O matriarcado cultural de Elza Soares

A eleição da primeira mulher a presidência do Brasil demonstrou-nos que: não é somente com o poder sendo ocupado por uma mulher que, necessariamente, atingiremos as inúmeras opressões machistas que às mulheres sofrem em nossa sociedade.

Até poderíamos alegar, de modo simplista, que o fato da eleição de Dilma não ter causado feridas na cultura do machismo, é de que seu governo teve apenas 17 ministras ao longo de um mandato e meio. Porém, a raiz do problema é outro: fossem todos os ministérios ocupados por mulheres, o machismo ainda não seria afetado, isso porque o poder político, dado os seus moldes ocidentais, está estruturalmente fundamentado no patriarcado e, consequentemente, no machismo.

As relações políticas que representam não apenas as econômicas, mas sobretudo, as relações sociais, fazem com que, independente do gênero ou da etnia que assuma o poder político, este se pautará num modelo - branco, patriarcal e burguês - essa é a sua estrutura e é por isso que deve-se, imediatamente destruí-lo. A sua conquista não garantirá a emancipação!

Mas, se então a conquista do poder político não garante a emancipação da mulher, visto que, não atinge de fato a consciência pública e pouco afeta nossa cultura machista - Onde pode a mulher ferir o machismo? Onde as mulheres podem deixar marcas culturais que rompem com sua tradicional submissão? Onde as mulheres podem atingir as relações autoritárias e patriarcais e, assim, exercer na consciência pública a necessidade intrínseca de sua liberdade para emancipação humana?

É isso que as amarras de nossa organização política patriarcal impede e inviabiliza. E é por essa limitação política que devemos nos atentar para um outro campo de atuação:

A arte!

Detentora de uma força pedagógica e política, a arte rompe com os limitados meios de nossa democracia burguesa. Sintetizando as inúmeras contradições sociais, causadas pelo capitalismo, atinge por inteiro a cultura e permeando-se por todos os âmbitos sociais.

É na arte, mais precisamente na música, que o empoderamento feminino tem mais deixado marcas culturais em nossa sociedade, nela, evoca -se uma voz que representa a minoria social que mais, historicamente, foi calada e deixada a base da pirâmide social: a mulher negra:

ELZA SOARES

Com mais de 60 anos de carreira, Elza Soares é um símbolo da resistência negra e feminina no Brasil, mantendo viva uma voz incomparavelmente combativa. Um instrumento político capaz de atingir muitos ouvidos e gerar muitas reflexões. A causa feminina, uma bandeira sempre presente em sua trajetória, tem vínculos diretos com sua biografia: Elza, que casou-se à força com 12 anos, sabe muito bem o tamanho da opressão social que as mulheres sofrem. E em seus dois últimos discos (A Mulher do Fim do Mundo - 2015 e Deus é Mulher - 2018) retrata sua ferocidade combativa na luta pela emancipação da mulher.

A consciência política de Elza Soares é explicitamente exposta na faixa “O Que Se Cala”, de seu último disco, ao cantar:

“Minha voz

Uso pra dizer o que se cala(...)”

Elza Soares demonstra ter consciência de que sua voz trata-se de um instrumento político e pedagógico, capaz de afetar preconceitos e deslegitimar opressões. Ainda, utilizando-a como representação feminina, Elza deixa claro qual é a posição que as mulheres devem assumir no país, ao cantar:

“Nosso país

Nosso lugar de fala”

Em “A mulher do Fim do mundo”, faixa 2, do primeiro disco, Elza é enfática ao dizer que seu instrumento político sempre estará ativo:

“Eu quero cantar até o fim/

Me deixem cantar até o fim/

Até o fim eu vou cantar(...)”.

Numa clara representação de que as mulheres, hoje mais ouvidas, não vão se calar.

As críticas de Elza Soares não se limitam aos espaços políticos, seguem profundamente as micro-opressões sociais das relações cotidianas, tal qual a violência doméstica, e em um tom de denúncia, canta:

“Cadê meu celular?

Eu vou ligar pro 180”

(...)

“E quando o samango chegar

Eu mostro o roxo no meu braço.”

E de afrontamento à covardia machista:

“ Eu quero ver

Você pular, você correr

Na frente dos vizinhos

Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim.”

A faixa, Maria de Vila Matilde, ainda expõe a perspicácia poética de Elza Soares ao criticar, inclusive, a masculinidade modelada pelo próprio machismo, cantando em um tom de sarcasmo os defeitos viris do agressor:

“(...)mimado

Que é cheio de dengo

Mal acostumado

Tem nada no quengo

Deita, vira e dorme rapidim

Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim.”

Elza Soares, com sua arte, consegue assim permear os cantinhos sociais que o poder político pouco ilumina, sua música pode atingir uma enorme reflexão na mente das inúmeras mulheres que sofrem caladas uma de suas mais duras opressões, a familiar, e inspirar-lhes a coragem de rompê-las.

Ela prossegue a crítica e subvertendo o estigma de sexo frágil. Elza trata a mulher como um sinônimo de coragem e revolta, uma coragem capaz de inspirar a revolta de todas as minorias sociais que sofrem as opressões de nossa sociedade patriarcal. Na faixa Dentro de Cada Um, ressignifica a palavra mulher, da passividade modelada pela nossa sociedade machista para a ativa revolta da insubmissão, cantando que:

“A mulher vai sair

(...)

De dentro da cara a tapa de quem já levou porrada na vida

De dentro da mala do cara que te esquartejou te encheu de ferida

Daquela menina acuada que tanto sofreu e morreu sem guarida(...).”

Elza, prosseguindo sua crítica ao fundo das opressões sociais sobre as mulheres, chega nas mais íntimas: a restrição sexual, e em faixas como Banho e Pra Fuder, expõe desde uma reivindicação de que a mulher conheça seu próprio corpo, com metáforas poéticas:

“Olho pro meu corpo sinto a lava escorrer

Vejo o próprio fogo não há força pra deter

Me derreto tonta, toda pele vai arder

O meu peito em chamas solta a fera pra correr”

Até um trocadilho sobre a insubmissão feminina frente ao machismo:

“Quando 'tá seco, logo umedeço

Eu não obedeço porque sou molhada”.

Para completar sua crítica artística a nossa sociedade patriarcal, Elza nos projeta a uma sociedade fundada no matriarcado, com a música Deus há de ser.

Onde que, se para a cultura colonizadora cristã, Deus é tido como Senhor e Pai, para Elza:

“Deus é mulher

Deus há de ser.”

Como quem reivindica e luta por maior reconhecimento feminino, nas inúmeras criações humanas, amplia a reflexão ao cantar que, além disso:

“Deus é mãe

E todas as ciências femininas.”

Elza Soares demonstra, em sua obra, atacar as opressões de nossa sociedade machista, em todos os seus âmbitos mais latentes. Ao penetrar as inúmeras violências que as mulheres sofrem, reivindica em todos os espaços sociais; em todas as relações cotidianas, a justa causa da libertação feminina.

Conclusões

Notarmos que, em comparação com a estrutura fechada do poder político burguês - que desde a disputa eleitoral, passando pelo mandato e, articulando por fim um golpe contra a primeira presidenta do Brasil, impediu uma possível marca cultural para a liberdade da mulher; a força política da arte, da música, da voz rouca de Elza Soares, por exemplo, demonstra ser mais eficaz na luta histórica contra a dominação masculina.

Uma vez que, livre pela arte das amarras patriarcais política, as obras de Elza Soares, podem estimular a crítica de nossa sociedade, visto que, penetrando com a música os ouvidos da consciência pública, abre-se maior possibilidade de nos deixar marcas culturais contra as opressões machistas.

Nesse confronto de poder e arte: enquanto o primeiro se limita à impor, de cima para baixo, modelos à cultura social; o segundo, age permeando a sociedade para difundir uma maior reflexão sobre a própria cultura social.