O suave milagre

Ivancleia J. Santos

O suave milagre

O texto em análise é o conto "O suave milagre", de Eça de Queirós. O autor português pertence ao Realismo, uma corrente literária que surgiu no final do século XIX. Observe como Eça define o papel da literatura na sociedade:

[...]. Para tanto havia que considerar a literatura um produto social, condicionado a determinismos rígidos. A fim de ilustrar, suas observações, Eça critica acerbamente o romantismo e defende o Realismo, como a corrente estética que realiza o exato consórcio entre a obra de arte e o meio social. (Moisés, Massaud, p.198)

A literatura não deveria estar dissociada da realidade das pessoas. O escritor realista tratava de temas comuns ao cotidiano, contemplava todas as esferas da sociedade, seja pobre ou rica. A crítica a igreja era algo constante na escrita do Eça de Queirós.

O conto “O suave milagre” possui caráter religioso. O autor nos mostra um Cristo que se esquiva dos ricos poderosos e orgulhosos, em contrapartida, demonstra compaixão com os menos favorecidos economicamente e vai ao encontro dos pobres, desamparados e dos humildes de coração. Jesus refletia as qualidades do seu pai celestial. A bíblia o descreve como “Aquele que dá pão aos famintos” (Salmos 146:7). Com esta análise veremos três perfis que necessitaram da ajuda do Rabi e dois desses não foram atendidos: Obede (rico orgulhoso, acredita no poder do dinheiro), Púbio Sétimo (rico, poderoso, desonesto) e a viúva (pobre e humilde. Jesus era a sua esperança)

O conto começa falando sobre um Rabi famoso que apareceu na Galileia e que realizava milagres, alimentava os famintos, curava leprosos, expulsava demônios e pregava a vinda do reino de Deus. No primeiro momento, o autor descreve passagens da Bíblia, mais adiante, veremos que Eça de Queirós utilizará nomes bíblicos, mas, protagonizando cenas diferentes das citadas na bíblia, ou seja, é um misto de relatos bíblicos com o fantasioso.

A narrativa segue, aparece a personagem Obede, descrita da seguinte maneira: “senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas − e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo.” (Queirós, Eça, 2001, p.143)

Obede passava por um momento ruim, um vento estava arruinando a sua manada de gado e o seu vinhedo estava morrendo. O velho Obede, ao se ver naquela situação “, ruminava queixumes contra Deus cruel” ( Queirós, Eça, 2001, p.143). Ao ouvir falar sobre o Rabi poderoso, imaginou que Jesus foi um feiticeiro e que se ele o pagasse com certeza reverteria a sua situação. Por isso, tratou de enviar os seus servos em busca do Rabi: “Obede ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar”. (Queirós, Eça, 2001, p.144)

A busca foi em vão, não encontraram o Rabi misterioso. Perceba que além de ser orgulhoso, comparar Jesus a um feiticeiro e achar que Deus era cruel, Obede ainda queria ‘comprar’ Jesus. Por meio dessa personagem o autor critica as pessoas que acreditam no poder do dinheiro para receber bênçãos divinas. Traz também a visão distorcida das pessoas sobre Jesus.

A segunda personagem é o Púbio Sétimo, que é descrito dessa forma: “[...] Púbio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses”. (Queirós, Eça, 2001, p.145)

Como podemos perceber, Púbio era poderoso e desonesto. Este homem sofria uma dor profunda porque a sua única filha padecia de uma doença que a deixava debilitada e agravava lentamente. A narrativa apresenta a antítese que é uma característica do Realismo, ao descrever a menina ele usa triste/ sorridente. Outra característica desse movimento literário é a minuciosidade na descrição das cenas, “A narrativa realista move-se lentamente. Pela própria natureza da técnica que é minuciosa” (Coutinho, Afrânio, 2001, p.187). O pai esperançoso por este ‘Rabi admirável’, envia três de seus soldados à sua procura. Mas, não tiveram êxito, mais uma vez Eça utiliza a antítese: ‘[...] sua filha morria/ a fama de Jesus crescia’. O autor reescreve um episódio contido na Bíblia, no entanto, dá um desfecho diferente (Mateus 9:18-26), um governante, Jairo, pede ajuda a Jesus para curar sua filha que está à beira da morte. A menina morre antes de sua chegada, mas, Jesus a ressuscita.

A terceira personagem é uma viúva a personagem estava nesta situação:

[...] mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo.[...]. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. ( Queirós, Eça, 2001, p.146)

Estas características são totalmente opostas às anteriores. A viúva estava em uma situação miserável, e é retratada de maneira real. Como afirma o Afrânio Coutinho “[...], o Realismo logrou impor a pintura verdadeira da vida dos humildes e obscuros, os homens e mulheres comuns que estão habitualmente em torno de nós” (Coutinho, Afrânio, 2001, p.185). Aquela mulher estava esquecida pela sociedade, morava em um casebre bem distante das pessoas, “Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal”. A viúva recebeu ajuda de quem menos tinha, um mendigo veio á seu casebre. O mendigo não só trouxe alimento material, mas, também esperança para aquela mulher:

[...] um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino. ( Queirós, Eça,2001,p.146)

Veja que o autor descreve até as feridas das pernas do mendigo. Esse é um recurso utilizado pelos realistas “Usam-se detalhes aparentemente insignificantes [...] E esses detalhes devem ser reunidos e harmonizados, para dar a impressão da própria realidade” (Coutinho, Afrânio, 2001, p.187). As promessas citadas pelo mendigo estão presentes na Bíblia. A mulher ficou esperançosa, encantada com as promessas que ouvira e logo quis saber onde encontraria este “doce Rabi”. A viúva perdeu a esperança quando o mendigo relatou que nem Obede, nem Púbio conseguiram encontrá-lo.

Na fala da viúva, Eça critica a falta de amor da humanidade ao próximo: “− Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens” (Queirós, Eça, 2001, p.147). A criança revelou que queria ver Jesus, e de forma inesperada ele aparece: “E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: − Aqui estou”. (Queirós, Eça, 2001, p.147)

Por que Jesus atendeu ao pedido da criança e da viúva e não apareceu para os dois personagens anteriores? A viúva era uma pobre humilde, não acreditava que convenceria Jesus a ir àquele lugar de difícil acesso, nem poderia ir em busca do “doce Rabi”, pois as pessoas não a ouviria até os cães a ladraria. A viúva não se exaltava assim como os demais, mas ao contrário, se humilhou. A bíblia diz que os humilhados serão exaltados e foi o que aconteceu. Diferentemente do homem, Jesus via o coração das pessoas, e se apiedava dos necessitados. O final do conto e o adjetivo que a viúva utilizou “doce Rabi” justificam o seu título. Jesus não veio de forma triunfal, procurando glória para si, mas mostrou-se humilde e piedoso com os mais necessitados.

Referências:

COUTINHO, Afrânio. Introdução á literatura no Brasil. 17 ed. Rio de Janeiro: Bertrond Brasil. 2001.

JEOVÁ, Organização das Testemunhas de. Tradução do Novo Mundo da Escrituras Sagradas. Brooklyn, New York, U.S.A. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. 1984.

MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguesa. 15ª Ed. São Paulo: Cultrix LTDA. 1978.

Cleia Santos
Enviado por Cleia Santos em 23/05/2019
Reeditado em 23/05/2019
Código do texto: T6654737
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