LUPA

LUPA

William Lagos – 13 ABR 2009

lupa I

nem sei se poderia, de fato, acompanhar,

com velhos olhos gastos tantos signos.

não vejo jeito de tornar benignos

os longos dias que passo a revisar,

sem ter prazer,

por puro esforço,

as traduções que fiz, buscando erros:

ler e reler,

dores no dorso,

só na folia do verso a refugiar,

nos disfarces mais podres e mais dignos,

em falas brandas e vazios malignos,

que me permitem viver, sem nem notar!

lupa II

porém enquanto esse passado é conferido

mais um formato estranho é sugerido,

mas não consigo deixar livres meus versos

por mais que os tenha pelo ar dispersos,

meu coração ferido

já tem rido

muito mais que meu viver justificou.

assim cantou

e dessangrou

no inútil verso que nem foi poema,

na murcha flor que nem foi açucena,

na opacidade da angústia que envenena,

na vida morta dos corações rasgados.

lupa III

este barulho não me vem daqui:

pertence a outra parte deste mundo

àquele som por vezes iracundo,

àquela vida que, às vezes, assisti,

quando se adense,

mas que não vence.

esse fragor, bem sei, não vem de mim:

apenas ouço ao recruzar a rua

e não me atenho,

pois não me evoca uma esperança nua,

nem me parece revelar, assim,

por que aqui venho.

esse ruído pertence a outras pessoas:

escuto de passagem, impoluto

e nem me agito,

embora nos ouvidos me ressoe,

eu ouço apenas e nem sequer escuto,

tão forte grito.

lupa IV

estou apenas adiando este momento,

em que terei de iniciar o movimento,

a deslizar pela fresta o pensamento,

a deslocar para o fundo o sentimento

uma vez mais

no meu jamais,

me prostituo, sem arrependimento:

tal é minha vida

e dou guarida

nos meus neurônios, sem comedimento,

às ideias de outrem, em travestimento,

que verto ao português, em desalento,

na espera crua de um mísero portento.

lupa V

desta forma, o poema é reticência:

pode ser tudo ou nada, em empatia.

de teus anseios a plena antipatia,

pelo desprezo de toda a tua sapiência,

no descaso profundo do que és.

junto a teus pés

eu o deponho.

talvez julgues meu discurso como ofensa

ou o encares com ressentimento.

feio portento

que nem ao menos

te disponhas a provar de meus venenos.

mas lembra sempre que o verso não é meu:

pela leitura os aceitaste plenos

e neles provas um veneno que foi teu.

lupa VI

se não te serve

a plenitude da quimera que conserve

intacto o bagaço de teu sonho vão,

se não te basta o vácuo no ausente coração

[nada melhor que o vazio a preencher o nada],

toma a bênção desfolhada

e faz dela rodízio

e dá-lhe pleno homízio.

na implosão da alma,

revive a alheia calma

da plena desistência.

preenche teu vazio com ramos de impotência,

ascende a escada fria que te conduz à lua,

espalha tuas entranhas nas pedras desta rua

até ver-te completa,

em total obsolescência.

lupa VII

sou trovador sem possuir um alaúde,

pois de fato encontrar eu nunca pude

na realidade tal instrumento puro,

mesmo troveiro, encontro-me no escuro,

a flauta experimentei

mas não o flageolet.

não sei tocar fresteu ou chalumeau,

nem o cromorne,

nem o saltério,

nunca soprei qualquer trompa marinha

nem de vielle ou mandora se avizinha

meu pobre silvo de negro rouxinol

cantor da noite e adormecido sob o sol.

lupa VIII

não obstante, sou um menestrel,

mas permaneço preso no quartel,

onde castrar pretendem meu anseio

e meus dedos esmagar com negra luva.

tendo receio

de amor no seio,

querem prender meus sonhos em cadeias,

forçar-me a ouvir o canto das sereias

ou das sirenes,

hárpias modernas.

mas tais cantigas afastam as antigas

sem ter sabor de novos horizontes

e eu não queria me banhar nas fontes

em que o vinho se tornou de novo em água

para minha mágoa.

lupa IX

quero dormir sob o farol do céu,

nos braços da alvorada cristalina

a me orvalhar com saliva de menina,

furtando à lua o seu galhardo véu.

quero vogar

sem sufocar,

pelas ondas multicores do deserto,

entre os corvos passear de peito aberto,

um osso por bengala

em vasta escala,

fazer amor nos píncaros dos montes,

a escutar das cabras os repontes,

enquanto a mim se entrega redolente

uma pastora sempre impenitente.

lupa X

quero sonhar no derradeiro instante,

que já desembarquei no seu afeto

e de sua atmosfera fiz meu teto

por mais que seja um gás asfixiante.

pouco me importa

se o canto corta.

quero beijar os quadris de galateia,

de pigmalião roubar a antiga deia

será minha amante

no meigo instante,

ele que abra outra rocha com o escopro

e compartilhe do beijo delirante

da nova vênus esculpida nesse instante,

enquanto eu mesmo me aninho nesse sopro.

lupa XI

quero beber um jato dessa espuma

que jorrou da serpente e fez-se a cuna

de afrodite em nascimento virginal,

que nem sequer mãe teve afinal

e ingressar de zeus

na sua cabeça,

a esperar que lá dentro não me esqueça,

que venha hefesto com poderoso malho

e à luz do dia me inteiramente espalho

como pallas, da armadura cada peça,

de sua quadriga

serei o auriga.

que mnemósine seja a titã fiel

e que themis me sirva o hidromel,

mesmo que o néctar esteja hoje em falta

e azeda a ambrosia que me assalta.

lupa XII

que meu delírio seja mais permanente

do que o cosmos para mim indiferente,

meu fadário a encarar na inversa lente

do telescópio de olhar opalescente.

de meu destino

tangendo o sino

para a missa de meu sétimo dia

que em paramentos em mesmo rezaria

minha mortalha

tecida em palha

e seguirei na praia em alpercatas

das algas mortas pisando as cinzas matas

lupa de areia que de fato nunca houve,

meus búzios a soprar que ninguém ouve

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com