TRINTA DIAS NO MANGUEIRÃO

Trocando por pedras o amor de Deus, mergulhei em profunda depressão. Então, depois de não ter para onde ir, em busca de mim e alguma cura, por trinta dias trabalhei nesse mangueirão em busca do controle perdido da minha vida.

Nas ruas eu me vi transformado em animal, mas ali onde se cria porcos cuidei de almas enquanto a minha alma encontrava cura. Alimentei e dei banho nos porcos para refrescar o couro duro deles alegres por nada na lama. No chiqueiro, como dizem na roça, vi nascer crias e ajudei nos partos, cortei as unhas e os dentes afiados dos bebês porcos para que não machucassem suas mães. Também separei frutas e legumes bons para o consumo dos animais do que estava em processo de putrefação. Por tudo os porcos agradeciam, e por tudo comecei a ser gato.

Aprendi matar a fome dos homens e cuidar mesmo sabendo o fim de tudo. Compreendi o silêncio do mangueirão; lição preciosa, ali nada se ouve ao meio dia porque os porcos estão satisfeitos. O mangueirão é árido, úmido e fétido; minha vida de antes também. No ar do mangueirão paira uma mistura adocicada de barro e calor, a lama concentra fome, sede, vida e morte. Pisa-se com botas no barro cheio de excrementos para evitar doenças.

Durante trinta dias convivi com esses animais que são estigmatizados a partir do nascimento quando lhes dão nome-substantivo que indica adjetivo de sujeira, de imundície. Quantas pessoas são tratadas da mesma forma? Minha identificação, refletindo agora, foi o princípio libertador do que me destruía.

Esses trinta dias salvaram minha vida, desci ao mangueirão para conviver com os porcos e poder erguer minha cabeça entre os meus iguais e descobri que o caminho da transcendência é para baixo.

De tudo na vida se aprende lições. No silêncio do mangueirão, depois de cada etapa do serviço cumprido, eu escrevia. Guardo alguns poemas desse tempo com muito carinho porque neles concentrei o pouco do aprendido e o muito do que não posso esquecer.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 23/11/2018
Reeditado em 22/01/2021
Código do texto: T6510168
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