da maioria da direita.
Talvez eles não entendam o caráter de crítica ou só prestem atenção ao refrão, e não nos versos que mencionam: que “ninguém respeita a Constituição” (base normativa dos direitos humanos, bastante criticados por parte da direita); “Araguaia-ia-ia” (onde ocorreu uma guerrilha durante a ditadura); “tudo em paz” (expressão carregada de ironia ao referir-se à baixada fluminense, Araguaia e outros lugares do país); “o sangue anda solto/ Manchando os papéis/ Documentos fiéis/ Ao descanso do patrão” (o empresário empregador - tão defendido e até vitimizado no discurso de boa parte da direita - não parece um cidadão de bem nestes versos); “Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão” (talvez eles entendam estes versos não como uma crítica, mas como proposta de um negócio lucrativo, pois votaram num presidente que ataca as reservas indígenas).
Além disso, a música foi criada em 1978 - antes do PT, fundado em 1980 - e ao falar em “sujeira” no Senado parecia se referir ao regime vigente à época, a ditadura militar (defendida por parte da direita, inclusive pelo atual presidente), que, inclusive, censurou a canção, em virtude do seu conteúdo questionador. Por tudo isso, fico realmente perplexo quando pessoas de direita gritam “que país é esse”. Não é que eu queira reivindicar a música para a esquerda ou censurar o uso pela direita (defendo a liberdade, cada um canta o que quiser), mas não tenho dúvida de que é um paradoxo; e torço, sinceramente, para que ouçam a letra e possam se transformar, nem que seja pra abraçar, pelo menos, o caráter de indagação, deixando pra trás suas certezas rígidas e mortas; nem que seja para considerar, por um breve momento, que “Faroeste caboclo” pode ser uma resposta interessante para “Que país é esse?; nem que seja para desconfiar que existe um monte de gente real muito parecida com João de Santo Cristo.
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Nota:
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538488463_222527.html
Minha intenção neste texto é apenas destacar alguns pontos da narrativa desta canção, trechos que ouvi muitas vezes sem prestar atenção - o que é comum em letras de música, já que a melodia costuma tirar a atenção da poesia -, mas que agora me tocam demais, até porque vão além da saga da personagem ao mostrar fatos históricos e que fazem parte da vida de muita gente. É claro que não vou recontar a história toda, o que é desnecessário ao meu propósito e tornaria o texto prolixo e entediante; para quem deseja conhecer a história completa, sugiro ouvir a música e, principalmente, ler o texto, a letra.
A odisseia do título não é à toa: é uma referência direta ao poema épico da Grécia antiga atribuído a Homero, que narra o retorno de Odisseu à sua terra natal e sua amada, Penélope, depois de lutar na guerra de Troia. João de Santo Cristo é nosso Odisseu, cuja saga da vida é contada do início ao fim em “Faroeste cabloco”, com viagens, retornos e um grande amor. É claro que há mil diferenças entre as narrativas de Renato Russo e Homero, mas as duas, na essência, contam em versos a história (ou parte dela) dos protagonistas, e isto muito é fantástico, poético e merece destaque.
Na minha visão, João de Santo Cristo é uma personagem que em sua saga individual mostra o que acontece com muitas pessoas no Brasil, ou seja, é um indivíduo que representa muito bem uma coletividade. Da mesma forma, sua história pessoal, individual, também expõe marcas da História do país.
Pra começar, é importante saber as origens e algumas características essenciais de João de Santo Cristo. E o interessante - e digno de elogio - é que a letra não diz tudo de forma direta, o que deixa espaço pra interpretação e exige uma atenção maior pra perceber certos aspectos, alguns muito relevantes.
A meu ver, se a letra fosse direta e prosaica, descreveria o herói assim: João era negro, sagaz (“até o professor com ele aprendeu”), embrutecido, sensível, nascido numa família pobre (talvez miserável) em alguma cidade do sertão da Bahia, revoltado (com causa), só, forte, corajoso (“temido e destemido”), discriminado por “sua classe e sua cor”, bom e digno (respeitava uma ética bastante lógica dentro do contexto de sua vida), não ligava pra religião institucionalizada (“ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”) e idealista (num sentido meio romântico e de alguém que, apesar de tudo, ainda nutria esperanças).
Dito isto, passo a justificar minha descrição simplificada mencionando trechos canção (alguns eu já coloquei acima, entre aspas).
A letra diz que ele “deixou pra trás todo o marasmo da fazenda” e, em sua primeira viagem, “foi direto a Salvador”, capital do estado situada no litoral, destino mais próximo e barato para aqueles que querem sair do interior do estado pra tentar vida nova. Era forte, porque se virava e seguia em frente, apesar de tudo. Revoltado e embrutecido, pela vida difícil e violências que sofreu, a começar pelo assassinato do pai, ainda na infância, e o reformatório, aos quinze, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”.
Era também sensível, capaz de admirar a beleza de Brasília enfeitada com luzes de natal e de amar Maria Lúcia a ponto de se arrepender “de todos os seus pecados”, prometer a ela o seu coração e voltar a ser carpinteiro, abrindo mão da grana alta dos crimes. Este amor, com promessa de eternidade e desejo formar família, assim como seu desejo de falar pro presidente “pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” mostram seu idealismo, sua esperança e sua bondade. Sua dignidade e ética aparecem em vários de seus atos: mesmo colocando em risco sua vida, João recusa a proposta lucrativa e indecorosa feita por “um senhor de alta classe”; a decisão de não usar sua arma contra Jeremias antes que o desafeto começasse a brigar; não atirar pelas costas; e até sua morte, santificada pelo povo.
E este João, pobre, forte, negro, do sertão do Nordeste, retirante que acaba indo parar numa periferia da capital, sofreu desde cedo e ao longo da vida duros golpes do braço violento, repressor e discriminatório do Estado: o soldado que matou seu pai, suas passagens pelo reformatório e pela prisão, além da omissão da polícia, que nada fez pra impedir o duelo noticiado com antecedência na TV (talvez porque a morte daqueles marginais fosse mesmo desejada pelas autoridades e também um entretenimento para os cidadãos de bem, para as pessoas que não estão à margem). E parece ter se beneficiado muito pouco do braço protetor do Estado (talvez só a escola pública em sua infância). Esta cruel oposição entre abandono e perseguição, omissão e punição, exposta na narrativa da canção, representa a realidade de muitas pessoas no nosso país.
Em sua trajetória individual, o herói conta um pouco da História do Brasil, que foi o último país da América a abolir a escravidão e, quando o fez, largou os ex-escravizados à própria sorte, sem quebrar as velhas e pesadas correntes de racismo, discriminação e pobreza, presentes na vida sofrida de João; que inventou sua Capital e depois a ergueu no planalto central com o suor de retirantes explorados, que foram tentar melhorar de vida em Brasília e acabaram relegados às periferias, ao “Quarto de despejo” (como dizia Maria Carolina de Jesus), às cidades-satélites, como as citadas na letra (Taguatinga e Ceilândia); que foi submetido a uma ditadura militar com apoio da elite, parceria que é exposta no trecho em que Santo Cristo recebe a “proposta indecorosa” do senhor rico que vai até sua casa para tentar encomendar dele um atentado terrorista - colocar bomba em banca de jornal e colégio -, que recusa e ainda diz “não protejo general de dez estrelas/ que fica atrás da mesa com o cu na mão” (documentos oficiais provam que a direita paramilitar ligada à linha dura do regime autoritário cometeu atentados terroristas que, atribuídos erroneamente a grupos armados da esquerda, serviram de pretexto para recrudescer a ditadura).[1]
Há também na canção muitas referências religiosas, sobretudo cristãs, que fazem parte da nossa cultura. João de Santo Cristo tem um nome religioso em todos os termos e sua trajetória - cheia de injustiças, impasses, dores e provações - remete às vidas de sacrifícios dos santos, posto ao qual o herói, no final, é alçado pelo povo. Como José, pai de Jesus, João era carpinteiro; e como Cristo, perdoou seu algoz e sofreu seu martírio, no fim transformado num espetáculo televisionado (reality show de um duelo de faroeste tropical e marginal), sobre o qual ele - “sentindo o sangue na garganta” e após olhar “pras câmeras” - arremata: “se a via crucis virou circo, estou aqui”. Este belo verso - talvez o mais fantástico da letra - tem uma profundidade abismal: expõe a bestificação contraposta à beatificação de João, assim como a profanação televisiva do seu sacrifício sagrado. Este ato, e a interpretação que cada classe social fez dele, revela nossa polarização, bastante clara e nada recente. O povo viu de perto, sentiu e teve tanta fé que o transformou em santo; a elite, à distância, nem acreditou:
“E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV”
“Faroeste caboclo” talvez seja uma resposta à música “Que país é esse?” (ambas lançadas no meu álbum): um país com soldados que matam pais de família; um país com muita desigualdade e pobreza; um país que oferece pouca educação, mas muita punição, especialmente aos mais pobres; um país com muito racismo e discriminação; um país com gente de “alta classe” que tenta - por covardia e medo de meter a mão diretamente no sangue - corromper os mais pobres a praticar atos cruéis em troca de dinheiro.
O curioso e até estranho é que, no campo da política, muitas pessoas de direita (até da extrema) se apropriaram da música “Que paz é esse?” como um hino raivoso contra “tudo isso que está aí”, frase que a partir das manifestações de 2013 e, em seguida, durante a operação Lava Jato (lançada no início de 2014) e o golpe que derrubou a Dilma (instaurado no final de 2015), era proferida contra especialmente contra o PT (tachado por eles de partido corrupto como se fosse o único), e também abrangia um sentido de insatisfação geral com a política, com nuances antipolíticas fascistoides, com ostentação em suas manifestações de alguns cartazes pedindo a volta da ditadura.
Penso que a apropriação de “Que país é esse?” pela direita é estranha e incoerente pelo teor da própria letra da música, para não falar no Renato Russo e no conjunto de sua obra. Tudo - o compositor, o contexto da criação e a letra - contradiz as ideologias da maioria da direita.
Talvez eles não entendam o caráter de crítica ou só prestem atenção ao refrão, e não nos versos que mencionam: que “ninguém respeita a Constituição” (base normativa dos direitos humanos, bastante criticados por parte da direita); “Araguaia-ia-ia” (onde ocorreu uma guerrilha durante a ditadura); “tudo em paz” (expressão carregada de ironia ao referir-se à baixada fluminense, Araguaia e outros lugares do país); “o sangue anda solto/ Manchando os papéis/ Documentos fiéis/ Ao descanso do patrão” (o empresário empregador - tão defendido e até vitimizado no discurso de boa parte da direita - não parece um cidadão de bem nestes versos); “Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão” (talvez eles entendam estes versos não como uma crítica, mas como proposta de um negócio lucrativo, pois votaram num presidente que ataca as reservas indígenas).
Além disso, a música foi criada em 1978 - antes do PT, fundado em 1980 - e ao falar em “sujeira” no Senado parecia se referir ao regime vigente à época, a ditadura militar (defendida por parte da direita, inclusive pelo atual presidente), que, inclusive, censurou a canção, em virtude do seu conteúdo questionador. Por tudo isso, fico realmente perplexo quando pessoas de direita gritam “que país é esse”. Não é que eu queira reivindicar a música para a esquerda ou censurar o uso pela direita (defendo a liberdade, cada um canta o que quiser), mas não tenho dúvida de que é um paradoxo; e torço, sinceramente, para que ouçam a letra e possam se transformar, nem que seja pra abraçar, pelo menos, o caráter de indagação, deixando pra trás suas certezas rígidas e mortas; nem que seja para considerar, por um breve momento, que “Faroeste caboclo” pode ser uma resposta interessante para “Que país é esse?; nem que seja para desconfiar que existe um monte de gente real muito parecida com João de Santo Cristo.
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Nota:
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538488463_222527.html