Michael Haneke: cinema do isolamento

71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso

Se me coubesse denominar o cinema de Michael Haneke eu o denominaria de cinema do isolamento. Isolamento, não no sentido da representação do indivíduo ou do grupo isolado, da solidão e do exílio existencial, e sim num sentido mais físico, no sentido mesmo de um isolante dielétrico, daquilo que isola, que não permite corrente elétrica, ou melhor bioelétrica, que não permite contato. Cinema que é também crítica, espelho moralista que aborda as consequências dos efeitos e defeitos e lhes lança injúrias sem saber das causas, que a ele [cinema/ artista] também não importa ou cabe. Cinema que toca na camada epidérmica isolante do espectador frio com uma agulha fina e espera por uma reação, e se vier a ser negativa, tanto melhor: há ali algo que reage, que se empertiga e enfuna; é uma denúncia, não no sentido vulgar jornalístico de apontar o dedo, mas no sentido moral de inferir-nos algo com um gesto ou uma série de gestos e sorrir timidamente de um jeito que nos diz ‘’Viu? Vê o que quero dizer?’’.

Em O Sétimo Continente (Der Siebente Kontinent, 1989), que é seu primeiro filme, esse isolamento é representado no seu auge, no seu paroxismo mais brutal, que poderia ser encarado por alguns como niilismo ou algo que o valha, mas que eu prefiro ver como o marasmo de uma depressão mortificante.

Em O Vídeo de Benny (Benny's Video, 1992) as coisas se dão de forma mais sutil: uma mudança radical no visual é admoestada com severidade enquanto um assassinato é encarado como um simples erro que pode ser remediado. Uma ‘’crítica’’ à mentalidade mesquinha ‘’burguesa’’? Não, eu acho que vai muito além disso.

Em 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls) Haneke espia a intimidade de inúmeras pessoas comuns desconhecidas umas das outras, suas vidas fragmentadas são intercaladas com imagens de jornalistas, telejornais e notícias reais que mostram guerras, violência e notícias de famosos. As notícias são rápidas, impessoais, condensadas; o cotidiano dessas pessoas é mostrado de forma lenta, entrecortada, gradual e monótona. Não há como não nos afeiçoarmos a essas pessoas: observamos, num plano único, uma longa conversa ao telefone sem sabermos exatamente qual o conteúdo do assunto; uma declaração de amor mal recebida ao jantar; um interessante jogo de palitos e uma tomada longa e cansativa num rapaz praticando sozinho tênis de mesa, etc e etc. O mundo nos seus bastidores mais monótonos, girando todavia.

Uma sequência jamais filmada pelo diretor austríaco poderia figurar duas pessoas viajando de carro pelo interior, as duas sem cinto de segurança apesar da estrada tortuosa e barrenta, indiferentes as duas quanto a possibilidade de um acidente e indiferentes quanto a suas vidas. Elas passam lentamente por um carro capotado, uma pessoa estirada na estrada, algumas outras ao redor, paralisadas, e continuam seu caminho, em silêncio como antes, tão indiferentes quanto antes. Essa cena inexistente poderia representar o cinema de Haneke, ou pelo menos, parte dele, e quando penso em 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso penso que o motorista poderia ser um de seus personagens enquanto o lugar do passageiro nos seria reservado.

Um curta chamado Bridges-Go-Round (1958) de Shirley Clarke lida com contraste e revela-nos o poder da relação entre trilha sonora, cor e imagem; a conclusão ao final do curta é a de que uma mesma sequência de imagens pode ser agradável acompanhada de uma determinada música e assustadora se acompanhada por outra: a nossa impressão das coisas é ali determinada por notas musicais e cores, não somente pela estrutura do objeto ou pelo caráter do símbolo que nossos olhos registram (pode-se ver isto apenas como o poder que uma boa trilha sonora e um trabalho de cores pode exercer num filme e como o seu papel é vital quanto ao seu impacto mas se formos mais longe podemos substituir a influência do som pela influência da edição e da montagem e perceber o quanto podemos ser manipulados, por exemplo, quanto às verdadeiras intenções por trás de uma reportagem televisiva).

Por que menciono esse curta?

Penso que Haneke fez, ou procurou fazer, em 71 Fragmentos... algo semelhante. Ele projeta no espectador um contraste forte entre a abstração midiática dos telejornais e uma proximidade com os personagens que, na vida real, temos somente com nossos conhecidos mais íntimos. Ele lida aqui com dois tipos de aproximação (que em certo momento ele mescla: o menino refugiado que aparece na TV), dois tipos de lente, por assim dizer, uma tomada emprestada e outra sua. O ecrã se rompe durante a intimidade encenada e volta a se fechar durante as guerras reais e a violência real. Há violência num caso e noutro mas nossa reação é diferente. É por isso que a quarta parede é quebrada em Violência Gratuita (Funny Games, 1997), recurso raro do diretor, é um desafio e um motejo em relação ao caráter passivo e fleumático do espectador diante da violência.