Ah!... O amor: uma leitura (filme)

Ah!...o Amor, expressão que demonstra sempre uma melancolia, uma emoção, uma lembrança, um suspiro. Navalha na carne e na memória. Hoje fui ver o filme ‘Ah!... O Amor’ com uma amiga. Shopping super fino. Pessoas bonitas e cheirosas demais. No hall, a elegância de quem sabe bem usar o dinheiro com prazer. Ao redor, muitas histórias de amor. Rostos com marcas e cheiros do amor. Eu nada sabia sobre o filme e estava ali por amizade. Minha amiga entrou rapidamente na fila da pipoca. Ah!... a pipoca! O que seria de um cinema sem a pipoca! Em cena, emoções e amores de infância... e o gosto da pipoca. Na fila, cochichos sobre o filme, cabelos de mil formatos... e mais pipoca com guaraná. As pessoas estavam realmente ansiosas para ver o filme e eu surpresa comigo mesma porque me considero uma intensa cinéfila, mas nada sabia sobre a película. Como eu não sabia nada sobre um filme tão disputado? Problema de zona residencial talvez.

Bem, amigas armadas com bebidinhas e pipocas, nos acomodamos nas poltronas marcadas e aguardamos o início. Ah!... o beijo! Muitos beijos! O prazer invade a sala de projeção. Assim começa o filme. Casais de idades e em situações diferentes dentro da emoção dos muitos beijos sinceros. Ao olhar do espectador, um sorriso no canto dos lábios se insurge: é a memória e o tempo retornando. Em cada beijo, o início de tudo, o selo da vida feliz, a certeza de um encontro para sempre, a força necessária ao romantismo de vida inteira. A fantasia do amor está estampada nas imagens: tudo se resolve com um beijo! tudo se apaga com um beijo.

Após cinco minutos de filme, o tempo cinematográfico acelera e vemos outra realidade entre os mesmos casais. Todos, de alguma maneira, estão em rede e na rede de um amor já em crise. Ou seja, presentifica-se o amor questionável, o amor desilusão, o amor sem chance de ceder. Por quê? Após dois minutos da paixão, todos os casais estão em suas horas do amor + rotina. São casais amorosos em sofrimento. O amor não é mais só romântico e cheio de beijos, ele exige o estabelecimento de outros vínculos advindos do córtex, como responsabilidade, segurança, comprometimento, respeito e compreensão.

Casais casados, namorados, amantes sofrem com as novas emoções em boa parte do filme. Se o beijo sela o ‘para sempre’, é a realidade que amálgama a verdadeira conexão entre os parceiros. A paixão cria o casal, o amor cria os companheiros. A paixão é tesão, o amor é confiança. Mas há os ruídos da comunicação. Ou melhor, há o acontecimento de pequenos ruídos nas relações. Até onde se vê, não há como construir uma relação de amor sem eles. Ruídos são sinais de insatisfação, de desejos mal-resolvidos, de início do ‘ser-único’. Mas também são sinais do esclarecimento de quem é quem. É o momento de desvelamento das verdadeiras personalidades. O casal da cama começa a se transformar nas pessoas da casa. Cada uma começa a ter performances individuais diante da vida conjugal. Os ruídos tornam-se sinais do muito 'ver' e da falta do 'olhar', o que abre espaço para o aumento dos abismos sentimentais.

O roteiro do filme, neste momento, apresenta o desligamento amoroso em várias situações: um casal, diante de um juiz, parece não se suportar mais e não quer a guarda dos filhos; o juiz está numa crise de meia idade e com a mulher, logo, insatisfeito, sonha viver novos sentimentos; a filha do juiz precisa separar-se do namorado porque recebeu uma proposta de emprego na Nova Zelândia; o psicólogo do juiz tem uma vida cheia de sexo casual, porque nunca se desligou emocionalmente da esposa, apesar de anos de separação; a amiga da mulher do juiz prepara-se para se casar, mas descobre que o padre é o grande amor de quem se separou por imaturidade; e, por fim, a amiga desta amiga da mulher do juiz, volúvel, se separa de seu namorado porque, de repente, este muda seu comportamento na relação. Shakespeare escreveu ‘Assim é se lhe parece’. No cinema já vimos ‘Beleza americana’, ‘Simplesmente amor’ e ‘Sexo com amor?’. Daí poucas novidades na construção da trama.

Apesar disso, nesta comédia romântica, os ruídos situacionais geram torrentes de paixões que transformam as pessoas e as fazem revisitar suas ações e corações em busca de amor com paz e harmonia. O fluxo dos desejos a muito reprimidos tem sua oportunidade de exposição e todos se deparam consigo mesmos e a fragilidade dos próprios ruídos. O amor está no ar, mas não nos corações. As pessoas renovam seus votos com as solteirices, mesmo com dor porque precisam de renovações, precisam ser vistas, precisam ser escutadas, precisam experimentar sua própria potencia na vida, precisam se desamarrar. Não precisam de motivos fortes, apenas sentem que precisam 'reaprender a viver'. Como disse bem Arnaldo Jabour, ‘amor precisa de pensamento’ e muita imaginação. Neste processo, surge um grande erro, segundo Bauman (2004, p. 07), a tentativa da garantia da permanência. Isso não existe sem esforço, silêncios e algumas cessões. Não sendo assim, dificilmente é assim, os corações estão partidos.

Mas aí uma das coisas mais balsâmicas que existe na vida se revela: o tempo. Os antigos estavam certos: ‘o tempo é um santo remédio’. E eu digo: tempo e atividade são sublimes porta-vozes da conquista da auto-estima. Não há seres imunes ao amor, há seres tardios. Não há seres em sofrimento eterno, há seres orgulhosos. Não me lembro quem disse, mas uma coisa é certa: 'o sofrimento é opcional'. Entre a seleção de beijos e a seleção de corações partidos, no filme e na vida, o que se percebe é a rotina dos dias e a prepotência dos amantes com seus amores. Segundo Christopher Clulow, do Instituto Tavistock de Estudos Matrimoniais (apud Bauman, p.31), 'quando se sentem inseguros, os amantes tendem a se portar de modo não-construtivo, seja tentando agradar ou controlar, talvez até agredindo fisicamente - o que provavelmente afastará o outro ainda mais'. E isto leva a muitas confusões que se traduzem em risos nervosos ou grandes ansiedades.

A partir do momento que todos os ruídos são parcialmente apresentados, há o susto da morte. Uma morte. Um amante morto. Um ‘sem sentido’ irreparável. Deste clímax, o espectador começa a se repensar como um ser social que, vez por outra, ama incondicionalmente, comete erros, é desatento, é ciumento, é possessivo, é soberbo, é ‘amor demais’. Nestas lembranças, cenas dos seus muitos ruídos construídos ou não; cenas de suas relações congeladas e coaguladas (Bauman, p. 11) ou não. Risos tímidos e francos; corpos se mexendo ansiosos; pipocas sendo mastigadas com mais rapidez; exclamações de reconhecimento; tudo, dentro da sala escura, refletia um envolvimento sorrateiro, apesar de forte, com as imagens. Interessante. Transferências quase diretas às cenas vistas. E uma certeza: 'na balsa dos relacionamentos não há peças sobressalentes (Bauman, p. 31).

Enquanto as histórias iam se (re)conectando com diferentes soluções, os espectadores acalmavam seus sentidos de maneira terapêutica. O amor volta aos olhos; ganha ‘cama, comida e roupa lavada’; e se prepara para novas ilusões, novos egoísmos, novas tentativas, novo sexo, novas surpresas. ‘Cada qual é uma incógnita na equação do outro’, mas é preciso ‘abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível’ (Bauman, p. 21): o amor.

E no final, de novo, outros beijos e as insônias da paixão...

Referência:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.