Todas as cartas de amor são ridículas. (Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como sentimentos esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas.)

Álvaro de Campos é um heterônimo de Fernando Pessoa, poeta português do Modernismo, escola literária oriunda do início do século XX, berço de duas guerras mundiais, e foi nesse clima, de suspense, de medo do novo, que a língua portuguesa foi presenteada com essa obra prima “Todas as cartas de amor são ridículas”, poema que se apresenta em 28 versos, onde o estilo modernista se sente bem confortável: ausência de metrificação, emprego do verso livre, uso de palavras consideradas tradicionalmente não poéticas como as que encontramos no poema: ridículas, esdrúxulas, criatura, etc...

E na amplitude temática, também vamos encontrar a ausência de limites entre o poético e o não poético: tudo pode ser tema de poesia como as cartas tão comuns naquele contexto no qual cresce o interesse pelo homem comum, pela ordem social, pelo cotidiano. E é exatamente por ser esse homem comum, que não se tem pudor nenhum em demonstrar o gosto pela ironia e pela polêmica. Só isso explicaria o uso do adjetivo ridículas, (que provoca riso, escárnio ou zombaria), oito vezes em um poema de sete estrofes. E como se fosse uma ladainha, Campos repete, insistentemente, em todas elas, de maneira direta ou indireta, que todas as cartas de amor são ridículas, e o faz, não só para defender a sua tese, mas para convencer a si próprio de que elas são ridículas, como se precisasse acreditar nisso. Assim vai se desenhando um eu-lírico contumaz, desdenhoso, cínico, extravagante, inseguro; e por que não dizer arrogante? Como alguém que sabe tudo sobre as cartas de amor, e como um bruxo, as esnoba porque as tem na memória, onde elas são só suas, atendem ao seu comando, não estão ali como objetos, mas como personagem central de uma peça em defesa de um arquétipo.

Caminhando pelo poema, chega-se à segunda estrofe com a impressão de que o eu- poético lamenta suas ações passadas em relação ao amor. Não valeu a pena? Não podemos nos esquecer, o ornônimo de Campos, Fernando Pessoa que já se autodenominou e se eternizou como um fingidor, (e a fruta nunca cai longe do pé.) Essa crítica às cartas de amor, ou até mesmo ao amor pode ser resultado de um saudosismo patológico, porque, a medida que vamos nos aprofundando na obra, há uma imbricação do fingidor com aquele que foge da dor. Ora o eu lírico nos vai revelando, que não são as cartas que são ridículas, mas as pessoas que nunca as escreveram é que são ridículas, ora são seus sentimentos e suas memórias.

E nesse jogo, onde ridículas ou não, as cartas de amor se equilibram, podemos imaginar que o eu lírico gostaria que o tempo não lhe tivesse trazido o ridículo das cartas, que poupando-o, não precisaria fingir, hoje, sobre o que pensa delas e do amor.

“Quem me dera no tempo em que escrevia” e “sem dar por isso”, soubesse que não estava sendo ridículo; melhor seria nunca ter descoberto que foi autor das cartas que, hoje, lhe pesam o ridículo do feito, ou pesa fingir o peso, pois, a estrofe que antecede o hipotético fingimento diz, só as criaturas que nunca escreveram carta de amor é que são, mas logo em seguida o poeta traz o ridículo para si, por meio das suas memórias, dos seus sentimentos.

Na penúltima estrofe, o poeta, como se tirasse um coelho de uma cartola, brinca com a mágica e mostra ao leitor que as memórias de suas cartas é que são ridículas, não elas, e deixa no ar: como ele fez isso? Interprete como uma revelação, um desabafo, uma tristeza pelo encontro das duas pontas atadas em um nó que não tem fim nem começo.

O amor nos torna ridículos, faz com que ajamos de maneira imprópria, esdrúxula. E o poema vai se fechando num par de parênteses, como se fosse um cofre que guarda um segredo. Esse recurso gráfico instaura um tom confessional, um aparte explicativo na verdade do poeta, ele generaliza tudo que pode ser adjetivado como ridículo: os sentimentos que são a energia que produzem as palavras ridículas, matéria prima das cartas caracterizadas como ridículas.

Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 05/04/2018
Reeditado em 05/04/2018
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